Bocage


Epístola a Marília

Pavorosa ilusão de Eternidade, Terror dos vivos, cárcere dos mortos; D'almas vãs sonho vão, chamado inferno; Sistema de política opressora, Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos Forjou para a boçal credulidade; Dogma funesto, que o remorso arraigas Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas: Dogma funesto, detestável crença, Que envenena delícias inocentes! Tais como aquelas que o céu fingem: Fúrias, Cerastes, Dragos, Centimanos, Perpétua escuridão, perpétua chama, Incompatíveis produções do engano, Do sempiterno horror horrível quadro, (Só terrível aos olhos da ignorância) Não, não me assombram tuas negras cores, Dos homens o pincel, e a mão conheço: Trema de ouvir sacrílego ameaço Quem d'um Deus quando quer faz um tirano: Trema a superstição; lágrimas, preces, Votos, suspiros arquejando espalhe, Coza as faces co'a terra, os peitos fira, Vergonhosa piedade, inútil vênia Espere às plantas de impostor sagrado, Que ora os infernos abre, ora os ferrolha: Que às leis, que às propensões da natureza Eternas, imutáveis, necessária, Chama espantosos, voluntários crimes; Que as vidas paixões que em si fomenta, Aborrece no mais, nos mais fulmina: Que molesto jejum roaz cilico Com despótica voz à carne arbitra, E, nos ares lançando a fútil bênção, Vai do grã tribunal desenfadar-se Em sórdido prazer, venais delícias, Escândalo de Amor, que dá, não vende. II Oh Deus, não opressor, não vingativo, Não vibrando com a destra o raio ardente Contra o suave instinto que nos deste; Não carrancudo, ríspido, arrojando Sobre os mortais a rígida sentença, A punição cruel, que execede o crime, Até na opinião do cego escravo, Que te adora, te incensa, e crê que és duro! Monstros de vis paixões, danados peitos Regidos pelo sôfrego interesse (Alto, impassivo númen!) te atribuem A cólera, a vingança, os vícios todos Negros enxames, que lhes fervem n'alma! Quer sanhudo, ministro dos altares Dourar o horror das bárbaras cruezas, Cobrir com véu compacto, e venerando A atroz satisfação de antigos ódios, Que a mira põem no estrago da inocência, (. . .) Ei-lo, cheio de um Deus, tão mau como ele, Ei-lo citando os hórridos exemplos Em que aterrada observe a fantasia Um Deus algoz, a vítima o seu povo: ( . . .) Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento De crimes, de ais, de lágrimas, de estragos, Serena o frenesi, reprime as garras, E a torrente de horrores, que derramas, Para fundar o império dos tiranos, Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo De oprimir seus iguais com férreo jugo. Não profanes, sacrílego, não manches Da eterna divindade o nome augusto! Esse, de quem te ostentas tão válido, É Deus de teu furor, Deus do teu gênio, Deus criado por ti, Deus necessário Aos tiranos da terra, aos que te imitam, E àqueles, que não crêem que Deus existe. (. . .)


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