Jornal O Povo, 14.10.1998
        "Imaginei o seguinte: se eu possuir uma sela, um dia o cavalo vem. A oportunidade compra outra, não é? Trouxe o disco, mandei rodar na casa de um amigo, ele achou bonito demais. Com quatro dias, Deus deu um jeito, comprei a radiola"
 

Entrevista 
Escolhedor de cantoria 

 ELEUDA DE CARVALHO 
Da Editoria do Vida & Arte 

 Gerardo Teodósio dos Santos (foto), improvisador e folhetista residente em Itapipoca, é dono de um bem cuidado acervo em vinil, contendo 114 LPs só de pelejas, com mais de 300 violeiros do Nordeste. A coleção inclui ainda 800 fitas com disputas poéticas que ele gravou. Na Estrela da Poesia, os interessados na arte dos menestréis encontrarão discos raros de Pedro Bandeira, Moacir Laurentino, Geraldo Amâncio, Benone Conrado, Otacílio Batista e muitos mais. 

A inscrição está desbotando, mas o dono da casa faz gosto em apresentar: Estrela da Poesia, estabelecimento onde os amantes da cantoria e pelejas de viola podem encontrar quase tudo que foi gravado em disco, além das fitas-cassete onde estão registrados encontros e festivais de cantadores, acontecidos por este Brasil a dentro. Ele é Gerardo Teodósio dos Santos, 53 anos, ferroviário aposentado, poeta e autor de diversos folhetos circunstanciais, pai de quatro filhos com sua Maria Nair. Um casamento começado na adolescência e que nem as muitas viagens, quando era violeiro, arrefeceu. Gerardo Teodósio deixou de cantar faz tempo, mas cultiva com dedicação a maestria dos poetas populares. Os discos e as fitas são acondicionados em pequenos baús de madeira, que desvenda generoso para os amigos e todos que compartilham com ele o apreço pela arte da improvisação. 
 

Vida & Arte - Como o senhor começou sua coleção de cantoria? 
Gerardo Teodósio dos Santos - Olha, é o seguinte, não sabe? Isso aí depende muito do gosto. Que compro disco não é quando tenho condições, é quando eu encontro. Tenho muitos amigos, eles sabem que eu gosto e zelo, quando aparece qualquer trabalho eles encaminham pra mim: Geraldo Amâncio, Sebastião Dias, Pedro Bandeira, Valdir Teles... São 300 cantadores, conheço tudim ao vivo. Ah, sim, o começo, né? Eu era criança, um padrinho meu foi, me deu um presente, uma cabritinha. Quando foi com seis anos, tinha 12 cabeças. Aí ele trocou por uma bezerra. Isso foi em 57. Em 58, houve uma mortandade muito grande de gado, só minha bezerrinha ficou. Pra não ficar sem a marca, meu padrinho deu 1.200 reais na novilha. Comprei uma roupa pra papai, um vestido pra mamãe, dois alqueires de feijão, botei em casa. E comprei um violão. Desse violão, comecei a brincar na casa dos amigos, e o povo achava que a gente entendia alguma coisa, começamos a viajar. Saí de casa com 12 anos, improvisando com todos os cantadores que existia. Comecei com os pequeninim, depois apareceu os maiores, assim foi indo. Quando eu tava com 28 anos, parei, já casado. Casei com 17 anos. Trabalhava com agricultura no inverno, no verão saía. É certo que, depois, comecei a escrever folheto, eu tinha inteligência pra fazer. Pois bem, o primeiro disco que comprei foi Moacir Laurentino e Sebastião da Silva, sem ter radiola. Imaginei o seguinte: se eu possuir uma sela, um dia o cavalo vem. A oportunidade compra outra, não é? Trouxe o disco, mandei rodar na casa de um amigo, ele achou bonito demais. Com quatro dias, Deus deu um jeito, comprei a radiola. 

V&A - Quando começou mesmo a sua coleção? É fácil adquirir os discos? 
Gerardo Teodósio - Há 20 anos, mais ou menos, mas eu não sou pesquisador, sou escolhedor. Cheguei a possuir oito discos de Moacir Laurentino e Sebastião da Silva e nenhum de outras pessoas. Eles tinham mais facilidade, foram gravando. Quando foi depois apareceu Ivanildo Vilanova e Geraldo Amâncio. Muito bom disco. Depois encontrei um disco muito importante, Pedro Bandeira com Otacílio Batista, bom demais. Fui comprando, devagarinho. Comecei a ir em Fortaleza, comprava e encomendava mais. Fui pro Juazeiro, em 80. Levei uns folhetos da visita do Papa, com retrato dele. Eu tenho uma carta do Papa, isso é muito importante. Quando eu tava comprando um carrego de pilha numa bodega, um rapaz viu o romance do Papa, tava assim na minha pasta. Ele disse, me diga uma coisa, quem é o autor desse trabalho? Eu disse, eu mesmo que fiz. E ele, olhe rapaz, bem aqui assim mora um poeta, na rua da Conceição, 446. Fui bater lá. Era a casa de Pedro Bandeira. Cheguei, estavam lá Otacílio Batista e o João Bandeira, irmão do Pedro. Houve uma cantoria muito linda e tudo, gravei. Pedro Bandeira me disse, vou lhe mostrar minha discoteca. O que você não tiver lá, você leva, quando eu for a Itapipoca procuro sua casa e trago os que eu não tiver. Encontrei quatro discos que eu não tinha. Era confiança, nera? Agradeci muito, deixei tudo embaladim. Fui na rua São Pedro, nas casas de disco encontrei os quatro pra vender. Tinha levado dinheiro, inda comprei de outras qualidades. Entreguei a Pedro Bandeira os dele, agradeci muito e disse, olhe, lá em Itapipoca, na hora que o senhor quiser, pode pegar os discos, porque a consideração que o senhor teve a mim está valendo. Mas ele nunca veio. Devagarim, fui comprando, comprando.  

V&A - Onde tiver uma peleja de viola, o senhor leva o gravador. Quantas fitas até o momento? 
Gerardo Teodósio - Tenho 800 fitas, só de cantoria. Eu vendo fita dos grandes cantadores porque não tem quem tenha os discos. Hoje em dia, o povo não sabe o valor que tem na poesia. Um cantador como Geraldo Amâncio, pra mim é mais do que um médico. Porque o doutor só tem uma área só, e o cantador mexe nas áreas dos outros. O cantador é vaqueiro, é padre, é um jornalista. O cantador é a natureza. Cantar ou fazer versos não é querer. Tenho um rapaz aqui de 20 anos. Desde criança que ele peleja pra fazer um verso e não faz. Eu tenho grau pouco de conhecimento escolar, mas a natureza é superior a tudo. A cantoria, a antiga mesmo, são 36 estilos, e cada estilo se divide em vários. A vida do cantador eu fiz assim, em dez linhas: Cantador é homem folclorista/ incansável na luta de improviso/ trabalhando com os dedos e com o juízo/ vai levando uma vida de artista.// Desempenha o papel de repentista/ e é querido em todas capitais/ toda moça que o vê lhe dá cartaz/ é inspirado pelo dom da natura/ que um doutor, com a mais alta formatura/ ainda não faz o trabalho que ele faz.  

V&A - Qual o estilo mais difícil, na sua opinião? 
Gerardo Teodósio - Galope a beira-mar, é a coisa mais difícil de fazer. Porque o beira-mar precisa de português limpo e a pessoa ter lembrança, as palavras que disser à direita tem que dizer às avessas. Vou citar um, pra senhora:  

Eu canto galope em qualquer salão 
meu versejar parece brinquedo 
é na mão, é na junta, é no dedo 
é no dedo, é na junta, é na mão 
é praia, catinga, brejo, sertão 
é longe, é distante, é onde eu chegar 
é no jota, é no ele, é no eme, é no cá 
é no cá, é no jota, é no ele, é no eme 
é no branco, é no preto, é no roxo, é no creme 
é nos dez de galope na beira do mar.  

É difícil, precisa ter a língua desenrolada. Galope não é pra todo mundo. Tenho um disco aqui do Sebastião Dias e Ivanildo Vilanova, dos melhores que tem no país, num galope a beira-mar assoletrado. Isso aí não sei fazer, não senhora, sou consciente. Só sei aquela medida que eu sei. Aí é um trabalho que não é somente de poesia, é um conhecimento muito alto. 

V&A - E por que o senhor deixou a vida de cantador? 
Gerardo Teodósio - Quando me empreguei na Rffsa, vendi a viola. Meu chefe disse, Gerardo, não é pra fazer isso. Mas, doutor, é o seguinte: eu sei que o senhor não diz, mas as pessoas dizem assim, como é que a pessoa é empregado e quer a vida de malandragem? Porque o pessoal acha. E outra coisa, a poesia tem isso: se a pessoa começar a viajar sábado, domingo, quando é segunda não quer trabalhar, não, quer de jeito nenhum. Porque para quem sabe andar no mundo, a vida é muito boa. Pra quem não sabe, é um precipício. Nasci a duas léguas e meia daqui distante, num mato, onde o povo era selvagem. Por eu me desenvolver, arranjei foi intriga. Eu não aceitava aquele estilo de lá, um povo que não sabia de nada, não votava. Era uma tribo de índio, pode-se dizer. Um dia, foram dizer que a pessoa falava no telefone, saía do outro lado o bafo. Eu podia aguentar um negócio desse? Fui, disse assim: Zezim, tu tá pensando que o telefone é um cano de mamoeiro que se fala aqui, sai o bafo do outro lado? Aquilo ali é coisa elétrica, Zezim, que ninguém pode nem entender, nem ocado é, é fio enroladozim, coberto com plástico, Zezim. Eles se zangaram, ele tinha um problema de loucura, ele disse, pois é, no dia que eu enlouquecer, vou quebrar sua casa. E foi dito e certo. Passaram a me perseguir. Se eu plantava um roçado, eles botavam 14 vacas pra invadir. Trabalhei cinco anos perdidos. Fiz uma casa, de taipa, a mais bonita do mundo, em cima dum alto, botei oito janelas, quatro dum lado, quatro do outro. E todo domingo tinha cantador. Quanto mais animação na minha casa, maior era a questão. Eu ia dormir de noite, na hora que começava a dormir, sonhava matando eles, eles me matando. Quando acordava, era com dor de cabeça. Quando ia dormir pra passar a dor de cabeça, era sonhando com eles. Eu digo, vou ficar doido. Nunca no mundo gostei de agravar ninguém. Vi que não tinha condições, mudei minha casa, trouxe nas costas pra Itapipoca. Vendi a telha, trouxe a madeira todinha, fiz uma casa aqui. Aí a gente continuou pra frente o barco, me empreguei na Rffsa. Tudo que estou contando pra senhora é coisa que aconteceu. 

Página inicial do Cordel]  [Página inicial do JP