Francilda Costa


A Poesia na Literatura Infantil

Em princípio, a priori, assim como não há, na verdade uma Literatura Infantil, direcionada no ato de criação, pelo autor, não existe, a bem da verdade, uma Poesia Infantil. Duas hipóteses parecem justificar esta conclusão, a qual apenas é endosso meu, do pensamento lúcido de Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. A poesia para crianças, é, em essência, a mesma obra de arte para o adulto. Ou temos vergonha, diante de um momento poético despojado de complexidade, vergonha de assumir que ele nos impressionou, ou ainda temos aquela idéia velhíssima de que criança é criatura em grau diminutivo, dotada de pouca percepção, limitada em recursos, um homúnculo a quem se deve minimizar conteúdos e reduzir os obstáculos.

A simplicidade de linguagem e um repasse cristalino de mensagem não impedem a feitura de um grande poema (e não um poema grande) nem comprometem a verticalidade de uma abordagem.

O que não me parece viável nem honesto é adaptar, construir uma "simplicidade" falsa, denotativa pela falta de coragem de trabalhar um caminho de acesso ou por acreditar seja a criança um ser reprodutivo, um claudicante observador, incapaz de direcionar sua própria descoberta.

O simples nunca foi o fácil, e nisto reside a confusão maior deste questionamento. Ninguém pode imaginar quanto sofre um poeta, quanto exige de si mesmo para alcançar o que Drummond chama de estado de simplicidade.

A simplicidade, e não a simplificação, brota da depuração, da eliminação difícil da sedução formal (coisa espetacular) e funciona como uma centrífuga que de uma fruta tirasse apenas o suco, sem resíduos adicionais. O preconceituoso erudito, muitas vezes, não sabe que persegue acessório e não o essencial. Como afirma Drummond, quanto mais pura é a obra, mais perplexa a indagação: "Mas é somente isso? Não há mais nada? É o caso de se dizer: haveria, mas o gato comeu. (e ninguém viu o gato).

A criança apenas não tem acesso a determinadas construções do verso, mas é perfeitamente capaz de compreendê-las , bem entendido, se já tem domínio lógico. Daí não existirem poemas infantis para menores de 7 anos. Apenas gravuras das quais se extrai um texto.

O tom moralizador numa poesia, como também uma carga didática, não só intolerável para o adulto, mas para a criança também e sua repugnância mostra-se até bem mais acentuada. Qualquer poesia que tolha o melhor dos bens, a liberdade, é anti-literária e nunca deve ser encaminhada àqueles que se pode moldar, segundo a tradição, no caso a criança.

Deve ser realmente um suplício, tortura chinesa, agüentar dizer, no meio de um palco, em cima de uma cadeira ou a frente da classe:

"Sou pequenina, das pernas grossas Vestido curto papai não gosta Fui na cozinha comer salada Mamãe me viu, me deu palmada Fui na despensa roubar um queijo Papai me viu, me deu um beijo"

Esses direcionamentos ideológicos da mamãe carrasca e do papai herói, tem sustentado muitas das idéias sobre equilíbrio familiar. Se não analisarmos poemas assim questionando sua filosofia e sim a título de mera informação reprodutiva, estaremos bloqueando o avanço de uma futura geração na direção de um mundo menos hipócrita e mais justo em seu senso comum.

Lobato propunha que se usasse a poesia para ensinar todas as áreas de conhecimento do currículo da Escola Básica. A poesia tem o dom de aguçar a sensibilidade e pelo seu processo de síntese forçar desdobramentos do raciocínio.

Grotesco era dizer às crianças, no catecismo infantil a linearidade de coisas assim: "Maria, a mãe de Jesus foi virgem antes do parto no parto e depois do parto." Patativa do Assaré rompe o hermetismo dogmático, utilizando-se tão somente da função poética: "Jesus entrou em Maria como o sol pela vidraça."

Por que não se aproveitam os versos de Juca Chaves para cantar a história do descobrimento? Medo do tom de sátira, de uma possível queda no fervor cívico? O objeto amado que não resiste a uma radiografia, não adquire sustentação permanente e profunda.

Se não vejamos os versos à guisa de um estilo trovadoresco, talvez até um misto de cantiga de amor e escárnio.

"Então partiu Cabral comandando as caravelas oh cara, oh cara, oh cara, oh caravelas. Bem no meio do oceano Encontraram calmaria BIS Oh calma, oh calma, Oh calma, oh calmaria. Enxergaram logo um monte que chamaram de Pascoal era dia 21 de abril 2 meses depois do carnaval."

O esforço para arrolar como infantil alguns poemas da lavra de poetas maiores, como é o caso de Mário Quintana, Vinícius de Moraes e Cecília Meireles é evidente nos exercícios de interpretação de texto, contidos nos livros didáticos, os quais drenam o que há de mais importante no sub-texto do poema, tornando-o um mero referencial que atende apenas o elemento instrutivo (o educare) deixando de lado o educare, o elemento provocador de descobertas, que perfaz o educar e diverte pela aventura de, com ele, alcançar-se a compreensão maior, a chave que abre o mundo "não dito do poema".

Vejamos o poema "O Cavalinho Branco" de Cecília Meireles e a ficha de leitura que se lhe segue:

"À tarde, o cavalinho branco está muito cansado: mas há um pedacinho de campo onde é sempre feriado, O cavalo sacode a crina loura e comprida, e nas verdes ervas atira sua branca vida. Seu relincho estremece as raízes e ele ensina aos ventos a alegria de sentir livres seus movimentos. Trabalhou todo o dia tanto desde a madrugada! descansa entre as flores, cavalinho branco de crina dourada."

Atente-se agora para o questionamento que é aplicado ao poema:

l - Qual é a cor do cavalinho? 2 - Onde ele está? 3 - Como é sua crina? 4 - Ele está dormindo ou acordado? 5 - Que ele come?

Sabemos que, desta maneira dois desastres didático-literários acontecem: primeiramente, o poético foi inviabilizado; segundo, a criança e condicionada a manter-se nas informações secundárias, superficiais, impedida de se emocionar ou recriar o poema, numa co-autoria.

O mesmo acontece com o poema "Pedro" de Bartolomeu Campos Queiroz.

"Pedro é um nome que agente conhece em muitas línguas: Pedro, Pierre, Pietro, Peter, Pether, Petrus. Pedro pintou, um dia, em alguma parte do mundo, o retrato de uma borboleta. O papel tinha o tamanho de sua intenção. As cores, as de seu desejo. Pintou ainda, sobre o papel, flores para a borboleta se esconder e galhos para descansar. É mesmo fácil imaginar sua pintura ou faze-la, mas a conseqüência não foi tão simples. É melhor saber toda a história. Pierre acordou com o coração cheio de domingo. Domingo é dia em que a gente não quer nada e por isso acontece quase tudo. Não era domingo, mas ele se sentia em paz com o mundo. Nesse dia ele viu o vôo de uma borboleta (vôo de borboleta pode transformar qualquer dia em domingo)."

Com relação a este poema, uma professora sofreu admoestações do supervisar por colocar um estudo das idéias do texto, acima da compreensão dos alunos, de acordo com reclamações das mães e não dos garotos, que estavam gostando do desafio da dificuldade. Vejamos as perguntas:

l - Por que será que Pedro é um nome tão comum? 2 - Pedro é um nome forte ou fraco? Fica bem acompanhado de outro nome sozinho? Explique sua escolha. 3 - Por que as flores serviam para a borboleta se esconder e não para delas sugar o mel? 4 - O coração da gente muda quando o domingo se transforma em 2a feira? 5 - Qualquer dia pode ser domingo? Como?

O adulto, via de regra, tem em mente que fazer a criança pensar ou conflitar-se é maltratá-la.

Alguns anos mais tarde, quando esta se liberta do casulo padronizando, quer-se, por força, que abstraia, que filosofe, que não diga nem escreva "besteiras", amenidades".

A poesia que deve ser selecionada para a criança não é a poesia pueril, mas tão somente aquela em que o autor se desnudou em transparência, mas não abdicou de seu mergulho conteudístico. A nosso favor vem o poema escrito por uma menina de 8 anos, cujo título é "A Lavadeira".

"Lá vem ela Triste Feia Devagar Só trouxa Mais nada."

Ao apresentar seu trabalho, a menina recebeu as seguintes recomendações:

a) O mínimo de 10 linhas não foi alcançado. b) Não descreveu o que a lavadeira faz. c) Não disse com que ela trabalha.

Aos pés de uma criança socióloga, dona dos segredos mais ínfimos de um processo de síntese, foi lançado um poema atropelado, reduzido a frangalhos e pela exigência de um texto realmente infantil.

O grande Vinícius não pensou na faixa etária de seus leitores quando, na "Arca de Noé" nos diz:

"Os maiores vêm à frente Trazendo a cabeça erguida E os fracos, humildemente Vêm atrás como na vida."

Dura e realista visão de mundo, onde o poeta não se amarra ao... "e foram felizes para sempre."

Outro exemplo está no poemento "A Porta", onde o apólogo despretencioso encerra lições existenciais e filosóficas da maior valia:

"Eu sou feita de madeira Madeira, matéria morta Mas não há coisa no mundo Mais viva do que uma porta. Eu abro devagarinho Prá passar o menininho Eu abro bem com cuidado Prá passar o namorado Eu abro bem prazenteira Prá passara cozinheira Eu abro de sopetão Prá passar o capitão. Só não abro pra essa gente Que diz (a mim bem me importa) Que se uma pessoa é burra É burra como uma porta. Eu sou muito inteligente! Eu fecho a frente da casa Fecho a frente do quartel Fecho tudo nesse mundo Só vivo aberta no céu."


A Forma da Poesia Infantil


Criar licenças que nada têm de poéticas, e sim representam uma caricatura grosseira de fórmulas de linguagem materno-infantil, atrofiando a fraseologia e adulterando a estrutura da Língua Padrão, não me parece aconselhável nem necessário. A criança acomoda-se às limitações de seu vocabulário e cresce desconhecendo o potencial de recursos que o seu idioma coloca à sua disposição. Uma vez percebido o signatum, a criança, com naturalidade, falará e escreverá a palavra ou a oração difícil, sem pendatismo algum. Convenhamos que o exagero no rebuscamento é antipático até para o adulto, que já manipula a vaidade exibicionista.

Portanto, tal enfoque não deve ser tomado como fator divisória dentro da poesia que vamos trabalhar com a criança.

Mestre Mário Quintana nos ensina isto através de um dos seus textos poéticos, convencionalmente incluído, pelos editores, na categoria de Poesia Infantil.

"Oh! Aquele menininho me dizia "Fessora, eu posso ir lá fora"? Mas apenas fica um momento Bebendo o vento azul... Agora não preciso pedir licença a ninguém. Mesmo porque não existe paisagem lá fora: Somente cimento. O vento não mais me fareja a face como um cão amigo... Mas o azul irreversível persiste em meus olhos." Analisando sucintamente a forma dos versos teríamos:

a) Presença da interjeição "Oh", exclamativa clássica e escrita com "H".

b) Variação do sufixo "inho" aplicado à palavra menino, em vez do uso corriqueiro meninozinho. Sintetização do grau diminutivo.

c) "Fessora" — Pertence a um verso aspeado, isto é, aparecendo como frase feita, em pedido convencional.

d) Uso de metáfora comparativa e sinestesia (Bebendo o vento azul)

e) Coordenada aditiva com a locução mesmo porque, valendo contextualmente como e também.

f) Anástrofe — deslocamento na ordem linear dos termos da oração. O vento não mais me fareja a face, além de prosopopéia.

g) Uso do adjetivo irreversível, acompanhado do verbo persistir, que podemos classificar como coloquial culto.


Perguntamos: por que o rótulo "infantil"?

Essa história iria longe, pois infindos seriam os exemplos a serem apresentados. Com a maior seriedade encerro esta pequena reflexão despretenciosa, fruto de vivências emilianas, bem mais do que planejadas por um Visconde de Sabugosa, que no dizer de Lobato mereceria os versos de Gregório de Matos Guerra, em um de seus epigramas às pretensas sumidades baianas de seu tempo:

"Cabeça, que desconsolo Cabeça, força é dize-lo Por fora não tem cabelo Por dentro não tem miolo."


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