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Alessandra Leila


Cântaro 



Há um pequeno/ espaço/ entre a fragilidade dos outros/ o mar/ e as vinte mil flechas/envenenadas./Assim como uma /redoma/ cobrindo uma flor,/como uma redoma (translúcida /e sólida, /há um pouco/ espaço,/um nosso milímetro /de oásis,/onde podemos estar,/ não propriamente como /a flor,/ porém à maneira do pássaro ferido. (Ruy Espinheira Filho)

Os imbecis estão amando. Silêncio que pede a corte: nos sabemos impossíveis há milhões de anos, eu do planeta das reentrâncias, você do das esferas. E ainda assim, tentamos. 
Fazendo hora em Itaparica. 
Entro na água, me dispo. A areia está cheia de conchinhas e búzios coloridos. Não catamos. 
Podemos andar léguas com a água nos tornozelos, é maré baixa, pode-se dormir dentro da água rasa da praia. 
Mas nós não. 
Nós ficamos em silêncio. Na redoma do silêncio. Inventando por dentro motivos e cortejos: você me ama? Eu te amo? Você fica bem de short cinza... Por que muda tanto a cor do cabelo? Se me quiser sua, me beije agora... Acho meio estranho esse seu abrir e fechar de olhos... Que bonita essa mancha no seu braço direito... Agora vou lhe dizer o que sinto: eu realmente te...
Não, isso não importa.
Aviões sobrevoando a cidade de Salvador.
Lá, do outro lado de onde podemos estar.
Bebo essa distância como se fosse o café frio e pouco da manhã.
Coração ficando charco outra vez.
Oh, coisa incômoda é amar com vinte mil séculos de distorções no meio, arrastando você pro norte do meu corpo, eu pro sul do seu.
O sexo periga: em mim pelo cheiro, em ti pelo sangue.
Agora sim, chegamos mais perto. A tua mão, me dê a tua mão:
Superfícies.
Pequenos calos urbanos.
O teu passado de linhas sem palavras. Onde entro na tua vida?
Não sei.
Não se perca no redemoinho do meu te querer bem, te querer nunca mais.
Não tenha medo, avancemos, falo e escrevo mal, mas ignore: tu e você são variantes do mesmíssimo pronome, isto é, aquele a quem persigo, o outro, que não vai ter concordância alguma com o que sou.
Abraçados no ninho das cobras. 
Porque estar junto é formar ninho de cobras. 
Não quero saber como se constrói a tua razão acerca das coisas: furacão mata 400 pessoas na costa do México, lei proíbe tatuagem em menores de 18 anos, dezenas de baleias encalham e morrem na Nova Zelândia, 75 pessoas morrem numa queda de avião no Uruguai, Universal do Reino de Deus inaugura megaigreja em Curitiba, verba garante obras na rodovia BR-116, cientistas acham a estrela mais brilhante do universo, menina de 12 anos é morta no Costa Azul, elefantes jovens que cresceram longe da família matam rinocerontes na África, Salvador começa a tratar de suas árvores combatendo as pragas, Débora Rodrigues é expulsa do MST por posar nua para a revista Playboy, prêmio Nobel da Paz vai para campanha pela proibição de minas terrestres. 
E, nós, os imbecis, estamos amando.
Perdendo a paciência em Itaparica.
Saio da água e caminho. Você vem atrás perguntando coisas.
Que sei eu das minhas vontades? Não toque nos meus quadris, se afaste. 
Um grande espaço agora: morra antes de me alcançar.
Tenho horror aos seus olhares. Odeio seu corpo.
Um navio do outro lado...
Podemos comer naquele restaurante...
Você acha que está escurecendo cedo.
Achamos, os dois, um jarro velho. Parece de desenho animado. Jeanne é um gênio, Aladin. Um jarro dourado na praia, enferrujado pelo mar.
Sentamos juntos pra vê-lo.
Que dizemos?
O espaço que diminui. A guerra que se finda.
Submersos nas imagens: gotas de água rolando na superfície dourada, arredondada, maltratada pelo sal. 
Que mais querem nossos olhos? Nossos olhos querem e isso sempre quer dizer: mais.
O tempo marinho nas dobras, nos arranhões, na tinta.
Fomos crianças em cada tempo. Você trepou em árvores, usou estilingue. 
Tempo bem velho e descorado: você me conta.
Infância: água sanitária.
Em minha terra não se fala bodoque, mas estilingue.
Eu adorava vestir minhas bonecas com calcinhas e meias vermelhas. Pintá-las de esmaltes, borrá-las de batom e tinta guache. As caras de plástico pra sempre arruinadas.
Minha mãe brigava: nunca mais eu ia ganhar nada no natal.
Os natais matam a infância. Me lembro agora prá no instante seguinte esquecer: o quintal da casa dos meus pais era cheio de varais e, de noite, invariavelmente, eu sonhava que eram fios de postes que me atrapalhavam os vôos quando através do pedaço de céu do quintal eu tentava fugir.
Pedaços de céu, oh, não, meu pai & minha mãe, minha professora & meus irmãos, pedaços de céu me maltratavam, mas, quando menina, jamais poderia saber: são as piores prisões. 
Viro o olho pro teu lado esquerdo: o navio já se foi. Salvador o escondeu. O sol idem, mas já era fraco, pra que queremos sol se estamos tão abandonados? Meu corpo volta a sentir sede do teu.
Eu amo teu corpo. Deixe que te diga de uma vez por todas: sou terrivelmente indefesa diante de pêlos.
Dos teus pêlos. Dos pêlos de qualquer homem.
Te revelo a grande dor da minha vida: estou cheia de celulite e estrias, estou envelhecendo. Mas você, mesmo assim, ainda me chamará de menina. Não é agudo isso?
Eu não quero ser menina, desde cedo que evito ser.
É com passos de mulher que percorro o mundo. Quisera nas pegadas formar uma erosão ou larva de vulcão profunda que nos liquidasse - a mim, a ti, a ele - de vez.
Eu sou uma suicida sacana: não me contento com simples autodestruição, quero ver tudo pelos ares, não deixar o mundo seguir depois da minha passagem.
Que de nada vale, e é preciso pinças pra alongá-la.
Tenho o corpo coberto pelas tentativas das pinças, porém, entretanto, todavia: não choro nem lamento, nem te permito assim fazer.
Desconfio do que sinto. Me fecho. Caída de novo na areia. Não quero sequer saber de você. Na redoma do silêncio, amolo a lâmina da distância. Um vão maior do que nosso desejo de amar. 
Quem disse que queremos nos amar?
Só por descuido abro os olhos. Por descuido e ansiedade de imagens. Quando se fecham os olhos, as imagens não morrem, é claro, mas se colam umas às outras me confundindo as cores.
É sempre necessário distinguir as cores.
Entretanto, que digo diante da sua imagem, de repente debruçada sobre o cântaro, enchendo-o de água salgada e brilhante, água que dá passagem inquietante pro sol? 
Você enche o cântaro.
Homem, não faz essas coisas, já lhe disse: não está certo agir assim... 
Você enche o cântaro e vai despejando devagarinho a água de volta ao mar. A água de dentro do jarro, dourado, desgastado pelo mar. Tem duas asas o cântaro, duas asas, mas você só pega em uma. E despeja a água de dentro pra fora. E enche-o na água de fora. Agora vem e me molha a barriga. Me molha as pernas. Minha boca cheia de uma sede menor. 
O espaço some por completo.
Sonho que você está logo mais na esquina, me esperando todos os dias pra tomarmos café ou simplesmente ir ao cine. Então lhe digo: ponha menos açúcar, ou digo tão-somente: prefiro os filmes mudos - quem sabe os guardiões de nossa verdadeira língua?
Agora: feche os olhos, nada mais importa. 
Fale-me de tua gente, do amarelo de teu país. Funda meus telhados de concreto aos teus de barro ou de Eternit, quero saber com que delicadeza teus dedos e tua boca percorriam os corpos de tuas mulheres. Fale-me delas, das mulheres, eu falarei dos meus homens. 
Perguntas são inúteis, entre nós só movimentos e lembranças cabem. 
Gire comigo, fale do teu tempo de espera, falo do meu. Sempre soube que tu virias, do norte ou do sul, de outras terras, das geleiras, até do inferno, sabe Deus. De bem dentro de mim, da fome que faz este mormaço parecer incêndio. Você viria, eu sempre soube. Ignorei os amores passadiços, as ocupações que garantem a sobrevivência. Fazia tudo rápido e malfeito e quando nada conseguia, segurava a fraqueza do corpo, do cérebro, da alma sem alimento. Por isso fiquei assim: esqueleto doendo de madrugada, mas tenho absoluta certeza: você não vai se importar.
Imbecil que és. Imbecil que sou.
Todos os dias verei você sair do fogo do isqueiro, com um punhado de açúcar e disposto a cerrar as cortinas para que meus olhos não vejam o centro da tela. Mesmo quando ao meu lado não existir companhia alguma pra partilhar o cigarro aceso, você deve comigo estar.
Não queremos mais saber como se consome a razão no mundo: alergias atingem a um total de 1,8 bilhão de pessoas, obras na Piedade forçam a retirada dos camelôs, serão afastados dez mil das estatais, ecossistemas na Amazônia em risco, Sem-terra ameaçam interditar ruas de Marabá, Golfo Pérsico à beira de nova guerra, mulher morta a facadas no Greenwich Village, elefantes adoecem no circo mais velho do país.
Fazendo amor em Itaparica.
Que dizemos um ao outro?
A água era rasa, poder-se-ia andar léguas com ela até os tornozelos, achamos um cântaro dourado, você despejou água do mar em mim. Você não se lembrou de Jeanne é um gênio quando achamos o cântaro, mas falou em Aladin. Falamos, os dois, muitas coisas vazias sobre nós, estivemos longe, nos aproximamos, bebemos suco de melancia no café, não catamos conchinhas nem búzios, não ficamos inteiramente felizes, pagamos 30 reais pela refeição, vimos um navio indo pra Salvador, acho que não passamos muito tempo debaixo do sol, mas continuei a ter dor de cabeça muito tempo depois.
Posso tocar o espaço que há: o seu de esferas, o meu de reentrâncias.
Mas sinto dormência quando tento.
Existe ou não um espaço entre a fragilidade do outro, o mar e as vinte mil flechas envenenadas?
Well, e se existe, quem se importa? O fato é que estive mergulhada, mas não trago notícias do mundo de lá. Porque sou pior que a distância. Antes do mergulho, eu bóio, eu costumo e muitas vezes prefiro mesmo é boiar.
Porque somos nós que inventamos isso de ser frágil, de perseguir palavras que julgamos bonitas, profundas. Eu faço uma lista e te embrulho dentro delas: 
Fragilidade.
Mar.
Cântaro.
Flechas envenenadas.
Itaparica.
Manhã.
Amor.
Lentos e estridentes, como se dedilhássemos guitarras.
Nossas cartilhas mostram pronomes sem correspondência. 
O dia inteiro estivemos dentro do fogo. Barato dos isqueiros, fugidio da paixão.
Todas as palavras são rasas e dizer algo assim pode até parecer profundo. Mas não, cara, não seja imbecil perdendo tanto do teu tempo comigo, umas coisas, te falo com certeza, valem a dor da memória* – como essa vez em Itaparica, soltos no espaço, tão longe de Salvador –, otras cosas, lo siento, pero bien sabes que no. 

* Viagem: Ruy Espinheira Filho

Alessandra Leila é graduada em Letras pela Ufba, onde cursa Mestrado em Literatura Brasileira. É autora de Urbanos (contos), premiado em 1997 pela Copene e editado pela Fundação Casa de Jorge Amado.



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