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Francisco Miguel de Moura


 

Uma reflexão cultural de fim-de-século

 

Explicação:

No recebimento do troféu «Fontes Ibiapina»,versão 1988, de INTELECTUAL DO ANO, concedido pela UBE - PI, pronunciei este depoimento que, àquela data, chamei de pós-moderno. No ano seguinte, as Edições Cirandinha, Pi, publicavam-no, em plaquete.

f. m. m.



Uma reflexão cultural
de fim-de-século

 

A largos passos bateremos à entrada do terceiro milênio cristão.

Vivemos um fim de modernidade, essa modernidade que tanto prometeu e agora nos assusta. É como se ouvíssemos de alguém desconhecido a famosa inscrição que Dante leu na porta do Inferno afixada:

«LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH'ENTRATE.»

Depois do gigantesco crescimento da ciência e das técnicas, da indústria e das artes, neste fim-de-século dominado pelo totalitarismo de vários matizes e pelos meios de comunicação de massa, qualquer vida comum perde a dimensão e a consistência; sua vontade desapareceu na voragem das solicitações do consumismo. Novamente o «eu» e a individualidade reclamam por voz e vez, como no romantismo. Não será uma repetição trágica da história social da humanidade?

Conheço uma obra valiosa sobre a cultura contemporânea, de autoria de Christopher Lasch (1), cientista social americano, onde as causas e consequências são apontadas para estudo e reflexão da pós-modernidade. Diz o autor de «O Mínimo Eu», que é como se chama o livro de Christopher Lasch:

«Em nossa época, a sobrevivência, e com ela a realidade do mundo exterior, o mundo das associações humanas e das memórias coletivas, apresenta-se como cada vez mais problemática. O desvanecimento de um mundo durável, comum e público, intensifica o medo da separação, ao mesmo tempo que enfraquece os recursos psicológicos que tornam possível enfrentar tal medo de forma realista.»

Prossegue Lasch enfatizando o desaparecimento do «reino intermediário dos objetos fabricados pelo homem, nas sociedades baseadas na produção em massa e no consumo de massa». Definindo sucintamente o tipo de cultura deste final de século como o narcisismo - projeção dos próprios medos e desejos, dos objetos da produção industrial, bélica, artística, etc. etc. - «não porque torna as pessoas gananciosas e agressivas, mas porque as torna frágeis e dependentes», o citado autor conclui que em tal sociedade «o consumidor vive rodeado não apenas por coisas como por fantasias. Vive num mundo que não dispõe de existência objetiva ou independente e que parece existir somente para gratificar ou contrariar seus desejos.»

Como saber se o mal é da sociedade ou do homem que a faz? O homem social e o próprio indivíduo como ser têm muito de convencional e pouco de verdades duradouras para aquilo que as crenças religiosas chamam de eternidade. Mas é impossível separar sociedade e homem, pensar um sem o outro, sentir este sem a sua contrapartida. Num passado recente, os artistas e intelectuais, fomos acostumados a valorizar o «eu», o ideal do ego, a individualidade. Mas, digam-me, por favor, o nosso «eu» existe ou é pura invenção dos psicólogos? Que sou? Quem sou? Qual o sentido da minha vida? Por acaso posso responder a essas questões substanciais? Dizem que as criancinhas e os poetas são os únicos seres capazes, embora não sejam nem um pouco compreendidos.

«Eu sou o caminho, a verdade e a vida», disse Jesus. Essa resposta é muito atual. No entanto, quem a compreendeu? Faz quase dois milênios e poucos o ouviram.

A verdade é que eu não sou. Procuro ser e quando repenso e re-sinto, já fui. Então, eu sou com a perspectiva do passado, da história. Se eu fui - sou; se eu quero ser - penso no vir-a-ser e me sinto futuro. Essa é a perspectiva temporal, infinita, de sentir o «eu», olhando-se para frente e para trás, no espelho - porque, como presente, o nosso «eu» é uma ficção. Eis o melhor sinal de que somos uma sombra, uma máscara. Quem fez essa sombra, quem está por trás dessa máscara, quem é a causa - não sabemos ainda, e talvez nunca saberemos. Mas é preciso saber. Nossa vida toda é movimento para frente, esperança, desejos não-realizados, ou então desamparo, desespero. Porque, como conclui o filósofo Kierkegard em «O Desespero Humano», o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade. É, em suma, uma síntese dos contraditórios. E uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vida, o «eu» não existe ainda. (2)

Agora, falando mais pessoalmente, eu me coloco: ontem eu disse umas tolices que hoje rejeito, ontem escrevi poemas que hoje reescrevo; jamais pensei em ser mais do que um poeta entre os poetas; sequer tentei até hoje fazer uma seleção dos meus melhores poemas, com medo de minha autocrítica, por ainda esperar «os melhores poemas» ou acalentar a vontade de tecer meus últimos desalentos, minhas pesadas angústias, os meus fantasmas sobreviventes no corpo cansado através de um longo poema épico de mim mesmo. Tudo o que tenho feito é bom e mau, é perigoso e desprezível. É a ambivalência de uma paranóia que não me cabe explicar, não me cabe sequer entender. Mas me cabe ser sincero.

Então, para que fazer poesia, se o futuro é bem pequeno? se não há eternidade histórica? se estamos permanentemente ameaçados de extinção?

Parafraseando Jean-Paul Sartre, será que a humanidade é uma paixão inútil?

Até a praça, que era do povo, está em vias de extinção, de desaparecimento total; e em seu lugar ficam o quarto e a televisão, o homem emparedado no «flat».

O momento é para refletir por que fazemos arte, para que fazemos ou deixamos de fazê-la. Será apenas uma satisfação egoística sem consequências? Será mero prazer do jogo que morre tão logo se encerra a partida? Não será a pulsão desesperada de não morrer? - E no momento em que o poeta escreve o poema, ele, o poeta, morre no seu poema e entrega-se a uma eternidade duvidosa, a uma história que lhe foge das mãos, lhe foge da esperança.

O homem não veio de um só tronco, de uma só origem, do casal Adão e Eva, como falou Moisés a seu povo. A arqueologia como ciência tem tudo para nos fazer acreditar no aparecimento do homem - ainda não sapiens, mas homem - em várias partes da terra, ao mesmo tempo. Esses vários protótipos humanos cresceram sem comunicação nem mistura entre si até a nossa fase histórica. Assim, somos filhos da terra, irmãos na vida e na morte, na potencialidade de compreender e ser compreendidos, de amar e ser amados, mas não completamente irmãos de carne, nem irmãos de alma. Aliás, o que é a alma humana? - O espírito, a consciência, o eu, a vontade? Por que existem as guerras e os crimes hediondos, as torturas, os holocaustos e os genocídios? Como explicar almas tão cruéis? Com argumentos da moralidade e da ética? É possível?

Manuel Bandeira sacramentou:

«Se queres sentir a felicidade amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem,

mas as almas não.» (3)

Teríamos dias e dias, anos e anos para discutir esta ou semelhantes questões. As respostas são muitas, mas a verdade escapará: as verdades da ciência, da religião, da filosofia, da ética - todas são modelos criados artificialmente. E mais: entranhados no poder e na sua fruição.

Até bem pouco se discutia «a verdadeira natureza humana». O que seria, como identificá-la, como mostrar a diferença entre nós e os animais (vertebrados, insetos, vírus, etc.) e entre os homens e as cousas (seres inanimados como as estrelas e as galáxias, os buracos negros e os imaginários extraterrestres, e até as simples pedras).

Para mim, a natureza humana é complexa, mas há dois componentes indiscutíveis: o social e o comunicativo - apesar de nossas terríveis frustrações nesse sentido. O homem é o animal social por excelência, a mais frágil criatura colocada no seio da natureza, não sobrevive só. O homem sozinho é uma ficção desumana. Como conseguiu fugir aos perigos pré-históricos, venceu os outros animais e conquistou a natureza, não sabemos ainda. Foi ele o primeiro ser vivo a aparecer na terra? A ciência não pôde apresentar nada como verdade provada; sobre o homem pouco se sabe; nem a religião nem as artes têm solução. Os poetas tentam adivinhar, porque o poeta está mais perto de Deus.

Somos fortes, atravessamos fronteiras físicas, passeamos como seres extraterrestres fora da estratosfera e em regiões mais distantes, no nosso poético satélite. Já mandamos nossos sinais a outros planetas e estrelas, mas não temos condições físicas de viver fora da terra, sem proteção.

«LEMBRA-TE, HOMEM, DE QUE ÉS PÓ E EM PÓ TE HÁS DE TORNAR.»

Só pelo amor - amor no seu sentido integral - o homem é grande e ultrapassa todas as fronteiras. «Não conseguimos amar alguém sem que isso nos leve a amar muitas outras pessoas», assegura o escritor Erich Fromm. No amor sintetizamos nossas enormes e variadas contradições, conseguimos ultrapassar as barreiras da língua e do pensamento. Na linguagem comum, os escritores e poetas não encontram a expressão de si mesmos e do seu amor; sentir é uma forma especial de ser criatura e de ser homem. Aqueles que tentaram criar uma língua própria fracassaram, submergiram na incomunicabilidade. «Na verdade, as coisas que mais me diferenciam e me individualizam em relação aos outros, o que torna a comunicação de minha pessoa um conhecimento único, são meus sentimentos ou emoções», diz John Powell S. J. (4)

Graciliano Ramos, nosso grande escritor, de outra feita, acrescenta, com felicidade: «SE ME TIRAREM OS MEUS DEFEITOS, DEIXAREI DE SER EU, TORNAR-ME-EI NOUTRO.»

Ninguém sente igual, com a mesma intensidade e os mesmos valores. E no entanto todos sentimos, sentir é universal. Não esmorece mas complica-se - ao passo que mais avançamos na verdade sobre nós mesmos - a velha dialética do indivíduo contra o universo, do eterno-desejado contra a limitação natural, liberdade versus dever, amor em frente à indiferença. Universal seria o indivíduo, o único, o absoluto; universal seria o instante, o momento, a constante mudança. Universal é a vida, que ninguém sabe nem saberá o que é. Mas o homem consegue saber o que a não-vida é, e daí se considera um deus, um criador. Mas, não. Somos míseros seres escorados na religião, na ciência e na filosofia. Como poetas, a busca da liberdade é uma das nossas ânsias. Mas o homem pós-moderno, na sua busca de liberdade, é capaz de todas as vilanias, inclusive a destruição própria e do mundo. Portanto, liberdade, idéia que um dia foi o caminho da criação, hoje é sinônimo do poder e da força - monstros que ficam fora do nosso alcance, do nosso domínio. Não conseguimos romper as cadeias da pós-modernidade. Sentindo essas pesadas cadeias, Henry Miller, escritor maldito, com a pena do crítico mordaz que é, num como estertor, reclama: «Eu estou morto apenas espiritualmente. Fisicamente estou vivo. Moralmente sou livre.»

Num depoimento como este, quando pretendo externar o agradecimento pelas homenagens (do título e da festa de entrega), não precisei falar de mim, não pude falar de mim. Mas como falar de um «eu» mortalmente ferido pelo mundo da incompreensão e da indiferença?

Para finalizar, vão aqui, em forma de súmula, algumas anotações que podem ter alguma utilidade de advertência, mais para mim próprio do que para os poetas e escritores:

1. Sou e continuo sendo um aprendiz de escritor, inconformado comigo mesmo. Mas não desisto.

2. Não creio em elogios, são quase todos falsos - o que se diz para agradar é mentira.

3. No entanto, eu os espero como todo ser humano. Eles são absurdamente necessários.

4. Os escritores não são sinceros quando menosprezam a crítica, ela é necessária - conquanto seja incômoda. Mas não há mais críticos como antigamente. Hoje eles se dirigem mais aos leitores como anunciantes; ou aos escritores e artistas como desafetos.

5. Vida é constante elevação. Não é só viver - é preciso sentir, pensar, gravar, escrever, fazer. Há aprendizes e mestres. Uns e outros se realizam na busca do que não existe ainda. Nem talvez existirá.

6. Não vamos nos martirizar à cata do melhor poeta; leiamos os melhores poemas, sem olhar quem os subscreveu. Basta de mesquinhez!

7. Na base sempre estão os fracos, leitores e poetas. São poucos os escolhidos para o topo da pirâmide. Quem é melhor: quem sustenta ou quem é sustentado?

8. A arte é o reino da liberdade. Usá-la da melhor forma é necessário e possível, antes que assassinar literalmente nossos irmãos.

9. Os poetas e escritores somos muito vaidosos - no geral nos achamos mais importantes do que somos. Porém a última coisa que se deve fazer para ganhar notoriedade é um poema.

10. Os escritores já tiveram sua importância, justo quando os livros todos eram escritos em versos, inclusive a Bíblia. Hoje são os homens da comunicação (rádio, jornal e tevê) que realizam o milagre de serem deuses, embora por alguns minutos.

11. Prevejo a volta do romantismo no começo do século XXI, um romantismo renovado. Poetas e leitores não vivem sem poesia, ela é alimento e veneno. Desse veneno eu quero morrer.

Teresina, 04 de abril de 1989.
 


 

Leituras e consultas:

1. «O Mínimo Eu» - Christopher Lasch, Editora Brasiliense, 4a. edição, 1987, São Paulo. Tradução de João Roberto Martins Filho.
2. «O Desespero Humano» - Kierkegard, in «Os Pensadores», Abril Cultural, 1979, São Paulo. Tradução de Adolfo Casais Monteiro.
3. «Estrela da Vida Inteira« (Poesias Completas) - Manuel Bandeira, Liv. José Olympio Ed. 6a. edição, 1976, Rio.
4. «Por que Tenho Medo...» - John Powell, S. J. Editora Crescer, 4a. edição, 1987, B. Horizonte. Tradução de Clara Feldman de Miranda.
 



Autor:

Francisco Miguel de Moura nasceu em Francisco Santos (antigo Jenipapeiro), município da região de Picos, Estado do Piauí, em 16 de junho de 1933. Formado em Letras pela Universidade Federal do Piauí, tem curso de pós-gradução na Universidade Federal da Bahia, mas não exerce o magistério. Há algum tempo aposentou-se como funcionário do Banco do Brasil. Pertence à Academia Piauiense de Letras (APL) e é sócio-fundador da União Brasileira de Escritores do Piauí, tendo sido um dos seus presidentes. Participou do Conselho Estadual de Cultura. É membro do Conselho Editorial da revista «Literatura», de Brasília. Premiado como poeta, contista, cronista, romancista e crítico literário. Publicou cerca de vinte livros. Sua última obra foi «Poesia in Completa», Fundação Cultural «Mons. Chaves», Teresina, 1997.