Jornal da
Tarde, 27.02.1999
LIVROS
Memorialismo
e lírica, nos versos de Ruy Espinheira Filho
Edição
da Record recupera três décadas de produção
do poeta baiano, cuja obra contesta o círculo de futilidades em
voga
Por Floriano
Martins
Em uma entrevista com Juan Calzadilla,
disse o poeta venezuelano que não pode o poeta “ter uma visão
normal de homem e uma visão de poeta como se tivesse duas vidas,
duas maneiras de ser”, e acrescenta: “Na vida dos grandes poetas a poesia
está refletida em todos os instantes vitais.” Embora haja aí
uma declarada obviedade, o fato é que esta pouco se coaduna com
a realidade brasileira, tão afeita aos burocratas do verso ou mesmo
a torpes caça-prêmios. Por sua identificação
com o humano, com as forças a um só tempo singelas e potentes
do ser, o poeta se encontra com igual caráter tanto em seus versos
como em seus mínimos gestos e atitudes. E trata-se mesmo disto:
a expressão de um caráter.
Desta pequena verdade são feitos
os versos e toda a poesia que define a existência de Ruy Espinheira
Filho. E vêm daí justamente o memorialismo e a força
lírica de sua poética, entranhada no recorte de cenas que
lhe compuseram os dias, os sonhos, paixões e angústias. Ao
longo de três décadas, o baiano Ruy Espinheira Filho vem tecendo
uma enérgica e emocionante obra, transcendendo quaisquer limites
impostos pela moda e outros maus hábitos de nossa fútil contemporaneidade.
A história mais recente da poesia brasileira é pautada por
um misto de servilismo e empáfia – dois caprichosos disfarces da
vaidade – que a inscrevem em um círculo de futilidades. E contra
esta degradante realidade é que se fixa a poética de Espinheira
Filho.
Nascido em Salvador, em 1942, foi cronista
do jornal Tribuna da Bahia entre 1969 e 1981 (alguns dos textos
desse longo período foram coligidos no livro Sob o Último
Sol de Fevereiro, da Civilização Brasileira, em 1975).
Jornalista, tornou-se professor, nesta área, na Universidade Federal
da Bahia. Por ocasião de sua conclusão de curso, publicou
um valioso estudo sobre Jorge de Lima. Iniciou-se na poesia com a publicação
de Poemas (1973), em parceria com outro importante poeta baiano,
Antonio Brasileiro. No ano seguinte, publicou Heléboro, já
aí definida a sutileza entranhável de seu lirismo. Em 1981
ganhou o Prêmio Cruz e Souza com o livro As Sombras Luminosas.
Sua contribuição à
imprensa, em Salvador, é bastante considerável, pela força
de uma voz que se insurgia severamente contra a hipocrisia reinante em
nossa cena cultural. Publicou ainda os seguintes livros: Julgado no
Vento (Civilização Brasileira, 1979), A Canção
de Beatriz (Brasiliense, 1990), Memória da Chuva (Nova
Fronteira, 1996) e Livro de Sonetos (Edições Cordel,
1998). Além disto, escreveu novelas, romances e contos. Também
saíram algumas antologias poéticas, a exemplo de Antologia
Breve (UERJ, 1995) e Antologia Poética (Fundação
Casa de Jorge Amado, 1996).
Parte disto é o que encontramos
agora sob o título de Poesia Reunida e Inéditos (Record,
1998). As informações mínimas traçadas aqui
deveriam constar da edição do livro, o que não acontece.
Se o selo Record garante uma boa circulação e a poesia de
Ruy Espinheira Filho basta a si mesma como expressão consolidada
e sugestiva, o leitor comum – aquele que buscam todos os poetas – fica
desassistido diante da absoluta falta de dados acerca do autor que tem
diante de si. Não é mínima esta falha quando temos
finalmente a oportunidade de um importante poeta brasileiro circular nacionalmente.
Ruy Espinheira Filho iniciou a publicação
de sua poesia pelas mãos de Ênio Silveira, um dos raros editores
brasileiros a considerar esteticamente os originais chegados à sua
mesa. Ciente disto, recorto aqui uma observação do próprio
poeta: “Nossos editores parecem não perceber o grande mal que seu
radical pragmatismo está fazendo à cultura do País”,
ao que acrescentava: “Não só escritores já provados
estão sendo desconsiderados, como está havendo um sério
comprometimento da renovação.” Seguramente a razão
disto atraca em nosso passado colonial. Entre outras idiossincrasias, perdura
entre nós a de um capitalismo sem risco. Talvez isto explique tanta
forma sem conteúdo e mesmo um rarefeito conteúdo carente
de forma.
Quando da publicação
de As Sombras Luminosas (1981), Ivan Junqueira referiu-se ao apuro
lírico da poesia de Ruy Espinheira, que tratava, segundo ele, a
metalinguagem tão-somente como recurso e não como essência
poética – por sinal, ardil que tem levado por terra muitos poetas
brasileiros. Quinze anos depois, com a publicação de Memória
da Chuva (1996), Alexei Bueno destacou a confirmação
absoluta desta expressão lírica. O próprio Espinheira
Filho considera-se seguidor de uma tradição lírica
da poesia brasileira afeita ao mergulho “na humana angústia, na
humana alegria, na humana perplexidade, no humano desespero, na humaníssima
esperança”.
Celebrada coerentemente por críticos
como Fábio Lucas, Carlos Felipe Moisés, Cláudio Willer,
Ivan Junqueira e Rubens Figueiredo, a poesia de Ruy Espinheira Filho alcança
agora um momento decisivo em sua difusão. Poesia Reunida e Inéditos
configura-se como um esplendor do sentido poético que buscou imprimir
o autor à sua obra. Uma mesma e digna densidade lírica atravessa
todas as páginas, toda uma vida. A exemplo do que diz o próprio
poeta: “Em carne rubra e cicatriz, / entrego à cor profunda que
me espera / estes despojos em que sou feliz.” Assim com toda a vida e a
poesia de Ruy Espinheira Filho.
POESIA
REUNIDA E INÉDITOS, de Ruy Espinheira Filho. Record, 368 págs.,
R$ 21,00
Floriano
Martins é escritor, autor de Escritura Conquistada
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