Uma conversa com Jorge Luís Borges
[in jornal O Povo, 06.03.1999
tradução de Floriano Martins]
Alvaro
Miranda
Do "Foro Literário",
Uruguai
Uma entrevista inédita
no Brasil. O Vida & Arte/Sábado publica a conversa de Borges
com o poeta e ensaísta uruguaio Álvaro Miranda. O ano era
1978. O escritor argentino fala sobre a desimportância que atribui
à crítica literária, revela que não gostava
de ler romances e julga-se "incapaz de elaborar conceitos completos ou
uma teoria da estética".
Para um autor que nasceu com o século
e leva mais de cinqüenta anos dedicados à literatura, um escritor
controvertido, já louvado, já repudiado, sempre discutido,
aplaudido por uns, rechaçado por outros, um escritor mimado, mitificado,
consagrado como um dos maiores escritores de fala hispânica - para
muitos, o maior -, que foi censurado por suas declarações,
criticado por seus detratores e exaltado por seus apologistas, admirado
e venerado como mestre indiscutível em universidades e salas de
conferências, e tudo isto, muitas vezes, sem um cabal conhecimento
de sua obra, sem uma consciência exata de seu estrito valor literário,
conceder outra entrevista podia ser uma forma de alimentar essa fogueira.
No entanto, Jorge Luís Borges parece estar além de todas
as críticas e de todos os aplausos. Sabe que sua obra fala por ele.
Entrevistar Borges? O que não se disse ainda? O
que o próprio Borges já não disse sobre si mesmo?
Difícil tarefa que representa, acima de tudo, um desafio. É
impossível enumerar a lista de entrevistas que concedeu, concede
e concederá com generosidade não isenta de complacência.
Mesmo quando tudo parece dito, a particularidade de Borges consiste em
extrair de uma conversa - especialmente se está centrada na literatura
- um apontamento, um detalhe erudito, uma glosa, um esboço ou um
curioso gracejo. Borges aparece então quase tão inabarcável
como os imaginários universos que constrói com sua lucidez
de artífice. Por isso cada entrevista não esgota sua personalidade,
sua escritura, pelo contrário, as enriquece e projeta para novos
horizontes de aplicação significativa.
Pergunta - Por ocasião de uma
entrevista realizada na França, você manifestou que, em sua
opinião, as teorias literárias não tinham importância...
Resposta - Eu creio que não. Creio
que o importante é o exercício da literatura.
P - Mas a teoria advém como
ente organizador da confusão da obra...
R - Creio que a teoria pode ser um estímulo
em muitos casos. Por exemplo, descreio da democracia, mas se Walt Whitman
tivesse descrito da democracia não teria podido nos dar sua obra
extraordinária. Descreio enfaticamente do comunismo, mas se Neruda
houvesse descrido do comunismo teria seguido sendo um medíocre poeta
romântico. Se Carlyle não houvesse tido a visão de
que a História é a história dos heróis, não
teria deixado sua obra extraordinária. Creio que as teorias são
estímulos para cada escritor. Pessoalmente, admiro o Império
Britânico e lamento que tenha declinado; a fé no Império
Britânico foi uma das causas de Kipling, que lhe permitiu realizar
uma obra esplêndida e isso não se pode negar. É absurdo
julgar um autor por suas opiniões; as opiniões de um autor
são importantes para ele porque podem ser estímulos, podem
ser impulsos para sua obra, mas não têm por que importar aos
demais. Seria absurdo, por exemplo, que eu negasse o valor poético
de Neruda dizendo que descreio do comunismo. Perfeitamente, descreio do
comunismo, mas ele não descria e pôde executar sua obra.
P - Você considera que seu renome
internacional deve-se, em maior parte, à sua narrativa e não
à sua poética e ensaística. Não existe nisso
um menosprezo do trabalho poético?
R - A mim pessoalmente me agradam meus
versos. Mas, em geral, meus amigos acreditam que sou um prosista intruso
na poesia. Ao contrário, creio ter escrito bons contos, mas esses
contos estão mais longe de mim do que minhas poesias, mesmo nas
milongas, por exemplo.
P - Por que se declara incapaz de
escrever um romance?
R - Não sou escritor de romances
porque não sou leitor de romances. Li muito pouco romances. Há
para mim um romancista... seria o romancista: Joseph Conrad,
é o polaco que enriqueceu a literatura inglesa, é o
romancista e o contista. Sei que ao dizer isto estou
um pouco distante do que geralmente se pensa. Depois pensaria também
em Stevenson. Sobre Stevenson escreveu muito elogiosamente André
Gide, com frases que teriam agradado demais a Stevenson: ``Se a vida o
embriaga, como um champanhe bem leviano, bem ligeiro...'' Que lindo, não?
E como teria agradado a Stevenson a imagem do champanhe, ele que gostava
tanto de champanhe.
P - Conheço a atração
que exercem sobre você as literaturas anglo-saxãs. Especificamente
a respeito da literatura alemã, que juízo sobre o Romantismo
e quais as figuras que, dentro deste movimento, lhe impressionam mais profundamente?
R - O Romantismo surge na Escócia,
por volta de 1750, com o Ossián, de Macpherson, que
foi trazido por Goethe e cuja única passagem facilmente legível
encontra-se em ``Die Leiden des jungen Werthers'', onde diz: ``Ossián
superou Homero... etc.''. Eu pensava em escrever um trabalho sobre Macpherson.
Sempre foi acusado de ter sido um falsário e não creio que
fosse um falsário. Creio que ele tomou fragmentos de antigos textos
celtas e fez um poema, mas foi grande poeta, um poeta que se sacrificou
por sua pátria, preferia que as pessoas acreditassem que a Escócia
havia escrito um grande poema e não que ele o havia escrito, é
muito raro um homem que faz isso, não? Você sabia que nos
despachos de Napoleão encontraram frases da versão italiana
do Ossián, de Macpherson? De qualquer maneira, é
estraordinário que o Romantismo surja no século XVIII.
P - Por que?
R - Porque é visto como o século
da Razão. Creio que há outro livro que deve ter sido muito
importante no movimento romântico e que não se menciona nunca:
é a versão que na primeira década do século
XVIII faz de As mil e uma noites Antonie Galland. Imagine
você, esse livro lido por gente que estava no ambiente de regulamentações,
de proibições, de Boileau e que irrompa um livro como As
mil e uma noites nesse mundo ordenado da França. Deve ter
sido extraordinário.
P - Para Borges, Ossián superou
Homero?
R - Homero é inquestionavelmente
um grande poeta, isso não se pode negar. Mas, devo cair aqui em
uma heresia: para mim, a Odisséia é muito superior à
Iliáda. A Ilíada tem algo de ignóbil,
o tema de cantar a ira de um homem. Podemos salvar Homero supondo que se
preferimos Heitor é porque ele também preferia Heitor. Creio
que visto assim... por que todo mundo sente simpatia por Tróia e
por Heitor e ninguém sente simpatia pelos gregos? É porque
são melhor mostrados os troianos. Podemos supor que Homero, mesmo
sendo grego, estava intimamente do lado dos troianos. Se todo mundo leu
a Iliáda do ponto de vista de Tróia é
porque o autor também a escreveu do ponto de vista de Tróia.
Não creio que se equivocasse. Todos queriam descender dos troianos
e ninguém quis descender de Aquiles. Posso lhe dar um dado bastante
curioso: estava lendo a História dos reis da Noruega,
de Snorri Sturluson, e há uma referência a Thor, o deus do
trovão, e este homem escreve no século XIII, na Islândia,
e diz que Thor era, sem dúvida alguma, proveniente de Héc-Thor.
Todos queriam ser troianos, mesmo esse homem, ali no distante norte, queria
que seus deuses fossem troianos. E depois, sempre que se fala de Odin se
diz que veio de Tróia. Todos sentiam atração por Tróia.
Nâo lhes ocorria dizer que eram parentes de Aquiles ou de Agamenon.
P - Em um de seus livros, você
cita as palavras de Coleridge: ``todos os homens nascem aristotélicos
ou platônicos''. Se isto é assim, a qual grupo se consideraria
pertencente?
R - Essa era a opinião de Coleridge:
todo homem nasce aristotélico ou platônico e diz que seria
muito difícil encontrar uma terceira categoria. Eu diria que sou
aristotélico, sou incapaz de idéias gerais, sou capaz de
conceitos concretos, incapaz de uma teoria da estética...
P - No entanto, grande parte de sua
obra é sumamente platônica, idealista.
R - Ah, é que sou idealista em Filosofia,
também. Sim, desde já, creio que ninguém é
absolutamente aristocrático ou platônico, sequer Platão
ou Aristóteles, que devem ter-se entendido por outro lado.
P - Borges, a respeito da literatura contemporânea...
R - Não conheço a literatura
contemporânea. Perdi a vista em 1955. Dediquei-me a estudar o anglosaxão,
depois a estudar o escandinavo, mas não conheço a literatura
contemporânea.
P - Revivamos uma antiga polêmica?
O que é literatura: um ente autotélico ou um ente ancilar?
R - Ancilar não, desde já.
A literatura é um fim em si, é um meio. Se vivo para a literatura,
se minha vida é uma vida essencialmente literária, se vejo
tudo em função da literatura... não me importa ter
sido desventurado porque essa desventura também tem sua dor literária...
em meu caso, escrever é um destino.
P - Há autores sobre os quais
você costuma abundar em reflexões. Gostaria agora de escutar
sua opinião sobre alguns autores clássicos espanhóis.
Por exemplo, você manifestou em uma entrevista que a literatura espanhola
começa com o Romanceiro.
R - Creio que sim. O Poema del Cid
me parece muito carregado. É um começo muito desventurado.
Agora, é uma lástima que a épica tenha desaparecido.
A épica era narrativa e era poética. Vamos aceitar o conceito
tradicional de Homero como fonte da literatura grega; pois Homero não
somente é pai de toda a poesia que se fez depois, como também
do romance que se fez depois. O que é a Odisséia
senão um romance de aventuras? E agora o que resta? Alguns filmes
do faroeste que são épicos, um livro como Sete pilares
da sabedoria, de Lawrence... não sei até onde é
um livro épico, creio que é demasiado reflexivo para ser
épico; Lawrence é demasiado inteligente para ser um grande
poeta épico, não? Creio que Kipling era épico.
P - Em Kipling havia possivelmente
um espírito épico...
R - Tinha um espírito épico,
sim... Há algo que se encontra na literatura portuguesa e que falta
totalmente na espanhola e que é o sentido do mar, não?, é
toda literatura mediterrânea, em Dom Quixote não
se sente o mar, Fray Luis fala do mar... é uma lástica que
tenha faltado o mar na literatura espanhola, mas é natural, um país
mediterrâneo... que interessante, estava lendo uma história
sobre o fracasso da Armada Invencível, parecia que poderia triunfar
e não triunfou por um detalhe que foi muito importante em lugar
de eleger a marinha galega e a portuguesa, elegeu a marinha catalã,
que estava acostumada com o Mediterrâneo, e quando tiveram que se
ver com os mares do norte naturalmente fracassaram, porque tinham que enfrentar
os ingleses, acostumados a esses mares. Com esse detalhe poder-se-ia ter
modificado toda a História. Que interessante pensar que se houvessem
elegido outra marinha podiam haver triunfado, não?
P - Benedetto Croce estabelecia uma necessária
distinção entre poeta, o que cria obras originais, e literato,
o que faz obras úteis mas repetitivas...
R - A palavra gramático diz exatamente
o mesmo. Só que gramático está em grego e literato
em latim, mas é a mesma idéia de letra. Quando se fala de
Saxo Grammaticus não se quer dizer que esse historiador
dinamarquês foi um gramático, quer dizer que era um literato,
um homem que havia lido muito.
P - Em nosso século, Ezra Pound
e recentemente Ernesto Sábato dotaram a expressão literato
de um matiz pejorativo ao referi-la a um escritor carente de originalidade.
R - Que interessante, quem sabe, um dos
que começaram com isso foi Verlaine, não? Lembra? ``... tout
le reste est litterature''. Ali a palavra literatura está usada
depreciativamente e usada por um grande literato e um grande poeta como
Verlaine, não? Agora se usa literato no sentido de retórico,
no sentido depreciativo.
P - E a originalidade, é possível?
R - Não creio que seja possível.
Para começar, todos escrevemos no contexto de um idioma. De um idioma
podemos pensar o que queremos mas já é uma tradição.
Se estou no idioma espanhol estou dentro da literatura espanhola e mais
exatamente na literatura castelhana. Sem dúvida, pesam sobre mim
tradições cujos nomes não ouvi nunca. Todo o passado
está pensando sobre mim. Quem sabe Walt Whitman foi original, mas
se pensamos que ele havia lido os hindus, que ele havia lido os salmos
da Bíblia, que havia lido Emerson, não sei onde está
o original, não? Claro que isso não diz nada, porque todos
temos ao nosso alcance os grandes livros, todos podemos ser grandes escritores
e no entanto não ocorre assim, não? O Modernismo foi para
mim o movimento literário mais importante da literatura espanhola
e foi muito injusto quando se disse que tudo o que eles escreveram já
estava mais ou menos prefigurado e talvez ultrapassado em Hugo, em Verlaine.
Mas esses livros estavam ao alcance de todos e no entanto nem todos foram
Rubén Dario.
P - O ritmo de desenvolvimento das Artes não
costuma ser iniforme e equilibrado. Há perídos fecundos em
uma ou duas expressões artísticas e ao mesmo tempo lentos
e mesmo estáticos em outras formas artísticas...
R - A Inglaterra deu filosofia e deu poesia,
mas não deu outras artes especialmente. Creio que a Inglaterra contribuiu
muito escassamente para a música e a arquitetura. Tenho uma quarta
parte de sangue inglês. Quero pessoalmente a Inglaterra e orgulha-me
de ter sangue inglês; no entanto, creio que é uma lástima
que se tenha passado do inglês para o francês, não porque
creia que o idioma francês seja superior ao idioma inglês,
mas sim por este fato que é muito significativo e que ninguém
notou até agora: quando todos estudamos francês o fazemos
em função da cultura francesa, estudava-se francês
para ler Montaigne, Voltaire, Hugo, Verlaine. Ao contrário, agora
não se estuda inglês senão com fins comerciais, é
o subalterno inglês dos Estados Unidos, mas se estuda com fins comerciais,
não com fins literários; o francês era estudado como
em uma época se estudava o latim, as pessoas estudavam latim para
ler Horácio, Virgílio, Sênaca, Tácito.
Tradução de Floriano Martins
VIDA E OBRA
24/08/1899 - Jorge Luis Borges nasce em
Buenos Aires, na Argentina.
1909 - Traduz O Príncipe Feliz,
de Oscar Wilde.
1914 - A família de Borges viaja
para a Europa e fixa residência em Genebra.
1919 - Mudam-se para Mallorca, Espanha.
1921 - Borges volta para Buenos Aires. Começa
a colaborar em publicações literárias.
1923 - Publica seu primeiro Livro, Fervor
de Buenos Aires, e faz uma segunda viagem à Europa.
1929 - Publica Caderno San Martín.
1930 - Publica Evaristo Carriego.
1935 - Publica História Universal
da Infâmia.
1937 - Passa a trabalhar em uma biblioteca
municipal.
1938 - Morre seu pai, Jorge Guillermo Borges.
1942 - Publica com o amigo Bioy Casares,
sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq, Seis Problemas para Dom
Isidro Parodi.
1944 - Publica Ficções.
1946 - Perón toma o poder, e Borges
é demitido da Biblioteca Municipal.
1949 - Publica O Aleph.
1955 - Borges é nomeado diretor da
Biblioteca Nacional após a queda de Perón.
1956 - Passa a dar aulas de literatura inglesa
na Univesidade de Buenos Aires. É proibido de ler ou escrever por
seus oftalmologistas.
1960 - Publica O Fazedor.
1961 - Divide com Samuel Beckett o Prêmio
Formentor. Conhece os EUA.
1963 - Vai à Europa pela terceira
vez. Passa a viajar com freqüência para receber prêmios
e dar palestras.
1964 - Em Paris, a revista L'Herne
publica uma edição dedicada à sua obra.
1967 - Casa-se com Elsa Astete Millián.
1969 - Publica Elogio da Sombra.
1970 - Publica O Informe de Brodie.
Divorcia-se de Elsa.
1972 - Publica O Ouro dos Tigres.
1975 - Publica O Livro de Areia, A
Rosa Profunda e Prólogos. Sua mãe morre,
aos 99 anos.
1976 - Publica A Moeda de Ferro.
1985 - Publica Os Conjurados.
1986 - Casa-se com María Kodama,
antiga colaboradora.
14/06/1986 - Borges morre de câncer,
em Genebra.
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