Rogério Bessa
Memórias da Cidade
De São Sebastião do Rio de Janeiro
uma cidade aos pedaços:
um trecho aqui, outro lá,
impossíveis de mapear
na memória adventícia.
uma cidade aos pedaços:
viadutos estendidos,
curvos e bem retesados
e suspensos sobre rios
invisíveis, que desembocam
em nada, mas que vez por outra
dão com túneis que os engolem
na embocadura dos morros.
uma cidade debrum:
maritimamente orlada,
Flamengo, Botafogo etc.
imbricando-se em toda a volta.
impossível saber de cor
essa estranha geografia,
cujos pedaços só os mapas
seguramente memorizam.
* * *
Cecília e a Sala amarela
no Largo da Lapa,
porque ninguém mais que ela
foi tão mar e tão meireles.
Não obstante Cecília,
esse nome contradiz
a verdade etimológica,
pois ninguém tanto mais viu.
Cecília, mar e meireles,
quem hoje passa e não te vê,
também a sala vazia
não vê, aberta em teu nome.
* * *
Ah! Quanta barata incauta na mira de meus sapatos!
Lá sois grandes, mas pascóvias, porque fáceis de acertar.
Viveis do alento do nosso subdesenvolvimento.
Cuidado com os sapatos sem cor e inseticidas
nas solas envernizadas de vossos costados alados.
E vós, baratas miúdas deste Rio de Janeiro,
que fazeis na superfície do solo civilizado?
Por que meteis pelas mãos os pés de vosso destino
e viveis na marginália do dito ciclo biológico?
Cá não tendes a grandeza das baratas do Nordeste,
mas, em vossa miudeza, trazeis lição de progresso.
De onde vindes? Quantas sois? Por que deixais o esconderijo
do esgoto metropolitano para a luz dos claros sóis?
Por que vos fazeis às vistas de nativos e turistas,
obscurecendo a imagem da Cidade em sua paisagem?
* * *
Olho. Nada vejo além de caixas enormes
de orifícios retangulares propositadamente simétricos
Um céu que ora esclarece o nada construído,
ora anoitece o dia em plena luz do sol.
À noite, as caixas se revestem de um dia de festa.
Há pisca-piscas, relâmpagos entre os caixas,
e britadeiras cortando um silêncio de concreto,
quando vivalmas se deitam e fingem dormir.
* * *
Respeite o metrô,
que a obra é humana, mas o projeto, divino.
O metropolitano levanta a poeira,
mas o carioca dá a volta por cima.
Pede-se tolerância aos metrosuários,
que não haverá pó sob poeira,
quando o metropolitano começar a correr
nos bueiros do Rio de Janeiro.
* * *
Isso ainda vai ao Deus-dará,
que nada tem a ver com ela:
pó eira e beira do sem-jeito!
Ainda bem que o Cristo-Redentor
não está de braços cruzados
a ver longes navios ao largo.
No dia em que os braços cruzar,
meu Deus, não sei o que será.
* * *
Apesar do humano pedra,
amo a Cidade e sua História,
as palmeiras arranha-céus,
seus largos com suas igrejas.
E apesar de havê-la deixado
mais rasa do que o próprio chão,
também amo o perdido e achado,
provisoriamente malsão.
Amo-lhe o solo e subsolo,
amando-lhe esse metrô,
pois quem e o que tatu nasceu
morre cavando e me consolo.
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