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Ariadne Araújo


 


Os novent'anos de Patativa do Assaré


Caboclo resistente


 


Noventa anos não é para qualquer um. O corpo cansado, sem fôlego, já cede ao tempo. Mas Patativa ainda se diverte com a boa prosa ou com as brincadeiras dos poetas da serra.


 

Três da manhã é cedo demais para acordar, mas o poeta anda inquieto. Perde o sono assim, à toa. No quarto ao lado, a filha Inês desconfia: vai de fininho saber do pai. O jeito é fazer um café e começar o dia, os dois a prosear na cozinha, ainda de madrugada. Mas não é só a insônia que anda a assombrar as noites de Patativa de Assaré. Uma moleza, uma falta de ar e fôlego curto têm estragado os dias do poeta, agora cansado. No carnaval, uma comida fez mal e deixou o aniversariante do mês na cama. Não fosse pelo aperreio e mal estar, Antônio Gonçalves não tinha nem se incomodado com a reclusão forçada, já que era tempo de pândega nas ruas, de mela-mela nas praças de Assaré.

Carnaval? Que carnaval, que nada! Na quarta-feira de cinzas foi convalescer na serra. Fuga também do assédio por conta do aniversário. Lá, a visita esperada é a do sobrinho, Geraldo Gonçalves de Alencar, 53. Outro discípulo, por assim dizer, mas que agora desafia o professor. Após o almoço, é de lei o tio o parente predileto gastarem a tarde numa brincadeira de poeta. É desse remédio que Patativa vai atrás. Um mote orienta os dois. Geraldo escreve a estrofe em um caderno. Patativa escreve a estrofe na mente. Depois, quem se saiu melhor? Ora, isso não interessa. "A gente é tão apaixonado, que isso é um divertimento'', diz o sobrinho.

Também na serra de Assaré moram outros poetas. Todos tocados pela poesia matuta. Todos bons. Mas ninguém de improviso, a enformar os versos dentro da cabeça, um a um, montando a seqüência, a rima, a métrica, a recitá-los depois quantas vezes for, como Patativa faz. Maurício Gonçalves, 48, explica: o fato dele ter ficado famoso, despertou a gente para a poesia boa. Mas é um mistério ter o estalo do verso, de repente, como se fosse acometido, vez em quando, pela poesia. ``É que a musa é lerda'', diz Maurício. Sendo o caso, para a poesia do sobrinho Geraldo sobre o empregado explorado, Patativa até arranja a resposta, a do patrão descarado.

Mas, se não é dia de serra, o serrano se arrisca num passeio pela praça Nossa Senhora das Dores, bem em frente à casa da filha, Lúcia Gonçalves, em Assaré. Um pátio árido, feio, inclusive, para os olhos cegos do poeta. Mas lá ele faz uma caminhada tímida, rápida. Afinal, da porta da casa até a praça é só atravessar a rua estreita. No entanto, para um homem com tanta idade, é um esforço só possível em manhãs mais bem dispostas. E se o poeta tivesse vista boa, da Nossa Senhora das Dores poderia ver até a quantas anda a reforma do memorial que vai levar seu nome.

Pode ter sido o pé na casa dos noventa ou ainda os sintomas que lhe afobam o juízo. O caso é que agora Patativa deu falar em morte. Medo de sentir dor, explica ele. Nada de mau agouro, não. Deixar de fumar? Nem pensar. Quando o médico passa remédio, ele larga por uns dias. Mas é uma tristeza só. Não tem nem inspiração. Teimosia de poeta que sabe das coisas:``faz mal pra danar, mas me viciei, tenho essa satisfação com esse cigarrinho...'' Assim, o cigarro fica. Nonagenário, mas ainda senhor de sua vontade. Pai quer assim, diz Lúcia. Pai gosta assim, responde Inês. (Ariadne Araújo)

Um pedaço de lingüiça e uma prosa
 

Para um caboclo do sertão, nascido e criado na região sul do Estado (Cariri), fica difícil gostar de mar. Talvez por isso Antônio Gonçalves da Silva tenha resistido a, pelo menos uma vez na vida, esbaldar-se nas praias da Capital. As viagens para o litoral, muitas, criaram a oportunidade. Ele assuntou, achou bonito e deu meia volta volver. Nunca tomou banho de mar, mas isso não fez falta. Teria sido mais grave se não tivesse tido a sorte de topar com a famosa lingüiça caseira, na barraca de Zenilda Gomes Ferreira, 66, no mercado público de Assaré, a 623 quilômetros de Fortaleza.

Agora não mais, que a idade não permite, mas Patativa do Assaré era freguês assíduo. Vinha fazendo rima, pra prosear e experimentar mais um pedaço de lingüiça, medida no palmo da mão grande da cozinheira: frita num velho fogão Alfa, acompanhada de tapioca e café pingado. Ela explica que a turistada, gente que vem atrás do poeta, também gosta. Eles chegam aqui e perguntam onde e quando podem marcar uma hora para falar com ele, diz Zenilda. ``Eu respondo: por aí, pelas praças, que ele é um homem simples, não tem isso não''.

As idas ao mercado municipal, para um bate-papo e refeição rápida, são um costume em Assaré. É lá que se pode encontrar o melhor e o mais completo café-da-manhã: panelada, cuscuz com carneiro, tapioca com bife, caldo de ossobuco, carne de porco. Um cardápio extravagante demais até pra quem tem bom apetite. O cafezeiro Manuel Jorge da Silva, 49, no entanto, parece não ter dificuldade de tocar seu comércio. É o campeão de vendas: uma média de 40 por dia. No box da Zenilda, a mesma coisa. Ela só não vende mesmo o calendário com o nome e a caricatura do Patativa do Assaré, que a clientela vive tentando levar.

A festa de aniversário do poeta deve aumentar o movimento no mercado. Bom para as vendas, porque o homenageado é querido em toda parte. Zenilda arrisca: acha que vai vender tanto quanto na festa da padroeira - Nossa Senhora das Dores -, mais de 50 metros de lingüiça. O artista plástico José Juvêncio Pereira, 41, o Jucas, também vive a expectativa do grande dia. Teve que dar duro pra dar conta de uma encomenda especial: a confecção de pequenas vinte e cinco estátuas, feitas de pedra sabão, com a cara do aniversariante. Souvenirs para os convidados. Uma delas para o governador Tasso Jereissati, com certeza. Motivo mais suficiente para tanto frenesi na cidade que vai acordar mais buliçosa no dia do Patativa.

Patriarca à moda moderna
 

A família mora perto. Na serra, a distância média da casa de um para outro é de 50 metros. Em Assaré, a filha Lúcia foi morar com o pai para cuidados amiúdes. Mas, em caso de saudade, é só procurar por eles na parede da sala. Estão todos lá. Retratos da parentalha, os vivos, os mortos. Tem também Belinha, muito filmada, diz o poeta. Tem também amigos, alguns nem tanto, outros ilustres, uns anônimos. O mais bonito, multiplicado e emoldurado para cada um dos filhos, é o de Patativa sentado, pensativo e ainda moço, elegante em um terno branco, sapato bico fino, óculos escuros, pernas cruzadas.

À moda antiga, na maneira do sertão. A família Patativa respeita o velho poeta e o trata com mimos de patriarca. Bênção pai, bênção filha. Se ele quer, quem vai dizer não? Os filhos crescidos, já com barba na cara e pais de outros, são como meninos obedientes, a sorrir timidamente para o chefe dos Gonçalves. Patativa cuida de todos. Afonso arrancou um dente, foi? Cuidados de pai que ultrapassam questões de saúde. Isso quer dizer que o dinheiro da aposentadoria pode socorrer o mais necessitado.

Afonso Gonçalves fala pouco. Diz que o pai criou os filhos na base do conselho, sem palmada, mas com respeito. Compreensão, remenda Mirian Gonçalves. Amor, completa a outra filha Inês. Patativa explica: coisa de pai e mãe sabidos, que querem conquistar e agradar os filhos. Já o irmão mais novo de Patativa, 82, cavuca a memória, ainda boa, na cata de um causo de infância, um que fosse engraçado ou importante. Mas só achou arenga de menino besta. Ele e Patativa muito unidos, desde sempre, até hoje. `` A gente palestra muito''.

 



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07/07/2006