Antônio Olinto


"A África nos deu o sangue e os ossos"

Aos 77 anos, Antonio Olinto lança seu quadragésimo livro, o romance histórico

Alcacer-Kibir (Editora Cejup), nome da batalha em que, na manhã de 4 de agosto de 1578, no Norte da África, desapareceu o rei de Portugal D.Sebastião, considerado pelo escritor "o maior mito da cultura luso-brasileira". Seus nove romances foram traduzidos em 25 países, inclusive na Macedônia. Quase todos foram escritos em cima de uma mesa mineira dada de presente pelo amigo, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Silva Melo. É nesta mesa que Olinto jura ver seus personagens passeando ou mesmo reclamando. "Todo personagem reclama". Em seu apartamento, cercado pelas 300 peças africanas de sua coleção e por quase 20 mil livros, ele fala das coisas que adora: África e literatura. Animado e conversador, ele atribui a sua boa forma à vida feliz que teve: "A vida de escritor é uma vida em que as pessoas não envelhecem. Mantendo a lucidez, você escreve até os 90".

- Como o senhor teve a idéia de escrever seu novo romance Alcacer-Kibir?

- Em 1992, a Unesco fez um seminário no Marrocos sobre mestiçagem cultural e do Brasil foram convidados eu, Jorge Amado, Zélia Gattai e Zora Seljan, minha mulher, nomes muito ligados ao assunto. Eu morei na África muitos anos e escrevi vários livros sobre mestiçagem. Na abertura do seminário, o ministro da Cultura de lá ofereceu um espetáculo folclórico em frente ao forte de Arzila, construído pelos portugueses em 1450, antes mesmo da descoberta do Brasil.

No meio do discurso ele disse "aqui está o forte português de Arzila. Foi no segundo andar que o rei português Dom Sebastião passou sua última noite de vida.

Na madrugada seguinte ele saiu à frente de seu exército e foi combater em Alcacer-Kibir, a 50 quilômetros daqui.

Foi lá que ele perdeu a batalha e morreu". Resumindo, me inspirei para escrever o livro por ter estado no Marrocos naquele momento e por ter ouvido aquelas palavras do ministro.

- Por que o personagem de Dom Sebastião o fascinou?

- Sempre tive interesse por Dom Sebastião, uma figura mítica, o maior mito da cultura luso-brasileira. Fui ao lugar onde ele passou a última noite e quando vi Alcacer-Kibir, pensei: tenho que fazer um romance histórico sobre ele.

Fui fazer a pesquisa em Lisboa, olhei os documentos da época, os posteriores e comecei o romance. Consegui capturar a batalha e a figura de Dom Sebastião, um personagem tremendamente espantoso que, aos 14 anos, foi declarado maior e assumiu o trono. Aos 24 anos, conduziu a batalha em Alcacer-Kibir. A verdade é que o corpo dele nunca apareceu, aconteceu alguma coisa lá e criou-se o mito. O Antonio Conselheiro é tido como uma das reencarnações de São Sebastião, dentro deste contexto de salvar o povo, os pobres, esta coisa messiânica. Esse lado também entrou no romance, mas não me aprofundei no aspecto espiritual da história, apenas no efeito que isso faz nas pessoas.

- O senhor fez pesquisas antes de escrever o romance? Até que ponto pretendeu ser fiel à realidade histórica?

- Fiz um romance histórico: o romance é o substantivo e o histórico é o adjetivo. Mas, no caso de Dom Sebastião, a batalha tinha que ser verídica. Eu invento personagens, como fiz com o Pero. Em geral, quando escrevo à máquina, vejo os personagens todos pequenininhos andando em cima da mesa, como o Pero, que aparecia reclamando de vez em quando, pois os personagens reclamam. A batalha está muito bem descrita, em estilo antigo, nas crônicas da época, como A crônica da jornada do rei: Dom

Sebastião na África, cuja autoria ainda não foi identificada, que foi minha base para o livro. Passei quase três meses em Lisboa, onde li muitos livros da época. Depois de um tempo percebi que precisava viver o período e isso só se faz sozinho. Tanto que o romance já começa comigo sentado em uma pedra vendo a batalha acontecer. Isso é possível desde que o escritor penetre naquilo com toda alma, como eu fiz por intermédio de meus personagens inventados. Depois que acabei de escrever, me libertei do ambiente. Agora estou livre.

- O senhor ainda mantém o hábito de escrever ouvindo música?

- Tenho uns 200 discos. Sem música não escrevo, apenas vario o tema de acordo com o livro que estou preparando. Pode ser música medieval ou Erik Satie. O romance africano eu escrevi ouvindo Vivaldi e até hoje quando o ouço, penso na África.

Durante o tempo em que escrevi Alcacer-Kibir, ouvi a mulher mais importante da Idade Média: Abadessa Hildegard de Bingen. Cada um tem seu método de escrever, nenhum é melhor do que o outro. Para mim, a inspiração vem da música. A inspiração é a coisa que te empurra para frente e faz cócegas em seu espírito, te obrigando a reagir.

- O senhor morou e trabalhou como adido cultural na Nigéria e a mestiçagem cultural parece ser um tema que o interessa. Qual a importância da influência da cultura africana no Brasil?

- De algumas décadas para cá, o Brasil, talvez levado por uma política externa voltada para o norte, abandonou a África. A África nos deu o sangue, os ossos, a construção do país, junto com Portugal. Só que ela nos deu mais do que isso: deu uma religião, um temperamento, uma filosofia de vida. O Brasil é de uma mestiçagem milenar de línguas e religiões impressionante. Quando eu e Zora chegamos na África, em 1962, descobrimos uma coisa maravilhosa que era a cultura africana em sua base, em seu coração, em sua raiz. Também descobrimos uma presença brasileira enorme lá, das pessoas que voltaram.

- Há diferença de perspectiva entre escrever sobre o Brasil morando no exterior ou vivendo aqui?

- De certa maneira, todos meus livros são sobre o Brasil.

Descendentes de brasileiros na África, brasileiros na Europa, Santo Daime na Amazônia. Não dá para se libertar do que você é, de sua terra. Não dá para se libertar de sua raiz.

- Qual será o tema de seu próximo livro?

- Estou escrevendo dois livros. O primeiro é uma biografia de Benedito Valadares, um grande político mineiro com quem trabalhei e que deu nome à cidade de Governador Valadares. Nunca pensei em escrever uma biografia mas a idéia de escrever sobre Benedito me encantou. A família doou seu arquivo para a Fundação Getúlio Vargas.

São oito mil documentos e 800 fotografias para eu pesquisar: vai ser um maná! O outro é um romance que provavelmente se chamará O livro das visitações. Vai ser a história de um personagem visitando várias coisas.

- Aos 77 anos, o senhor ainda se sente disposto e inspirado para escrever tanto?

- Estive doente no ano que passou. Fiquei uma fera comigo mesmo enquanto estive internado no hospital pois ainda não havia terminado o Alcacer-Kibir. Isto foi em abril, terminei o livro em maio. Eu pensava o tempo todo: tenho que sair daqui rápido, não posso deixar esse romance inacabado. Esse pensamento me deu força, ao lado do carinho da Zora e dos amigos. Carinho ajuda. Poesia também. Aconselho para quem estiver doente, ler poesia em voz alta. É uma terapia, poetoterapia. A vida de escritor é uma vida em que as pessoas não envelhecem. Mantendo a lucidez, você escreve até os 90 anos. Quer melhor exemplo que o Barbosa Lima Sobrinho? Com 100 anos ele ainda escreve ótimos artigos semanais para o JORNAL DO BRASIL.

- Além da música, o senhor tem algum método de trabalho?

- O livro sobre o Benedito tem que estar pronto até agosto, para sair em dezembro, quando Belo Horizonte faz 100 anos. A casa da água, que tem 450 páginas, ficou pronto em três meses. Para escrever tenho que ficar atuado, em transe. O que eu chamo de inspiração é, na verdade, transe. O importante é fazer um plano por escrito.

Assim, você se compromete, por exemplo, a escrever cinco páginas por dia. Se não conseguir, fica devendo e paga no fim-de-semana.



(in Jornal do Brasil, caderno Idéias, 11.01.97)


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