Gerardo Mello Mourão

Canon e Fuga
[livro inédito]
 
  • O que as sereias dizem a Orfeu na noite do mar
  • Eva
  • O aprendiz
  • Catarina
  • Travessa das Isabéis
  • O QUE AS SEREIAS DIZEM A ORFEU NA NOITE DO MAR

    .
                                (Sobre a frase musical de Ivar Frounberg
    "Was sagen die Sirenen
                                        als Odysseus vorbei segelte".)


    Ninguém jamais ouviu um canto igual
    ao canto que te canto
    escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
    só ouvem minha voz - a noite e o mar e tu
    marinheiro do mar de rosas verdes:

    virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim
    mais o lençol de aromas de meu corpo
    e dormirás comigo
    e os que dormem com  deusas
                         deuses serão - verás
    cada arco de minhas curvas
    à forma de teu corpo moldaremos - e a pele tua
    aprenderá da minha
    aroma e maciez e música
    e entre garganta e nuca aprenderás
    a noite dos que dormem a aurora dos que acordam
    sobre os seios das deusas também deuses.

    Vem dormir comigo
                         e comigo
    e todas as sereias.
     

    Todas as deusas se entregam
    ao amante que um dia possuiu uma deusa
    e então todas as fêmeas dos homens
    Helenas, Briseidas e a Penélope tua
    hão de implorar às Musas - e as Musas a Eros e Afrodite
    a volúpia de uma noite contigo.


    Não partas!
                         se partires
    as velas de tua nau serão escassas
    para enxugar-te as lágrimas - e nunca
    nunca mais tocarás a pele das deusas
    nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
    e nunca mais serás um deus
    e nunca mais a melodia de uma canção de amor 
    dos hinos do himeneu
    abelhas mortas para sempre irão morar
    na pedra do jazigo de cera
    de teus ouvidos cegos.


    Mas vem
    e vem dormir comigo
                         e comigo
                         e minhas irmãs e todas
                         as sereias do mar
                         as sereias da terra
                         e as sereias dos céus.
                                                       Copacabana - 24-8-98
     

                          EVA

    Adormecera à beira do riacho
    e o sonho e a flor dessa maçã
    da primeira saudade - do primeiro desejo do mundo
    habitavam seu sono.

    Despertara - e dela despertaram
    um tato uns olhos um perfume - e o véu
    dos cabelos cobria ancas
    seios nunca vistos:

    Eva bailava sobre chão de folhas

    desde então
    desde sono e sonho se incorpora sempre
    ao homem sonhador o sortilégio
    da primeira mulher
    coisa e criatura e criadora
    de seus tatos seus aromas - aflição e festa
    de estrelas na pupila.

                                               Copacabana - 29-7-98
     

    O APRENDIZ

    Não mais a Musa não mais 
    Teresa ou Isabel

    e o príncipe devasso?
    e o domador de fêmeas?
    e o pretendente e o palácio
    da mulher de Ulisses?

    Galerias de cal 
    no Hospital de Cleveland:

    enfermeiras  e a neve e o ouro desses cabelos
    e a bainha engomada dessas roupas de linho
    por cama e câmara esvoaçam
    aprendizes de anjo;

    na boca morde termômetro de vidro
    aprendiz de defunto.
     

                                              Cleveland - Ohio -
     

                 CATARINA - 
     

    À rosa e ao vinho 
    era servido o aroma - 
    e era das uvas, ao cristal, ao beijo 
    de tua boca - a mera
    libação do aroma.

    Rosa era teu nome, Susana,
    Catarina - e bêbados de rosas, Diônisos,
    caíamos de uns lábios tintos.
     
     

                     Fortaleza - Ceará - outubro - 1996
     

                      TRAVESSA  DAS ISABÉIS
     
     
          Travessa das Isabéis
          Entre pedras e azulejos
          Modulam Lisboa à noite
          Seus corpos de realejos
          A lua desce a ladeira
          E cobre as pedras de beijos
          Ó lua de Portugal
          De seus Tejos e Alentejos.
           

          Vi todas as Isabéis
          Sem ver Isabel alguma
          Na ladeira fui contando
          As pedras uma por uma
           

          Tinha os olhos nas janelas
          E pedra a pedra subia
          Travessa das Isabéis
          Quantas Isabéis havia?
           

          De seu sobrado amarelo
          O cônsul francês sorria:
          A cada Isabel que olhava
          Era outra que aparecia
           

          De sua janela verde
          Uma Isabel nos espia
          Outra Isabel no balcão
          Acenava e me dizia
          Que tantas quantas quisesse
          Eram as Isabéis que havia:
          Cada qual a mais bonita
          Olhos negros olhos verdes
          olhos de azul ou de mel 
          Cada qual mais portuguesa
          Cada qual mais Isabel
          Os olhos no doce rosto
          Eram mais doces que o mel
          Debaixo das sobrancelhas
          Duas uvas moscatel
          Na guitarra das cinturas
          Quero ser vosso segrel
          Sois balada e serenata
          Nas cordas do menestrel.
           

          Às oito horas da noite
          Se abriram vinte janelas
          Cem Isabéis me acenaram
          Do alto de todas elas
           

          Às oito horas da noite
          São cinco em cada balcão
          Tomam seu banho de lua
          Cheirando a manjericão
           

          Ou cheiro a flor de laranja
          Ou de alfazema dos campos,
          Boa noite - me murmuram
          Seus olhos de pirilampos
           

          Não sei quantas eram ruivas
          Quantas louras e morenas
          Trigueiras, claras, castanhas,
          Risonhas, sérias, serenas,
           

          Pois eram cem raparigas
          Do primeiro ao quarto andar,
          E começavam a rir
          E eu começava a chorar -
          Tão longe de minhas mãos
          Tão perto de meu olhar -
           

          Uma viola perdida
          Cantava as meninas belas
          E devagar uma a uma
          Se fechavam as janelas
          Não sei se era a mão da lua
          Ou se seria a mão delas -
           

          Na ladeira um anjo bêbado
          Me perguntava  por elas
          E nas varandas, ausentes,
          Apareciam mais belas
           

          Lisboa, boca da noite
          aloendros e água-mel:
          Cada qual mais portuguesa
          Cada qual mais Isabel.

                          Lisboa - botequim na esquina da Travessa das Isabéis
                          25-5-94
     

     
     
     
     

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