André Seffrin
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Os anos mais antigos do
passado
Carlos Heitor Cony
Record, 251 páginas
ROTEIRO DE QUASE MEMÓRIA
Carlos Heitor Cony tinha
passado duas décadas sem publicar romance quando ressurgiu com Quase
memória (1995). Como cronista, publicou pouco em livro: Da arte
de falar mal (1963), O ato e o fato (1964) e agora este Os anos mais antigos
do passado que, como Quase memória, é livro que já
nasce clássico.
Uma reunião de crônicas
que vale como um volume de memórias. Embora fragmentado em relatos
de viagens, em recordações da infância, em alegorias
de fatos políticos (cheias de humor e sarcasmo), em registros da
rotina do mundo fixados com o pulso do ficcionista, a espinha dorsal do
livro é uma longa e mansa busca do tempo perdido. A sua fragmentação
é condicionada sobretudo pelo exercício diário que
define o gênero, mas suas páginas não deixam de nos
transmitir o gosto difuso e fascinante da grande aventura da vida. Seja
através da visão retrospectiva dos anos mais antigos do passado
(elemento do memorialismo), seja pela notação diária
dos fatos transpostos num lirismo de primeira água. São as
marés montantes do passado, como queria Mário Quintana, que
chegam sem avisar, e tanto são motivo de apreensão quanto
de surpresa e maravilhamento.
A face amargurada, marcante
em Cony, dá sempre lugar a um certo tom elegíaco e à
índole lírica. As suas memórias, que a rigor talvez
Cony nunca escreveria, aqui estão, como em Quase memória,
disfarçadas, quem sabe exorcizadas. É a sua história,
o belo e o feio da humana lida, que aos poucos ele dilui e transfixa nos
romances e nas crônicas.
Neles, Cony sabe rir como
poucos deste circo do mundo, com toda sua carga de frustrações
e desastres, sua beleza e sua glória. Ri de um universo que é
regido dos altos tronos, seja por Deus, o diabo ou um ser qualquer que
se arrogue.
Descido aos infernos de sua
saudade e de sua incompreensão das coisas, o cronista revive uma
fantasia de carnaval antigo, as rezas da mãe contra possíveis
desgraças, os extraordinários balões que o pai fabricava,
os tantos personagens de rua do subúrbio do menino, o amigo Otto
Maria Carpeaux, a visão das mãos do pai morto, impressionante
visão: “Mãos que começaram a ficar mais brancas e
mais quietas: dentro delas, o nada cheio de tudo o que ele fora”. O lirismo
é mesmo o elemento fixador desses movimentos de fluxo e refluxo
da memória, pois Cony vê as coisas com os olhos transfigurados
do poeta.
Se podemos dizer que o seu
humor é uma doce herança machadiana, na crônica sua
veia lírica só encontra paralelo em escritores da estirpe
de Rubem Braga, Antonio Maria e Drummond. E também José Carlos
Oliveira ou o Tabajara Ruas de Um porto alegre (Mercado Aberto, 1998).
São cronistas que escrevem iluminados pelo poeta que não
deixam de ser. Líricos deste tempo escuro e trepidante.
Publicado no
Caderno Idéias-Livros do JORNAL DO BRASIL
20 março de 1999.
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