Rogério Bessa


Memórias da Cidade
De São Sebastião do Rio de Janeiro

uma cidade aos pedaços: um trecho aqui, outro lá, impossíveis de mapear na memória adventícia. uma cidade aos pedaços: viadutos estendidos, curvos e bem retesados e suspensos sobre rios invisíveis, que desembocam em nada, mas que vez por outra dão com túneis que os engolem na embocadura dos morros. uma cidade debrum: maritimamente orlada, Flamengo, Botafogo etc. imbricando-se em toda a volta. impossível saber de cor essa estranha geografia, cujos pedaços só os mapas seguramente memorizam.
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Cecília e a Sala amarela no Largo da Lapa, porque ninguém mais que ela foi tão mar e tão meireles. Não obstante Cecília, esse nome contradiz a verdade etimológica, pois ninguém tanto mais viu. Cecília, mar e meireles, quem hoje passa e não te vê, também a sala vazia não vê, aberta em teu nome.
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Ah! Quanta barata incauta na mira de meus sapatos! Lá sois grandes, mas pascóvias, porque fáceis de acertar. Viveis do alento do nosso subdesenvolvimento. Cuidado com os sapatos sem cor e inseticidas nas solas envernizadas de vossos costados alados. E vós, baratas miúdas deste Rio de Janeiro, que fazeis na superfície do solo civilizado? Por que meteis pelas mãos os pés de vosso destino e viveis na marginália do dito ciclo biológico? Cá não tendes a grandeza das baratas do Nordeste, mas, em vossa miudeza, trazeis lição de progresso. De onde vindes? Quantas sois? Por que deixais o esconderijo do esgoto metropolitano para a luz dos claros sóis? Por que vos fazeis às vistas de nativos e turistas, obscurecendo a imagem da Cidade em sua paisagem?
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Olho. Nada vejo além de caixas enormes de orifícios retangulares propositadamente simétricos Um céu que ora esclarece o nada construído, ora anoitece o dia em plena luz do sol. À noite, as caixas se revestem de um dia de festa. Há pisca-piscas, relâmpagos entre os caixas, e britadeiras cortando um silêncio de concreto, quando vivalmas se deitam e fingem dormir.
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Respeite o metrô, que a obra é humana, mas o projeto, divino. O metropolitano levanta a poeira, mas o carioca dá a volta por cima. Pede-se tolerância aos metrosuários, que não haverá pó sob poeira, quando o metropolitano começar a correr nos bueiros do Rio de Janeiro.
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Isso ainda vai ao Deus-dará, que nada tem a ver com ela: pó eira e beira do sem-jeito! Ainda bem que o Cristo-Redentor não está de braços cruzados a ver longes navios ao largo. No dia em que os braços cruzar, meu Deus, não sei o que será.
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Apesar do humano pedra, amo a Cidade e sua História, as palmeiras arranha-céus, seus largos com suas igrejas. E apesar de havê-la deixado mais rasa do que o próprio chão, também amo o perdido e achado, provisoriamente malsão. Amo-lhe o solo e subsolo, amando-lhe esse metrô, pois quem e o que tatu nasceu morre cavando e me consolo.


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