Dalila Teles Veras
O
direito ao silêncio
A vida urbana, sabemos, produz níveis
de ruído muito acima do desejável, tão maiores quanto a concentração
de pessoas por metro quadrado. A poluição sonora, compreensível até
certos limites que escapam ao controle de cada cidadão, vem
alcançando índices intoleráveis. Coletei alguns exemplos que podem
servir de argumentos para angariar alguns cúmplices numa possível
campanha de direito ao silêncio.
Criou-se uma "necessidade musical"
absurda, tirada não sei de quais reivindicações populares, que
obriga todas as pessoas a ouvirem música (ou na sua falta, qualquer
tipo de som) onde quer que elas se encontrem, sem que haja qualquer
avaliação de conveniência.
Desista de levar um livro para ser lido na sala de espera de um
consultório médico. Comum até há pouco tempo, a chamada música
ambiente, geralmente orquestrada, tinha a finalidade de relaxar as
pessoas antes de uma consulta médica e não interferia na leitura.
Essa prática "evoluiu" para os aparelhos de TV, ligados em tempo
integral. E lá fica você "ligado" em abomináveis desenhos de
super-heróis japoneses e outras bobagens, sem direito a escolha.
Desista também de convidar os amigos
para um bate-papo num bar ou restaurante. Pelo volume do som, os
proprietários desses estabelecimentos partem do pressuposto de que
as pessoas ali vão apenas para se afogar nos copos ou se empanturrar
de comida.
Nos congestionamentos, desista
daquela música relaxante, no rádio do seu carro. Sempre haverá a seu
lado um motorista com um poderoso alto-falante-móvel acionado,
transmitindo gratuitamente o som do mais recente grupo de pagode,
cujo mérito principal é o vocalista ter a língua presa. Ou você
relaxa e ouve o rádio vizinho ou então, "dança".
Outra mostra da "insanidade sonora"
que assola nossos trópicos: semana passada, triste pela morte de uma
pessoa querida, compareço a uma missa de sétimo dia. Desejoso,
talvez, de ampliar o escasso número de fiéis, o padre não deixou por
menos e convocou dois jovens, de vozes adolescentes e esganiçadas,
munidos de um violão eletrificado e um tambor, estupidamente mal
tocados, que entoavam modernosas canções, em ritmo de escola de
samba.
Incoerentemente, o sacerdote pedia
aos presentes para não conversarem naquele recinto sagrado, onde a
única profanação permitida era aquela música horrível que em nada
condizia com a ocasião.
Por muito menos, aos quinze anos de
idade, deixei de freqüentar a Igreja Católica Apostólica Romana, na
qual fui educada. A missa deixou de ser rezada em latim e terminou o
mistério. A fé só existia pela magia do rito e pelo fascínio da
pompa litúrgica. Se perdurasse, minha fé, hoje, certamente não
resistiria à vulgaridade explícita. A começar pelos templos
modernos, que mais parecem danceterias, tão distantes da
grandiosidade daqueles mais antigos que, se não tinham o poder de
salvar os homens, pelo menos colaboravam para elevá-los a uma esfera
mais transcendental do espírito, ao som de músicas de Bach, Haydn ou
Haendel, executadas em instrumentos mais adequados ao ambiente, como
cravo e órgão.
O homem perdeu de vez a chance de
usufruir do silêncio. Não confundir com o mutismo, atitude fechada
às revelações e aos gestos de paixão, mas o silêncio de ouvir a si
próprio e ao universo cósmico.
Tudo bem. Você, que ainda possui
alguma consciência do perigo da epidemia de surdez que assola a
humanidade, chega em casa, tira os sapatos, afrouxa as roupas mais
apertadas e põe pra tocar um CD com os concertos brandenburgueses de
Bach. Não dá. O vizinho liga o seu potente aparelho de som e, sem a
menor cerimônia, estremece as paredes de sua casa com um dos últimos
"sucessos" que, além da pobreza poética das letras, primam pelo mau
gosto e grosseria. Até há bem pouco tempo, seriam simplesmente
classificadas de pornográficas mas, agora, em plena era pós-tudo,
encantam as crianças que, alto e bom som, as cantam na escola, ao
mesmo tempo que se requebram, abaixando-se até tocar na "boquinha da
garrafa". Tristes trópicos tristes, travestidos de apócrifa alegria,
sem o legítimo direito ao silêncio.
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