‘Folhetos
de feira’ movem a imaginação popular
in Jornal da Tarde, 20.02.1998
Por Francisca Neuma Fechine Borges Os folhetos de cordel brasileiros, com seus múltiplos temas e expressiva forma de composição poética, têm sido objetos de estudos para pesquisadores do nosso país e também estrangeiros. Os textos de cordel poeticamente estruturados, tendo a sextilha como estrofe básica, são ilustrados com xilogravuras, chichês de cartões postais, fotografias, desenho e outras formas de composição gráfica e oferecem farto material para pesquisas, ensejando variadas interpretações que remetem para o contexto sócio-cultural em que se insere cada texto. Assim, os folhetos sobre os mais diversos temas, tradicionais ou contemporâneos, são versejados por inúmeros poetas populares, estabelecendo-se relações icônico-textuais significativas, ou outras intratextuais. Vale lembrar que nessa riquíssima literatura, de universo semiótico multifacetado, aberto a várias isotopias (isossêmicas, isotáxicas, isográficas, isofônicas) aqui entendidas nas concepções de vários semanticistas como A. J. Greimas, F. Rastier, J. Adam e J. Goldenstein, há uma grande variedade temática que reflete bem a extraordinária vivência dos nossos vates populares, desde o seu engagement com os problemas mais atuais, contemporâneos a cada poeta, até a conservação e transmissão de narrativas inspiradas no imaginário tradicional que nos chegaram através da península ibérica. Como se sabe, esta riquíssima e sugestiva expressão literária popular, que encontrou fértil campo no Nordeste brasileiro, só pode ser bem compreendida dentro de um contexto cultural mais amplo, envolvendo suas origens européias ou orientais, até a produção atual, de modo a se ter uma visão mais ampla dos seus temas e formas de expressão e das transformações por que vêm passando, no nível da estruturação da narrativa, do discurso e das significativas relações icônico-textuais. Em estágios de pesquisas sobre literatura de cordel que realizamos em Portugal, na Espanha e França (1981, 1984, 1986, 1987 e 1991 e 1997), verificamos que este tipo de literatura, já em extinção na Europa, interessa, apenas, a colecionadores e especialistas. Os “folhetos de feira” brasileiros têm, indiscutivelmente, suas origens na chamada “literatura de cordel” portuguesa, sendo, evidentemente, mais uma das tradições culturais herdadas da península ibérica, pois em Portugal e na Espanha já era conhecida com esse mesmo nome. Desse tipo de literatura chegam muitas histórias ao Brasil, que aqui se transformaram e ainda continuam alimentando a imaginação do nosso povo. Numa tentativa de sistematização para estudos, dividimos os folhetos de cordel brasileiros em dois grandes grupos: a) os que versam sobre temas antiqüíssimos herdados da tradição ocidental ou oriental; b) aqueles cujos relatos estão mais diretamente relacionados com o contexto brasileiro e com características basicamente nordestinas. Nos limites deste trabalho, analisaremos a secular História da Donzela Teodora, numa versão brasileira de Leandro Gomes de Barros, poeta criativo, com uma produção bastante significativa, de grande divulgação e recepção, considerado, segundo Carlos Drummond de Andrade, o “rei da poesia do sertão” e a quem fazemos uma justa homenagem, na passagem dos 80 anos de sua morte (o poeta paraibano nasceu em Pombal-PB no dia 19 de novembro de 1865 e morreu em Recife em 4 de março de 1918). No Brasil, a tradicional história de Teodora, donzela-escrava-sábia-bela, que venceu os sábios do rei, livrando o seu amo da falência, cujas origens mais remotas são árabes, vem atravessando os tempos e encantando o nosso povo, notadamente no Nordeste brasileiro. Composta poeticamente em sextilhas, com a criatividade de Leandro Gomes de Barros, a exemplar história dessa donzela vem tendo grande repercussão, com inúmeras refacções, sugestivamente ilustradas, ora com capas em clichês de cartão postal ora com xilogravuras e, mais recentemente, em policromia, editada pela Luzeiro, em São Paulo. Note-se na relação narrador-leitor (inicial e final), com grande poder de síntese e lisura de Leandro, que não esconde as fontes européias que lhe inspiraram a recriação poética do folheto luso em prosa (tradução do pliego suelto espanhol): “Eis a real descrição da história da donzela dos sábios que ela venceu e a aposta ganha por ela tirado tudo direito da história grande dea (. . . ) “Caro leitor escrevi tudo que no livro achei só fiz rimar a história nada aqui acrescentei na história grande dela (. . . ) muitas coisas consultei” (In História da Donzela Teodora. Leandro Gomes de Barros. João Pessoa, MEC/Pronasec-Rural, UFPb, págs. 1 e 32) A sedutora narrativa dessa incomum donzela tem, em síntese, a seguinte fabulação: donzela/escrava é comprada por um rico negociante cristão, húngaro, que mandou educá-la; com sua sabedoria, ela desafia os sábios do rei, numa acirrada disputa vence-os, recebendo prêmio em “dobras (moedas) de ouro”, livrando seu amo da falência, sendo, portanto, admirada e louvada por todos. Essa narrativa tem como redações castelhanas mais antigas dois códices manuscritos localizados por Hermann Knust e que, segundo Menendez e Pelayo, datam dos fins do século 13 ou início do 14. Para Câmara Cascudo, a edição espanhola mais antiga é La Doncella Teodor de 1498, impressa em Toledo, inspirada em Las mil y una noches em que já aparece a Doutra “Simpatia”. Em Portugal, continua sendo a de 1712 a primeira edição documentada da História da Donzella Theodora em que trata de sua grande formosura e sabedoria traduzida por Carlos Ferreira Lisbonense, já mencionada em Cinco Livros do Povo. Nos estágios de pesquisas mencionados, conhecemos 33 versões européias da história de Donzela Teodora (normalmente em prosa e, na grande maioria, com capas ilustradas com figuras representando o desafio entre ela e os sábios, na presença do rei). Dessas versões, cinco são espanholas (Toledo, 1498; Saragoça, 1540; Salamanca, 1625; Valência, 1643 e Madrid, 1726). As restantes eram lusas (também em prosa), editadas no decorrer dos séculos 18, 19 e 20, das quais destacamos as seguintes: Lisboa, 1712, 1735, 1741, 1745, 1758, 1783, 1827, 1852; Porto, 1790, 1839, 1855, 1889, 1906; Lisboa, 1945 e 1956 e, ainda, versões portuguesas editadas no Brasil (São Paulo, 1916, e Rio de Janeiro, 1943). Não obstante a relativa atualidade da edição citada de 1956, em Lisboa, os “folhetos de cordel” portugueses, à semelhança dos “pliegos sueltos” espanhóis e dos “livrets de colportage”, na França, são obras raras que só interessam a pesquisadores e colecionadores. Registre-se, também, a versão lusa, excepcionalmente editada em quadras, Nova História da Donzela Teodora, inteiramente afastada do tema. No Brasil, sucederam-se inúmeras edições da história desta invulgar Donzela, nas décadas de 20 a 80: em João Pessoa, Popular Editora, aproximadamente 1918/20; em Recife, nos anos 40, publicadas pelo tradicional editor João Martins de Athayde, que comprara à viúva de Leandro os direitos autorais desse poeta; em Juazeiro do Norte, circularam várias (conhecemos as datadas de 1950, 1954, 1964, 1993, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980), editadas, inicialmente, por José Bernardo da Silva/Tipografia São Francisco (que comprou os direitos autorais a João Martins de Athayde) e, posteriormente, por seus filhos, filhas, viúva e seu neto, o excelente poeta e xilógrafo Stênio Dinis. No confronto que fizemos entre versões espanholas, portuguesas e brasileiras da estória da D. T., constatamos que o texto luso está bem colado ao espanhol, correspondendo a uma tradução literal deste, que, por sua vez, difundira-se na península ibérica. Já os textos dos folhetos de cordel brasileiros, embora conservem a mesma estrutura profunda da narrativa, possuem um discurso criativo, sendo versejados no ritmo agradável da sextilha: guardam, contudo, em alguns tópicos, relações com o discurso tradicional português. Vejam-se alguns momentos desta exemplar história, numa espécie de fio condutor da narrativa, com textos semelhantes em diversas edições brasileiras (referenciadas no final da bibliografia deste trabalho), havendo, normalmente, apenas algumas variações ortográficas. Assim, evidenciamos, depois da abertura da narrativa (“Eis a real descrição. . . ” já citada anteriormente), as seguintes estrofes: “Andando um dia na praça numa porta poude ver uma donzela cristã ali para se vender o mercador vendo aquilo não poude mais se conter Tinha a feição de fidalga era uma espanhola bela ele perguntou ao mouro quanto queria por ela entraram então em negócio negociaram a donzela” (In História da Donzella Theodora..., aprox. 1918/20, p. 1); Outra versão importante foi
versejada por Antônio Teodoro dos Santos, “O Poeta Garimpeiro”, basicamente
fiel ao tema tradicional, publicada pela editora Luzeiro Prelúdio,
em São Paulo, no ano de 1960.
Em 1981, essa sugestiva história
foi republicada pelo MEC-Pronasec-Rural, através do Projeto da Biblioteca
da Vida Rural Brasileira, com a co-participação de editoras
populares e que teve como objetivos primordiais a difusão de textos
em escolas de 1º e 2º graus na zona rural da Paraíba.
Servindo-nos da teoria greimasiana,
notadamente no que diz respeito aos sintagmas narrativos (contratuais,
disjuncionais e performanciais), considerando o modelo de arquétipo
narrativo do anti-herói, organizamos a história da D. T.
em macro-seqüência.
A estrutura profunda, formada pelas
antinomias básicas (sabedoria versus ignorância; justiça
versus injustiça e honra versus desonra) que são de caráter
universal, associadas aos traços da oralidade, à recorrência
aos enigmas e adivinhações, ao processo de escritura e reescritura,
à diversidade de editoras, vêm assegurando a permanência
dessa sedutora história, independentemente das peculiaridades regionais
das diferentes comunidades (espanhola, portuguesa e brasileira) por onde
ela tenha traçado sua trajetória.
No significativo percurso editorial
da história da D.T., constatam-se variadas relações
icônico-textuais, nas sucessivas edições (das décadas
de 20 a 80). Assim é que o texto se mantém inalterável
nas versões brasileiras (com ligeiras modificações
textuais), mas com sensíveis variações de capas, inicialmente
em vinhetas, depois em clichê de cartão postal (um mais antigo
e outro novo), com a figura de uma cândida e bela moça abraçada
a um buquê de flores, símbolo metassêmico dos modos
de ser dessa actante-heroína, com as qualificações
de donzela-escrava-sábia-bela-grata; o postal mais antigo foi adaptado,
em madeira, para um xilogravura sem assinatura; diferente das anteriores,
a capa aparece colorida (em policromia), com uma bela moça (reprodução
do retrato de Miss Brasil) em reedições pela Luzeiro, em
São Paulo.
De resto, fica-nos uma indagação:
por que, na re(criação) dessa história cheia de confrontos,
debates, tão rica, portanto, de sintagmas performanciais dinâmicos,
o ilustrador elegeu uma isotopia (metassêmica, é bem verdade)
mas de caráter estático (privilegiando as qualificações,
“modos de ser” da donzela)? Talvez possamos entender esta opção
do ilustrador (editor e/ou xilógrafo), se considerarmos a grande
popularidade dessa tradicional história de Teodora cujo nome significa
“dádiva de Deus”, heroína perfeita, instaurada por um estatuto
cujo suporte sêmico é o bem, investida de duplo poder (o material
= beleza + riqueza e espiritual = sabedoria + gratidão) e que vem
tendo grande aceitação, no Nordeste brasileiro, onde o povo
é sensível não apenas à emulação
do confronto, do debate, mas à beleza e aos ideais de justiça
e honradez, ressaltando-se a grande recorrência à moralidade
(contar, recontar para ensinar), uma das funções primordiais
das narrativas de cordel.
Sem pretendermos exaurir as possibilidades
de abordagens dos textos analisados, podemos concluir que os textos dos
folhetos de cordel, formando uma riquíssima tessitura, seja com
temas do imaginário tradicional ou daqueles comprometidos com o
contexto contemporâneo, imbricados com arquétipos (arquimodelos)
narrativos, com belas e significativas construções icônico-textuais,
compõem um vastíssimo universo semiótico sui generis
na polisotópica literatura de cordel brasileira.
Francisca
Neuma Fechine Borges é professora de Literatura Brasileira da Universidade
Federal da Paraíba
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Dados do autor:
1. Data Nascimento: 07.01.61; 2. Local: Pendências/RN; 3. Esposa: Maria José Oliveira de Queiroz; 4. Filhos: Rafaela Oliveira de Queiroz, Francisco Diogo Oliveira de Queiroz e Marcela Oliveira de Queiroz; 5. Servidor Público Federal; 6. Endereço: Rua Tabapuã n.º 442, Conj. Santarém, Potengi-Natal/RN; 7. Fone: 761.2684; 8. Estudante do 7º período do Curso de Direito(noturno) na UFRN. |