"Imaginei o seguinte: se
eu possuir uma sela, um dia o cavalo vem. A oportunidade compra outra,
não é? Trouxe o disco, mandei rodar na casa de um amigo,
ele achou bonito demais. Com quatro dias, Deus deu um jeito, comprei a
radiola"
Entrevista
Escolhedor de cantoria
ELEUDA
DE CARVALHO
Da Editoria do Vida & Arte
Gerardo Teodósio
dos Santos (foto), improvisador e folhetista residente em Itapipoca, é
dono de um bem cuidado acervo em vinil, contendo 114 LPs só de pelejas,
com mais de 300 violeiros do Nordeste. A coleção inclui ainda
800 fitas com disputas poéticas que ele gravou. Na Estrela da Poesia,
os interessados na arte dos menestréis encontrarão discos
raros de Pedro Bandeira, Moacir Laurentino, Geraldo Amâncio, Benone
Conrado, Otacílio Batista e muitos mais.
A inscrição está
desbotando, mas o dono da casa faz gosto em apresentar: Estrela da Poesia,
estabelecimento onde os amantes da cantoria e pelejas de viola podem encontrar
quase tudo que foi gravado em disco, além das fitas-cassete onde
estão registrados encontros e festivais de cantadores, acontecidos
por este Brasil a dentro. Ele é Gerardo Teodósio dos Santos,
53 anos, ferroviário aposentado, poeta e autor de diversos folhetos
circunstanciais, pai de quatro filhos com sua Maria Nair. Um casamento
começado na adolescência e que nem as muitas viagens, quando
era violeiro, arrefeceu. Gerardo Teodósio deixou de cantar faz tempo,
mas cultiva com dedicação a maestria dos poetas populares.
Os discos e as fitas são acondicionados em pequenos baús
de madeira, que desvenda generoso para os amigos e todos que compartilham
com ele o apreço pela arte da improvisação.
Vida & Arte - Como o senhor começou sua
coleção de cantoria?
Gerardo Teodósio dos Santos - Olha,
é o seguinte, não sabe? Isso aí depende muito do gosto.
Que compro disco não é quando tenho condições,
é quando eu encontro. Tenho muitos amigos, eles sabem que eu gosto
e zelo, quando aparece qualquer trabalho eles encaminham pra mim: Geraldo
Amâncio, Sebastião Dias, Pedro Bandeira, Valdir Teles... São
300 cantadores, conheço tudim ao vivo. Ah, sim, o começo,
né? Eu era criança, um padrinho meu foi, me deu um presente,
uma cabritinha. Quando foi com seis anos, tinha 12 cabeças. Aí
ele trocou por uma bezerra. Isso foi em 57. Em 58, houve uma mortandade
muito grande de gado, só minha bezerrinha ficou. Pra não
ficar sem a marca, meu padrinho deu 1.200 reais na novilha. Comprei uma
roupa pra papai, um vestido pra mamãe, dois alqueires de feijão,
botei em casa. E comprei um violão. Desse violão, comecei
a brincar na casa dos amigos, e o povo achava que a gente entendia alguma
coisa, começamos a viajar. Saí de casa com 12 anos, improvisando
com todos os cantadores que existia. Comecei com os pequeninim, depois
apareceu os maiores, assim foi indo. Quando eu tava com 28 anos, parei,
já casado. Casei com 17 anos. Trabalhava com agricultura no inverno,
no verão saía. É certo que, depois, comecei a escrever
folheto, eu tinha inteligência pra fazer. Pois bem, o primeiro disco
que comprei foi Moacir Laurentino e Sebastião da Silva, sem ter
radiola. Imaginei o seguinte: se eu possuir uma sela, um dia o cavalo vem.
A oportunidade compra outra, não é? Trouxe o disco, mandei
rodar na casa de um amigo, ele achou bonito demais. Com quatro dias, Deus
deu um jeito, comprei a radiola.
V&A - Quando começou mesmo a sua coleção?
É fácil adquirir os discos?
Gerardo Teodósio - Há 20
anos, mais ou menos, mas eu não sou pesquisador, sou escolhedor.
Cheguei a possuir oito discos de Moacir Laurentino e Sebastião da
Silva e nenhum de outras pessoas. Eles tinham mais facilidade, foram gravando.
Quando foi depois apareceu Ivanildo Vilanova e Geraldo Amâncio. Muito
bom disco. Depois encontrei um disco muito importante, Pedro Bandeira com
Otacílio Batista, bom demais. Fui comprando, devagarinho. Comecei
a ir em Fortaleza, comprava e encomendava mais. Fui pro Juazeiro, em 80.
Levei uns folhetos da visita do Papa, com retrato dele. Eu tenho uma carta
do Papa, isso é muito importante. Quando eu tava comprando um carrego
de pilha numa bodega, um rapaz viu o romance do Papa, tava assim na minha
pasta. Ele disse, me diga uma coisa, quem é o autor desse trabalho?
Eu disse, eu mesmo que fiz. E ele, olhe rapaz, bem aqui assim mora um poeta,
na rua da Conceição, 446. Fui bater lá. Era a casa
de Pedro Bandeira. Cheguei, estavam lá Otacílio Batista e
o João Bandeira, irmão do Pedro. Houve uma cantoria muito
linda e tudo, gravei. Pedro Bandeira me disse, vou lhe mostrar minha discoteca.
O que você não tiver lá, você leva, quando eu
for a Itapipoca procuro sua casa e trago os que eu não tiver. Encontrei
quatro discos que eu não tinha. Era confiança, nera? Agradeci
muito, deixei tudo embaladim. Fui na rua São Pedro, nas casas de
disco encontrei os quatro pra vender. Tinha levado dinheiro, inda comprei
de outras qualidades. Entreguei a Pedro Bandeira os dele, agradeci muito
e disse, olhe, lá em Itapipoca, na hora que o senhor quiser, pode
pegar os discos, porque a consideração que o senhor teve
a mim está valendo. Mas ele nunca veio. Devagarim, fui comprando,
comprando.
V&A - Onde tiver uma peleja de viola, o senhor
leva o gravador. Quantas fitas até o momento?
Gerardo Teodósio - Tenho 800 fitas,
só de cantoria. Eu vendo fita dos grandes cantadores porque não
tem quem tenha os discos. Hoje em dia, o povo não sabe o valor que
tem na poesia. Um cantador como Geraldo Amâncio, pra mim é
mais do que um médico. Porque o doutor só tem uma área
só, e o cantador mexe nas áreas dos outros. O cantador é
vaqueiro, é padre, é um jornalista. O cantador é a
natureza. Cantar ou fazer versos não é querer. Tenho um rapaz
aqui de 20 anos. Desde criança que ele peleja pra fazer um verso
e não faz. Eu tenho grau pouco de conhecimento escolar, mas a natureza
é superior a tudo. A cantoria, a antiga mesmo, são
36 estilos, e cada estilo se divide em vários. A vida do cantador
eu fiz assim, em dez linhas: Cantador é homem folclorista/ incansável
na luta de improviso/ trabalhando com os dedos e com o juízo/ vai
levando uma vida de artista.// Desempenha o papel de repentista/ e é
querido em todas capitais/ toda moça que o vê lhe dá
cartaz/ é inspirado pelo dom da natura/ que um doutor, com a mais
alta formatura/ ainda não faz o trabalho que ele faz.
V&A - Qual o estilo mais difícil, na
sua opinião?
Gerardo Teodósio - Galope a beira-mar,
é a coisa mais difícil de fazer. Porque o beira-mar precisa
de português limpo e a pessoa ter lembrança, as palavras que
disser à direita tem que dizer às avessas. Vou citar um,
pra senhora:
Eu canto galope em qualquer salão
meu versejar parece brinquedo
é na mão, é na junta, é no
dedo
é no dedo, é na junta, é na mão
é praia, catinga, brejo, sertão
é longe, é distante, é onde eu chegar
é no jota, é no ele, é no eme, é
no cá
é no cá, é no jota, é no
ele, é no eme
é no branco, é no preto, é no roxo,
é no creme
é nos dez de galope na beira do mar.
É difícil, precisa ter a língua desenrolada.
Galope não é pra todo mundo. Tenho um disco aqui do Sebastião
Dias e Ivanildo Vilanova, dos melhores que tem no país, num galope
a beira-mar assoletrado. Isso aí não sei fazer, não
senhora, sou consciente. Só sei aquela medida que eu sei. Aí
é um trabalho que não é somente de poesia, é
um conhecimento muito alto.
V&A - E por que o senhor deixou a vida de cantador?
Gerardo Teodósio - Quando me empreguei
na Rffsa, vendi a viola. Meu chefe disse, Gerardo, não é
pra fazer isso. Mas, doutor, é o seguinte: eu sei que o senhor não
diz, mas as pessoas dizem assim, como é que a pessoa é empregado
e quer a vida de malandragem? Porque o pessoal acha. E outra coisa, a poesia
tem isso: se a pessoa começar a viajar sábado, domingo, quando
é segunda não quer trabalhar, não, quer de jeito nenhum.
Porque para quem sabe andar no mundo, a vida é muito boa. Pra quem
não sabe, é um precipício. Nasci a duas léguas
e meia daqui distante, num mato, onde o povo era selvagem. Por eu me desenvolver,
arranjei foi intriga. Eu não aceitava aquele estilo de lá,
um povo que não sabia de nada, não votava. Era uma tribo
de índio, pode-se dizer. Um dia, foram dizer que a pessoa falava
no telefone, saía do outro lado o bafo. Eu podia aguentar um negócio
desse? Fui, disse assim: Zezim, tu tá pensando que o telefone é
um cano de mamoeiro que se fala aqui, sai o bafo do outro lado? Aquilo
ali é coisa elétrica, Zezim, que ninguém pode nem
entender, nem ocado é, é fio enroladozim, coberto com plástico,
Zezim. Eles se zangaram, ele tinha um problema de loucura, ele disse, pois
é, no dia que eu enlouquecer, vou quebrar sua casa. E foi dito e
certo. Passaram a me perseguir. Se eu plantava um roçado, eles botavam
14 vacas pra invadir. Trabalhei cinco anos perdidos. Fiz uma casa, de taipa,
a mais bonita do mundo, em cima dum alto, botei oito janelas, quatro dum
lado, quatro do outro. E todo domingo tinha cantador. Quanto mais animação
na minha casa, maior era a questão. Eu ia dormir de noite, na hora
que começava a dormir, sonhava matando eles, eles me matando. Quando
acordava, era com dor de cabeça. Quando ia dormir pra passar a dor
de cabeça, era sonhando com eles. Eu digo, vou ficar doido. Nunca
no mundo gostei de agravar ninguém. Vi que não tinha condições,
mudei minha casa, trouxe nas costas pra Itapipoca. Vendi a telha, trouxe
a madeira todinha, fiz uma casa aqui. Aí a gente continuou pra frente
o barco, me empreguei na Rffsa. Tudo que estou contando pra senhora é
coisa que aconteceu.
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