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Sertão/Sertões:
Canudos - Memória de dor e heroísmo
Edivaldo M. Boaventura
Gostaria que me fosse permitido indagar preliminarmente: se não
fosse Euclides da Cunha, o que teria sido de Canudos? Talvez passasse como
um simples movimento, um levante a mais, uma insurreição,
como a Guerra do Condestado. Assim, influenciado por José Calasans
Brandão da Silva, acostumei-me a ver a trilogia formada por Antonio
Conselheiro, Canudos e Euclides da Cunha, centrando-me na personalidade
carismática do construtor de igrejas e cemitérios.
Como quase todos os leitores de Os Sertões, principiei pela
parte “A Terra”, mas não alcancei “O Homem”. Cansei-me de ir ao
dicionário e guardo inúmeros vocábulos aprendidos
daquela leitura adolescente, como “magma”, “mádido!”. Acho que o
melhor é começar por “A Luta”, indo de trás para a
frente. Foi o que fiz com sucesso, quando criei o Parque de Canudos em
1986. Levantei e fui juntando tudo que encontrava, em livros, opúsculos
e conversas, engrossando a minha biblioteca canudense com Walnice Nogueira
Galvão, Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, Edmundo Moniz,
Ataliba Nogueira, Odorico Tavares, José Augusto Vaz Sampaio Neto
et alii, Marco Antonio Villa, José Aras, os poetas Paschoal Willaboim
Filho e José Guilherme da Cunha, e os mais recentes, o memorial
da pintura expressionista de T. Gaudenzi, a arqueologia histórica
de Paulo Zanettini, as crônicas e livros de Oleone Coelho Fontes,
a Revista Canudos, do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade
do Estado da Bahia. E dentre as várias publicações
comemorativas o precioso relato de Alvin Martins Horcades, Descrição
de uma viagem a Canudos (2ª ed., Salvador: Egba/ Edufba, 1996).
Na minha inclinação para criar parques, preservando sítios
históricos e reservas naturais, Canudos tem me interessado e me
ocupado bastante. Após ter construído o Parque Histórico
Castro Alves, por inspiração de Pedro Calmon e determinação
do governador Luiz Viana Filho, em Cabaceiras, ali “onde o Paraguaçu
rola profundo”, fiz a reserva de terras e institui o Parque Estadual de
Canudos, em 1986. Naquele mesmo ano instalou-se o município de Canudos,
desmembrado das terras do Cumbe, leia-se município de Euclides da
Cunha. Se não fosse o parque, Canudos não passaria de um
pedaço indiferenciado e perdido na seca, desértica e hostil
caatinga sertaneja. Com o parque decretado, foi possível localizar-se
o Alto do Mário ou da Favela, a Estrada Sagrada, o Vale da Morte
e, o que reputo de sumamente importante, a descoberta constante de novos
sítios arqueológicos onde foram sepultados muitos dos 25
ou 30 mil lutadores.
O parque situa-se na margem esquerda da represa do Rio Vaza-barris,
propositadamente, nos lugares onde se chocaram as forças militares
republicanas, do Exército e das polícias estaduais, contra
os conselheiristas, por isso, Canudos é uma guerra nacional. Está
bem em frente da segunda Canudos, afogada, vista do Alto do Mário,
por trás da estrada que conduz de Bendegó (sítio onde
caiu o famoso meteorito, transportado para o Museu Nacional, no tempo do
Império) a Cocorobó, onde se reedificou a terceira atual
Canudos. Observada a pequena e renitente Vila do Belo Monte submersa, a
imaginação voa para as conjecturas.
Postado do Alto do Mário, o parque é, para mim, um enorme
e ambicioso mirante. Em frente, os morros; embaixo, a sepultura da Canudos
afogada, que aflora quando as águas recuam e deixam aparecer os
arcos da igreja velha. Essa segunda Canudos foi reconstruída sobre
as bases da primeira, arrastada pelas tropas vencedoras, soçobrada
pelas águas do açude, em 1968. Com toda a extensão
do rio só foi encontrado um lugar de represar as águas, em
Canudos? Acredite-se ou não no subconsciente coletivo, foi uma coincidência...
histórica. A terceira Canudos fica a uns três quilômetros
do parque. O ângulo das ocorrências combinadas envolve o parque
e a vida submersa. Do Alto do Mário pode-se divisar a lâmina
de água azul-escuro que cobre e recobre o invencível arraial.
Pois bem, se nos detivermos no Alto do Mário, bem defronte ao
lago que afogou Canudos, podemos imaginar inundando-se a vida com todas
as casinhas simples, sua igreja branca e seus mortos. Tudo e todos cobertos
de água em uma terra bíblica e desértica. Canudos
imersa como a catedral submersa de Calude Debussy, cujos sinos badalam
lentamente à medida em que as águas descem e sobem. Do mesmo
modo, ao entardecer, num estágio de clarividência, podemos
também ouvir, sob o movimento ondular, quase imperceptível
das águas, as interminentes recordações.
O Parque Estadual de Canudos, assim, conduz a recompor os cenários
decisivos daquelas lutas sanguinárias, desiguais e fratricidas,
na elevação da Favela, no Morro do Cambaio, no riacho triste
e seco das Umburanas, na passagem pelo Rosário, nos caminhos para
o Monte Santo e Jeremoabo. E mais, penso no castigo urbano e republicano
das degolas sumárias daqueles que se integraram ou que foram aprisionados
em busca da misericórdia que não houve. “Gravata vermelha”
para os homens e estupro para as mulheres. Canudos não é
um município como os outros da Bahia. Há um chamamento, uma
crença, que cada dia mais cresce tanto pela crença como pela
pesquisa, pelas descobertas da arqueologia e pelas romarias religiosas
e políticas.
Edivaldo M. Boaventura é escritor e pertence à Academia
de Letras da Bahia.
Jornal A TARDE, 16/05/1998
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