Dalila Teles Veras
Os
impróprios nomes próprios como matéria para poesia
“Das duas uma: ou as pessoas se fazem
ao nome que lhes puseram no batismo, ou ele tem de seu o bastante
para marcar a cada um.” Esta frase dá início ao primeiro capítulo -
As pessoas põem nomes a tudo e a si próprias também - do romance
“Nome de Guerra” de Almada Negreiros, escrito em 1925 e só agora
disponível no Brasil, para quem esteja disposto a pagar R$ 95,00
pelo belo volume com suas obras completas, 1.124 páginas, em papel
bíblia, da Editora Nova Aguilar.
Apesar de pouco ou nada conhecido no
Brasil, Almada Negreiros faz parte, ao lado de Fernando Pessoa e
Mário de Sá-Carneiro, da santíssima trindade do modernismo
português. Mesmo tendo deixado uma obra escrita monumental, que
inclui poesia, romance e dramaturgia, o artista multimídia - de
quebra, foi bailarino, ator, coreógrafo, editor, provocador e
agitador cultural e, até, jogador de futebol - gostava que o
chamassem simplesmente de “desenhador”, afinal foi nesse campo onde,
ainda em vida, mais recebeu o reconhecimento e notoriedade mundial
(quem não conhece a caricatura e o retrato de Fernando Pessoa, de
sua autoria?).
Mas, voltando à questão dos nomes,
acreditava o nosso Almada que, apesar de todos possuírem árvores
genealógicas que lhes conferem uma história ancestral, a cada um
aconteceu qualquer coisa que não se passou com mais ninguém e isso
aconteceu antes do próprio nascimento - o segredo do nosso segredo,
mistério do nosso mistério. Dessa forma, o nome passa a ser o
retrato da pessoa e até da relação que ela mantém consigo mesma
(“uma vez conhecido o nome próprio de uma pessoa, ficamos logo
convencidos de que este lhe assunta muito bem”), dando-lhe uma
identidade, que é do que trata o romance.
A personagem principal mostra que uma
pessoa possui o arbítrio de dirigir o destino que lhe coube, mas que
é ingenuidade acreditar que a sociedade possa dirigi-lo. “A
sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com
cada um!”. Cada um, a seu ver, nasce já bem ou mal-educado.
Exemplifica: há pessoas analfabetas perfeitamente bem-educadas, em
uníssono com seu próprio caso pessoal, e, por outra, pessoas
passadas superiormente por cursos, que não sabem distinguir pessoas
de formigas. Com sua visão de “desenhador”, fala de sua dificuldade
em expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe
sempre que copia o perfil de uma pessoa: “Através dos séculos, uma
linha única e incessantemente seguida acabou por tornar inimitável o
perfil de cada um. Essa linha passa agora desde o alto da testa até
por baixo do queixo, e às vezes lembra a de outros, mas é
intransmissível”.
Uma identidade singular, nome próprio único, mesmo que seja
simplesmente um José, entre milhões de Josés.
Já em “Todos os Nomes” (Cia. Das
Letras), o mais recente romance de outro grande escritor português,
José Saramago, nosso contemporâneo, parte da questão da identidade,
mas através de um outro prisma, mais adequado ao nosso tempo de
uniformização de gostos, globalização de consumo e anonimato.
Dando seqüência a uma reflexão
proposta em seu magnífico romance anterior “Ensaio sobre a
Cegueira”, Saramago discute o desejo (ou a impossibilidade de) pela
descoberta do outro, essa criatura sem nome, que vive entre as
massas. É assim, que nenhum personagem de seu romance tem nome, nem
de batismo nem de família, penas uma determinada característica
circunstancial que o identifica (a mulher do rés-do-chão, o colega
ou o chefe da Conservatória). Somente o personagem principal possui
um nome, Sr. José, simplesmente.
Se no começo do século, vivendo em
grandes cidades como Paris, Madri e Lisboa, Almada, mergulhou na
análise de cunho psicológico de seu personagem, acreditando que o
homem pudesse ter um nome e que este lhe conferia uma identidade, o
nosso Saramago, preocupado ideologicamente, como sempre esteve, na
vida e na literatura, com o homem inserido no contexto social,
parece não acreditar mais na possibilidade desse homem se
desvencilhar das imposições sociais que o transformam em apenas mais
um imperceptível elemento da grande máquina planetária. Uma reflexão
sobre o homem contemporâneo e a estrutura (ainda) arcaica do seu
meio, o seu isolamento em relação ao outro e a busca obstinada desse
outro de quem não se sabe nada, sequer o nome.
É claro que Saramago não propõe
nenhuma solução e nem esse é o papel de um romancista, por mais que
esteja ele ideologicamente comprometido. O escritor dá indícios,
aponta, faz críticas, ainda que estas sejam feitas através da
representação de mitos, como o de Ariadne, o labirinto no qual, mais
uma vez, o ser humano se debate.
Se Almada mergulha na alma e no mistério, armando uma verdadeira
guerra por um nome que não seja “de guerra”, mas singular,
identidade única, Saramago transforma seu personagem, até então um
pacato e anônimo cidadão, funcionário de um caricato Registro Civil,
em um quase insano transgressor da ordem estabelecida, em busca de
uma mulher desconhecida. Na verdade, o insólito guerreiro, tenta
apenas, da maneira mais desvairada e improvável, romper seu próprio
isolamento.
Tudo parece em vão. José continua a
ser mais um José, entre milhões de Josés e de todos os outros nomes.
Voltando a nossa objetiva para o
território brasileiro, podemos dar continuidade à questão dos nomes,
desta vez fora da ficção. O livro “Nomes Próprios Pouco Comuns”
(Livraria São José, RJ, 1974), do etnógrafo pernambucano Mário Souto
Maior, resultou de uma pesquisa desenvolvida nos estados do Norte e
Nordeste.
A escolha do nome, conta Souto Maior,
é sempre um dilema. A mecânica da denominação pode resultar de
vários fatores que vão de uma promessa feita ao santo da devoção da
parturiente ao do nome do santo do dia ou, ainda, das circunstâncias
do próprio parto (Maria das Dores, se o parto for difícil). Além da
religião, podem entrar preferências políticas (Getúlio Vargas da
Silva, Roberto Kennedy Oliveira dos Santos) ou literárias. Destas,
José de Alencar é o campeão (Jaci Jaceguay Guarany, Iracema Reina
entre muitos). Confira o bairrismo exacerbado destes outros: Veneza
Americana Derecife que é irmã de São Sebastião do Rio de Janeiro.
A parte mais curiosa do livro, no
entanto, é a dos nomes estapafúrdios que revelam o quanto um nome
próprio pode ser impróprio, fruto que é da vontade e capricho dos
pais, sejam eles excêntricos ou ignorantes. Confiram alguns:
Abrilina Décima Nona Caçapava Piratininga de Almeida ou Fausto
Cacambau Caitetu Cairari Maciel. Que tal estes, criados a partir da
junção de uma ou duas sílabas de cada um dos nomes dos pais: um
cidadão chamado Mariano Chagas casou com uma moça de nome Maria
Amélia e não teve dúvidas, deu ao filho o nome de PRODAMOR (produto
do amor) DE MARICHÁ (Mariano Chagas) E MARIMÉ (Maria Amélia).
Diferentemente do que pensam os
ficcionistas que apontamos, Souto Maior conclui que ”os nomes, quase
sempre, têm a tendência de não significar o que as pessoas e as
coisas são” e defende a idéia de um psicólogo francês de que as
pessoas possam mudar, na maioridade, o nome que receberam, uma vez
que milhões de pessoas carregam o peso de um prenome que não condiz
com sua formação física e espiritual, afetando seriamente seu
mecanismo psíquico.
Para o poeta Carlos Drummond de
Andrade, que assina o delicioso prefácio do livro de Souto Maior - O
impróprio nome próprio - e que também defende a conveniência de
todos os nomes serem provisórios até 18 anos, a nominação das
pessoas “é campo aberto à análise da inventividade, lirismo, crença
e humor involuntário de nossa gente”, apesar de todas as
inconveniências.
Afinal, acredito que nomear é,
sobretudo, invocar (divina ou profanamente) e aquele que nomeia
deseja, de alguma forma, adquirir poder sobre o nomeado. Mas, para
os poetas, o nome próprio, ainda que impróprio, é sentimento de
mundo e, portanto, matéria para poesia.
(originalmente publicado na coluna Viaverbo (Diário
do Grande ABC) e, posteriormente, ampliado, este texto foi
publicados na RL – Revista Literatura, no. 11, 1998, editada por
Aluysio Sampaio, SP.)
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