João Quental


Os Salmões

Olhos que pela primeira vez vêm: uma sala onde sempre estiveram, encontrar perdida entre montinhos de lixo e poeira uma fotografia vender um carro usado amar uma mulher feia ser fiel a um apartamento à beira-mar tudo o que já tantas vezes foi feito refeito novamente feito mansardas onde os mortos se encontram nos corredores virei e comprarei mais um lote de sentimentos normais. Encontrar uma mulher feia perdida no meio de um montinho de fronhas e lençóis, vender um apartamento usado, amar à visão de um carro encostado à beira-mar tudo isso são novos motivos novas chances sítios distantes onde nada acontece de verdade onde manchas castanhas sob os olhos nada são além de cansaço, hora carmesim dias vulgares o sol depositando pequeninas faces de perfil duas peles insensíveis no alto das árvores. Encontrei-me, olhos que olham, feio enroscado na cama de algum apartamento à beira d'água com um carro de segunda-mão encostado ao meio-fio movendo noites pelo apalpar, a carne cede claro sempre sede, encontrar um dia inteiro com você uma navegação entre cachoeiras, proporções estranhas de uma máxima realidade tudo o que te menospreza. Dias de fascínio, dias em que não mais é ridículo falar de ti, lembrar os mortos observar o que for quando for o desovar infeliz, pobres salmões nostálgicos.

(1988)

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