Aprendizagem
Pode-se
pensar que, aos 35 anos, era cedo para que Miguel Sanches Neto se dedicasse
ao romance autobiográfico, mas ele escreve para se libertar das
memórias, como um exercício de exorcismo ("Chove sobre minha
infância". Rio: Record, 2000). Aniquilar o passado de desajustamentos,
humilhações e injustiças tornou-se uma obsessão
que só veio a superar, já adulto, pelas catarse da literatura,
ainda assim reabrindo as feridas para curá-las. Os seus anos de
aprendizagem da vida teriam destruído qualquer temperamento menos
vigoroso.
Tudo
estava programado desde tempos imemoriais: "Sempre tive que pagar o preço
de ter um sobrenome espanhol. Minha ascendência explicava todos os
meus defeitos de caráter. Briguento, irritadiço, violento,
orgulhoso, teimoso. Tudo era sinônimo de espanhol e estava em meu
sobrenome. (...) Fiz-me espanhol, mais espanhol do que de fato sou". O
"país obscuro" de onde provinha, dirá no livro de poesia
("Venho de um país obscuro". Curitiba: Travessa dos Editores, 2000),
era "uma infância repleta de muros"; escrever é, agora, um
processo de sucessivas mutilações sentimentais, é
"caçar caranguejos pelo método do guaxinim", que saboreia
a presa "com a memória da dor em carne viva".
A morte
do pai deixou-lhe um trauma incurável, transformando-lhe a existência
numa vingança contra o destino: "O pai é a grande figura
até meus quatro anos. Supersticioso, alegre, animado, bêbado,
fracassado, amigável e irritadiço, ele foi um pouco de tudo
para o menino, que muitas vezes era carregado para os bares. Passava a
maior parte de seu tempo em conversas fiadas (...)". Assim, o menino construiu
na imaginação a figura paterna, tanto mais idealizada quanto
contrastava com o realismo brutal do padrasto que lhe tomou o lugar, estabelecendo-se
entre os dois a inevitável rede de incompreensões recíprocas
em que acabarão por mutuamente destruir-se.
Nesse
ambiente de paixões incontroláveis, o maior mistério
é o tropismo irresistível que conduziu o menino Miguel para
a literatura, transformando-o num dos grandes escritores brasileiros do
nosso tempo, o que é preciso reconhecer desde logo sem hesitação.
Vindo de um meio rústico e de uma família de analfabetos,
ele é hoje o crítico literário mais destacado de sua
geração (e de algumas outras...), assumindo a mesma posição
de primeiro plano no que se refere à arte da prosa de ficção.
A máquina de escrever, diz ele, foi a sua primeira namorada. Sua
poesia está ligada às mesmas camadas tectônicas, se
assim me posso exprimir: "Eu me sinto poeta apenas no momento em que estou
escrevendo poesia, o que é uma coisa que acontece com pouco freqüência
(...). Nos demais momentos de minha vida, sou outra pessoa, escrevo crítica,
faço ficção e principalmente vivo, trabalho e leio"
("Rascunho", Curitiba, nº 1, maio de 2000).
A obsessão
da leitura foi o sinal mais imperioso da vocação de escritor
(contra todas as circunstâncias adversas) e que o salvou do desespero
nos trabalhos grosseiros impostos pelo padrasto: "Todos os dias vou à
biblioteca,
falando pra mãe que tenho que estudar. (...) No segundo dia das
férias já estou na biblioteca, lendo o tempo todo. (...)
Deixaram-me quieto com os livros, principalmente porque lendo me acalma
(...) e no fim todo mundo lucra com isso, porque não dou despesa,
os livros são da biblioteca. (...) Fico horas em silêncio
acompanhando o que acontece em um romance, lendo poemas, aceitando ser
o influenciado".
Ei-lo,
afinal, encontrando-se consigo mesmo: "Estou numa Faculdade de Letras local
e descubro que este curso é o lugar onde menos se lê (...)".
De certa forma, e nas suas palavras, "este livro é pra tentar responder
a esta pergunta (‘qual o sentido de gastar a vida com a literatura?’),
respondê-la por mim mesmo, que é o que importa. Mas também
é pra dar um fundo de verdade ao que minha mãe fala. Agora
poderá dizer pros amigos e parentes que tem um filho escritor. (...)
Vindo de um povo basicamente iletrado, recebi a tarefa de ser seu porta-voz.
Escrevo por isso, pra fazer com que falem estes entes sem discursos".
O mal-entendido
profundo da irreparável tragédia que foi a sua infância
é revelado pela irmã Carmen na carta que lhe dirigiu após
a leitura do manuscrito. No seu entender, a "grande falha" do livro está,
por um lado, em ignorar que a aparente hostilidade do padrasto era apenas
a forma inábil de exprimir os sentimentos, e, por outro, na sublimação
do pai, que estava longe do que o menino idealizava. Quando o padrasto
tentava arrastá-lo para o seu próprio mundo, "era uma forma
de amar, de ensinar o que sabia". Quanto ao pai, no segredo afinal revelado,
era um irresponsável: "Ele também teve várias amantes"
e fez da esposa uma sofredora silenciosa. Na visão de Carmen, o
padrasto era um tipo superior, "homem que leva a sério a honestidade,
tanto nos negócios como na família (...)".
O epílogo
é uma visão de mundos mortos, desaparecidos com a infância
do autor: "Quando é que morreu esta cidade que insiste em viver
em mim?". Não só nele, mas também na permanência
da obra de arte, nessas memórias que agora se incorporam para sempre
entre os grandes momentos de nossa literatura. |