Gerardo Mello Mourão

Canon e Fuga
[livro inédito]
 
  • Pequena elegia do hospital
  • 18 EXERCÍCIOS - (Sobre Catarina em Desfile de   Modelos)
  •                      PEQUENA ELEGIA DO HOSPITAL

    O belo gigante negro, Ben, e a prata dos cabelos
    e a cenoura da jaqueta empurravam
    a cadeira de rodas - minhas pernas combalidas -
    pelos corredores do Hospital de Cleveland
    recusava minhas notas de cinco dólares:
    - "this is my pleasure, sir" - e era
    o cavalheiro mais galante do país do Ohio.

    O caboclo Antônio Pixuna carregava nos braços
    da sala ao alpendre
    o corpo hemiplégico de meu avô:
    - "pesa muito, Pixuna? " 
    - "é a alegria mais leve de minha vida, Capitão". 

    Meu tio Antônio Soares, chamado Tobias, 
    carregava as pernas hirtas de meu avô
    pelos salões da casa grande:
    - "que trabalho, compadre Tobias!"
    e vinha aos olhos de Tobias em duas lágrimas a lembrança
    da famosa robustez do primo inválido:
    "compadre, não é trabalho, é o prazer do coração".
     

    No corredor do hospital dos portugueses
    minha mulher, minha filha, meus filhos
    amparam meu corpo sem forças, as pernas tristes, 
    os pés amargos:
    vinha delas a fragrância de ums jasmins antigos
    vinha deles o hálito de seus whiskies, suas cervejas.
     

    E assim, até o fim dos tempos, 
    meus netos e os netos de meus netos
    hão de amparar as pernas doridas de seus avós
    sob o olhar das primas em flor
    as netas com seus velhos nomes e o rosto novo da raça antiga
    espantadas com os anjos que contarão nossas histórias
    do vale das Ipueiras ao vale de Josafá.

                    São Paulo - 22-9-95 

     

                           DEZOITO  EXERCÍCIOS 
                       (Sobre Catarina em Desfile de Modelos)
     
     
     
        1 -
        Pisa o pé espondeu a geometria
        da régua de seus passos
        e respondem os jambos
        da curva dos quadrís.
         
         

        2 -
        Pisa a ponta do pé
        artelhos regem calcanhar, tornozelo
        e na reta escandida
        arredondam-se as linhas calipígias.
         
         

        3 -
        Caminham, dançam 
        breves obeliscos 
        obeliscas - odaliscas -
        e sempre
        da planta de seus pés linheiros
        floresce a pétala das curvas.
         
         
         
         

        4 -
        Flama serias, tu,
        quem sabe mastro de alguma caravela
        e em teu rastro quando
        incorporar-se a cor da labareda no ar
        ao sopro ao vento se balancem côncavos
        os favos dessa vela: 

        coisa de palmeira a beira-rio
        coisa de caravela coisa de onda coisa de rastros na areia
        coisa de beleza.
         
         

        5 -
        Rosto, cabelos, olhos, tua saia,
        teu corpo inteiro foge do espaço
        foge da memória
        onde passa e passeia para sempre
        Catarina
        esse jeito de andar.
         
         

        6 -
        Não existes, não és e não estás,
        não ocupas
        teu lugar no espaço - e apareces
        no puro movimento.
         

        7 -
        Nem estampa nem face
        quem pudera afagar
        a figura o fascínio
        de teu vulto no espelho?
         

        8 -
        Em tuas trans
                         figurações
        trans           figurada
        para lá do tempo para lá do chão de tua passarela
        pareces e apareces e desapareces
        e duras e pereces - e assim
        duramos, perecemos.
         
         

        9 - 
        Quem se lembra de ti?
        O ouvido não, o olfato não, e o tato
        na gema dos dedos adormece:
        jazes sem jamais ter vivido
        no jazigo da memória da pupila - e ali
        embalsamada numa noite imóvel
        vives 
        desenho eterno e vão
        desse meneio entre artelhos e ancas. 
         
         

        10 - 
        Escandia o passo - compasso 
        de artelho e tornozelo
        às vezes calcanhares - quando
        estremeciam pêssegos maçãs melões em concha:
        sobre os passos voltavas pássara 
        arredondando a cauda.
         
         

        11 -
        Assim te trago as mãos
        cheias de avelãs - assim
        tornas retornas pisas
        uvas e avelãs.
         
         

        12 - 
        Estudiosa Catarina estudas
        sábia de teus gestos, de teu corpo e nele
        aprendiz e poeta de teu vulto
        celebro 
        passagem da beleza pelo tempo
        pelo espaço de onde para sempre
        se ostenta e se ausenta tua graça.

         

        13 -
        Que resta no ar do salto da pantera
        senão o risco?
        duras o que dura um salto - duras
        a duração da rosa aquela - a duração
        do coleio da serpente sobre a pedra:
        só o musgo guarda o rastro do perigo.
         
         
         

        14 -
        Talvez
        já nem precises de chão para teus pés
        nem de espaço para teu vulto:
        no vazio
        do frasco de cristal algum perfume
        rescende ainda - assim seriam seios e cintura
        teu corpo inteiro emanação
        de linhos e de sedas e veludos 
        melodia de blusas, saias, capas 
        de púrpura e de azul.

        Nem te evolas nem duras.
         
         
         
         
         

        15 -
        Mestria de gazela e galgo
        galga esgalga esgalgas adelgaças o regaço
        da corsa na ladeira
        e sobre os ombros o colo
        da garça esgarça escreve 
        cadências de anca e seio.
         
         
         

        16 - 
        Cítara de gáze gazeia seda e  musselina
        o nastro na garganta
        quem sabe salamandra o corpo envolves
        em avental de vagalumes
        linhos ninhos de estrelas 
        onde cantam, pássara de seios,
        teus rouxinóis ocultos.
         
         
         
         

        17
        Às vezes sob a pele dos animais da neve
        a neve, o ouro, a madrepérola
        da madressilva de seu umbigo:
         
        jogam o jogo
        das escondidas e
        das aparições:

        prestígio de prestidigitadoras
        prestidigitam, oferecem, escamoteiam
        agraciam negociam negaceiam 
        graça negaça negócio
        de cintura e seio e da última flor
        na relva aquela.
         
         

        18 - 
        A lungo andare
        guardaria o musgo, Musa, a música
        breve do rastro longo? a graça - essa -
        coral na pedra deslizante:

        rumor rumo a silêncio
        a sombra terá voz?

        E a sombra tua, 
        so long! so lange!
        adeus addío adiú,
        Lebetwohl, farewell, sayonara,
        Good night, sweet Princess, 
        au revoir - quem sabe?

        Ciao, bambina
        Catarina, ciao.

     
     
     
     
     
     

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