Jornal de Poesia

Hélder Garmes
 
A Poesia de Gonçalves de Magalhães
Jornal da Tarde 28/11/98

                O marco inaugural da escola romântica
                na literatura brasileira
                Reedição de Suspiros Poéticos e Saudades traz ao leitor moderno a
                poesia de Gonçalves de Magalhães, que, na época, teve grande
                influência em nossa produção literária
 

                Por Hélder Garmes

                Acaba de ser publicado pela Editora da Universidade de Brasília um dos
                clássicos de nossa literatura: os Suspiros Poéticos e Saudades, de
                Gonçalves de Magalhães. Mas a atual edição tem uma história um tanto
                complexa. É uma nova impressão da edição saída em 1986, que, por sua vez,
                era uma reedição daquela preparada por Sousa da Silveira em 1939, em
                comemoração (com certo atraso) aos cem anos da primeira edição de
                Suspiros Poéticos e Saudades, publicada em Paris em 1836. 

                Sousa da Silveira fixou o texto dos poemas que compõem o volume a partir do
                confronto entre as três primeiras edições do livro, impressas em 1836, 1859 e
                1865, já que, até este último ano, o corpo do livro sofreu alterações por parte
                do próprio Gonçalves de Magalhães. Apenas para exemplificar o que
                ganhamos com tal cotejamento, se olharmos na página 89 da atual edição,
                veremos ali estampado o poema “A fantasia” e, em nota, a observação de que
                esse poema não aparecia na primeira edição do livro. Não fosse o trabalho
                cuidadoso de Sousa da Silveira, teríamos, provavelmente, uma simples
                reedição daquela publicada em 1836 e a ausência desses versos. Vale
                lembrar que Sousa da Silveira foi a um só tempo engenheiro civil e filólogo,
                divulgando também a obra de Casimiro de Abreu e do marquês de Maricá,
                além de ter editado textos quinhentistas e autos de Gil Vicente. 

                Afora o trabalho do minucioso filólogo, a edição de 1939 conta com um
                prefácio de Sérgio Buarque de Holanda. Sempre muito rigoroso e perspicaz, o
                historiador elabora seu prefácio a partir da seguinte reflexão: o romantismo de
                Magalhães fundamentou-se num amplo, erudito e mesmo confuso conjunto de
                valores literários que, primeiramente, exerceu papel decisivo junto a nossa
                literatura culta e que, posteriormente, depurado, veio alimentar a inspiração
                anônima do povo, imprimindo “um vigor novo às expressões mais genuínas de
                nossa alma popular”. 

                É o diálogo entre cultura erudita e popular que desperta o interesse de Sérgio
                Buarque de Holanda na obra de Magalhães, notando que “é hoje difícil dizer da
                literatura romântica se foi ela que, em muitas das sua formas, veio a coincidir
                com a espontaneidade nacional, a ponto de se identificarem, ou se exerceu
                uma função pedagógica de primeira importância anexando ao seu espírito
                algumas das modalidades típicas da nossa cultura e do nosso ambiente
                social”. 

                Somos ainda presenteados com a reprodução de um artigo de Francisco
                Sales Torres Homem, amigo pessoal de Gonçalves de Magalhães e, junto
                com este, um dos editores da Niterói - Revista Brasiliense, que saíra em Paris
                no mesmo ano que os Suspiros Poéticos. Trata-se da notícia de lançamento
                da primeira edição do livro. Inteiramente laudatório, o artigo já ressalta o papel
                dos versos de Magalhães como marco inaugural da escola romântica na
                literatura brasileira. 

                Quando reeditada em 1986, em homenagem aos 150 anos da primeira edição
                da obra, a edição de 1939 foi acrescida de uma apresentação de Fábio Lucas
                e de um glossário, ao final do volume, de autoria de Maria de Jesus
                Evangelista, então professora do Departamento de Letras da Universidade de
                Brasília. Tal glossário vem elucidar termos em desuso e autores hoje pouco
                conhecidos do grande público. É um trabalho de grande valia, tendo em vista a
                dificuldade que o leitor contemporâneo enfrenta junto à já distante linguagem
                dos românticos. Muito do que fora marco de informalidade e coloquialidade
                lingüística, hoje se nos apresenta como formal e mesmo obscuro, sem falar
                da total mudança no horizonte de referências literárias. 

                Assim, diversos esforços colaboraram na edição que ora vem a público,
                resultando num rico aparato crítico e editorial dos poemas de Gonçalves de
                Magalhães. São poucas as edições que atingem tal excelência. 

                O livro traz um prefácio do próprio autor, intitulado “Lede”, que, segundo José
                Aderaldo Castelo, “vale, para nós, como uma espécie de manifesto
                romântico”. Este será, por sinal, o maior valor do livro para a crítica brasileira
                moderna, que jamais apreciou os poemas de Magalhães, considerados
                insossos, pouco inspirados e sem grande poder de sedução literária. 

                Recordemos que o livro é dividido em duas partes: “suspiros poéticos” e
                “saudades”. A primeira é constituída de 43 poemas sobre os mais diversos
                temas, tais como a própria poesia, o cristianismo, a mocidade, a fantasia, ou
                ainda diversas impressões sobre lugares, fatos e figuras da história. Em
                grande parte dos poemas há indicações de onde foram escritos, fazendo com
                que possamos relacionar a partir daí os diversos países nos quais o poeta
                esteve: Brasil, Bélgica, Suíça, França, Itália. É uma espécie de literatura
                poética de viagens, que, na época, deve ter fascinado muito aos jovens
                brasileiros. Estes, em sua grande maioria, não podiam fazer o que fizera o
                autor dos Suspiros Poéticos, isto é, escrever em Waterloo um poema sobre
                Napoleão, em Roma um poema sobre as ruínas daquela cidade, em Ferrara
                uns versos sobre o cárcere de Tasso. O livro de Magalhães, se não primava
                pela qualidade dos versos, unia a poesia e a experiência, a arte e a vivência,
                sendo, enfim, o exemplo maior do versejar ao gosto da aventura, do novo, do
                exótico, ao mesmo tempo que expressava a experiência do Eu em contato
                direto com a cultura erudita européia, sacralizada aos olhos dos românticos
                brasileiros. 

                Também a experiência pessoal, o contato com os amigos, faz-se presente no
                livro. E cabe aqui uma pequena observação em relação à edição de Sousa da
                Silveira. O poema “A meu amigo D. J. G. de Magalhães” provavelmente não foi
                escrito pelo próprio Magalhães, já que foi a ele endereçado. Teria sido
                composto, possivelmente, por Manuel de Araújo Porto Alegre, pois, no livro, o
                poema que se segue intitula-se “Em resposta a meu amigo M. de Araújo Porto
                Alegre”, sugerindo um diálogo entre os dois textos. Mas nada aí está muito
                claro, principalmente para o leitor leigo, que desconhece o hábito de os
                românticos trocarem esse tipo de “correspondência” poética nas próprias
                obras. Teria sido bem-vinda uma nota explicativa, por parte de Sousa da
                Silveira ou mesmo da parte dos editores posteriores, sobre a autoria do
                poema. 

                A segunda parte é dedicada, como o próprio título declara, à saudade,
                evocando em 12 poemas a pátria, a família, os amigos, enfim, pessoas, fatos
                e lugares caros ao poeta e dele apartados. Todavia, segundo Antonio Candido,
                o saudosismo de Magalhães não transcende à saudade do “menino manhoso
                longe da mãe”. De qualquer modo, o tema ganhou larga aceitação no
                romantismo brasileiro, e muitos irão chorar a falta da mãe genitora, da mãe
                pátria, da amada, do amigo, etc. 

                “Os Suspiros Poéticos quiseram ser a um tempo o nosso prefácio de
                Cromwell e o grito do Ipiranga da poesia”, afirma Sérgio Buarque de Holanda
                no prefácio anteriormente comentado, que se reproduz também na atual
                edição. Após observar a ausência de criatividade poética nos versos de
                Magalhães, salienta o fato de ter sido ele o pioneiro na orientação francesa de
                nossa vida espiritual. E, efetivamente, em matéria de literatura, nossa
                independência teve por aliada a França, onde, por sinal, os Suspiros Poéticos
                e Saudades tiveram sua primeira edição. 

                Alcântara Machado, além de assinalar algumas inovações formais, nota que o
                livro trazia já no título a marca do espírito romântico, a marca da
                individualidade. Para o escritor, os Suspiros Poéticos e Saudades afirmam,
                assim, o individualismo, a concepção egocêntrica do universo, tão cara aos
                românticos. Antonio Candido vai mais longe e afirma que o que há realmente
                de novo no livro é justamente o culto ao gênio romântico, isto é, o culto ao
                poeta, escritor, artista que, em virtude de sua condição excepcional de
                criador, é incompreendido pelos demais e colocado à margem da sociedade. 

                Assim, se é discutível a qualidade dos versos de Magalhães, ninguém
                questiona o papel dos Suspiros Poéticos no estabelecimento do romantismo
                entre nós. Lembremos, oportunamente, o texto de Torres Homem que vem
                reproduzido na atual edição, comentando a novidade da obra de Magalhães:
                “Esta produção de um novo gênero é destinada a abrir uma era à poesia
                brasileira. Permita Deus que ela não fique solitária no meio da nossa literatura,
                como uma suntuosa palmeira no meio dos desertos.” E seu desejo se
                realizou. Outros, tais como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de
                Azevedo, Fagundes Varela ou Castro Alves, ocuparam os desertos. Mas,
                apesar disso, os Suspiros Poéticos e Saudades continuaram a despontar
                como marco orientador dos amantes e estudiosos da literatura, sendo, por
                isso, muito bem-vinda a atual publicação dos versos de Magalhães. 

                Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves Magalhães. Universidade
                de Brasília, 433 Págs., R$ 30,00 

                Hélder Garmes é doutorando na área de Estudos Comparados de
                Literaturas de Língua Portuguesa da USP 
 

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