O livre trânsito poético de
Adriano Espínola
Floriano
Martins
1.
A
verdadeira poesia faz com que ocorram coisas. Como nos lembra o
inglês Robert Graves, “o poema quando alcança um grau intenso,
funciona na quinta dimensão sem tomar em conta o tempo”.
Verifica-se uma sagração dos elementos que são tocados pela
poesia. Um valor acima de toda a relatividade do mundo. Uma
verdadeira aliança com o absoluto. Ouçamos Gottfried Benn:
“As palavras pulsam algo mais que notícia ou conteúdo; por um
lado são espírito, mas por outro possuem a substancialidade e a
ambigüidade das coisas da natureza”. Melhor do que ninguém o
poeta alemão solucionou as questões geradas pela eterna
dissidência entre forma e conteúdo, em sua fundamental
conferência “Problemas da lírica” (1951), e a conclui exatamente
recordando uma aclaradora frase de Hegel: “Não a vida que tem
medo da morte e se mantém pura da devastação, mas sim aquela que
a suporta e nela sabe conservar-se, essa é a vida do espírito”.
De alguma
maneira sou tocado por essas lembranças quando me ponho a
escrever acerca da poesia de Adriano Espínola (1952), em
especial sobre este recente Em trânsito (1996), livro que
reúne seus dois últimos títulos publicados: Táxi ou poema do
amor passageiro (1986) e Metrô ou viagem até a última
estação possível (1993). Em grande parte isto se explica
pelo aspecto de intensa relação que sua poesia mantém com essa
“devastação” a que se refere Hegel, Georg Wilhelm Friedrich", ou
seja, fundamenta-se sua poesia exatamente por não temer
mesclar-se à matéria esfacelada de seu tempo e dali, ao escutar
o pleno avanço da devastação, recompor-se já em condições de não
“tomar em conta o tempo”. E abraça a intemporalidade justamente
a partir de seu emblema mais voraz: a viagem. Seu espírito
constitui-se em forma de um frêmito absoluto que a tudo devora.
Não é outro o sentido de seu trânsito: tocar os dois extremos:
lugar e não-lugar. Não se trata simplesmente de uma oposição ao
sedentarismo, mas sim de uma ousadia maior, de tocar a medula do
movimento e não extraviar-se em sua revelação. Portanto, a
voracidade urbana não é senão uma das mil tramas de que se
utiliza a poética de Adriano Espínola para fazer com que ocorram
coisas no desfiar de seus versos.
A
respiração define a existencialidade de uma poética. Nenhum
crítico atinge a última estação possível da poesia se não capta
a respiração do poeta com quem decide conviver. Antes de
vincular-se a uma mera fome do cotidiano, no sentido mesmo de
uma dependência das batidas cardíacas de seu próprio tempo,
penso que radica a respiração da poesia de Adriano Espínola em
uma necessidade vital de penetrar a inquietude de seu espírito,
busca de um enfrentamento com seus suores internos, com o furor
de suas vertigens. Claro, tal périplo ulterior somente se
realiza como linguagem, como rigor verbal. Neste sentido podem
muito bem, à primeira lida, ser confundidos seus versos com uma
reiteração de certos mecanismos desgastados das vanguardas
experimentais, sobretudo pela grosseira recorrência desses
mecanismos por grande fatia da poesia que se produz hoje no
Brasil. No entanto, somente recorre a tais expedientes em função
de uma acentuada ironia, a partir da qual senão exatamente os
questiona, ao menos os expõe, ou melhor, os descarna sem
piedade. Este é sem dúvida o grande risco que norteia sua
poética: insurge-se contra o desgaste da linguagem a partir da
utilização dos próprios atributos de sua degeneração. Seu risco
e conquista. Se Em trânsito, sobretudo em seu segundo
livro, Metrô ou viagem até a última estação possível,
confunde-se com um mero inventário das degradações urbanas, sem
opor-se diretamente a tal estado de coisas, define uma ordem
estética do próprio poeta, interessado em minar a linguagem por
dentro, empenhado em fazer com que sua lúcida ironia violente a
linguagem a partir de si mesma, evidenciando seus desgastes,
suas reiterações, sua respiração corrompida.
Motivado
não pela vitalidade da analogia, mas sim por uma busca
desarticulada de paralelismo inconseqüente entre poéticas, já se
escreveu acerca das relações possíveis entre Adriano Espínola e
Álvaro de Campos. Talvez possa nos interessar tal analogia à luz
de uma leitura de Octavio Paz, ao situar que Pessoa, através de
Álvaro de Campos, lançava-se “a ser todos e estar em todas as
partes”. Tal aparente estado de vadiagem do ser implica uma
“consciência do desterro”, sendo esta uma “nota constante da
poesia moderna”, como nos segue lembrando o poeta mexicano.
Neste sentido, julgo superficial atribuir vínculos entre a
poesia de Adriano Espínola e Álvaro de Campos, visto que
seguimos ainda desfiando o entramelado de ecos da modernidade,
seus inúmeros ardis e antefaces. Ao empreender a viagem de
Espínola todos nos descobrimos outro em nós mesmos. A poesia nos
dá essa consciência do outro. Dupla consciência: a necessidade
de imprimir realidade em tudo quanto tocamos e a nostalgia de
uma unidade perdida. Em tal sentido, a poesia de Adriano
Espínola não encontra analogia entre seus pares, resolvendo
melhor que qualquer outra essa busca vertiginosa de uma
revelação de si mesma através do mergulho na precariedade
corrosiva de seu próprio tempo.
Ao pensar
inicialmente em Robert Graves e Gottfried Benn certamente fui
tomado de indignação no tocante a certa defesa que se tem feito
acerca da falência da lírica. Não penso na viagem realizada pela
poesia de Adriano Espínola como uma negação da lírica, mas sim
como sua transfiguração. Não determina-se a singularidade de uma
voz com base em sua ansiedade, mas sim a partir de sua ousadia e
a conseqüente tessitura de seu universo. Insisto que a
urbanidade voraz da poesia de Espínola radica em sua visionária
trilha a caminho de si mesmo, epos que rasga a realidade
de sua própria busca de identidade, busca de um outro que
garanta sua permanência, diálogo com a ambigüidade do ser, lugar
demarcado por um sentido de implosão constante, antes de emblema
superficial de um processo de degeneração deste mesmo ser,
já em uma conotação arbitrária de puro estar, por que
passamos hoje em nossa instância finissecular.
2.
Tange as
cordas de sua potência lírica uma vez mais o poeta Adriano
Espínola,
desta vez com o lançamento de Beira-sol (1997). Dois
outros momentos anteriores de sua poesia foram O lote
clandestino (1982) - livro através do qual insurgia-se, com
sua linguagem cosmopolita e uma notável ironia, contra o que já
denominei de estética do cangaço - e Em trânsito (1996),
livro em que se observa uma radical transfiguração da lírica
moderna.
Tanto nos
anteriores como neste Beira-sol, a poesia afirma-se como
viagem. Também neste poemário, parodiando o próprio autor, tudo
começa onde ele não está. Portanto, uma vez mais a tensão entre
lugar e não-lugar. Em poema que deveria abrir o livro nos diz
Adriano: “Sou outro / em mim, // memória / da cidade, // que se
sonha / outra vez // na claridade”. E radica justamente no
transbordamento da claridade o sentido desta poética ora
enriquecida em Beira-sol.
Referi-me
inicialmente a uma potência lírica e não há outra idéia que
melhor defina o tratamento das imagens em Adriano Espínola, a
julgar por versos como “meninos açoitam / com a espinha dos
peixes / o dorso da claridade”, “arbustos se agarram / em
desespero / à alva memória / da areia” ou mesmo a “tela de
espuma e esquecimento” em que “o mar desfia a eternidade”. E
diga-se aqui que a genealogia deste seu concentrado lirismo não
se subordina a estatutos geracionais. Antes prolonga uma
resistência lírica sempre presente em toda grande poesia.
Em sua
viagem por uma Fortaleza revisitada, emprega Adriano Espínola um
caudal de metáforas solares de refulgente impacto. A cidade
idealizada pelo poeta remete ao açoite do sol sobre seu lombo.
Embora estruturado em dois capítulos, “Claridade” e “O cão dos
sentidos”, o primeiro com vinte e o seguinte com dezoito poemas,
o livro poderia muito bem definir-se como um único e largo
poema, não fosse pela presença de algumas passagens de clara
discórdia com seu universo temático.
Logo no
início alude à “língua-mar, viajando em todos nós”. Mais à
frente encontramos: “em sua jornada, / todo homem busca um mar,
um nome, nada”. No belíssimo soneto dedicado ao jangadeiro,
conclui ser idêntica sua viagem à de Ulisses, “buscando,
repentino, / a sua ilha, o seu rosto e o seu destino”. Nessa
jornada por um mar interior do fortalezense idealizado por
Adriano Espínola o sol (“pai de todo pensamento”) reina vigoroso
com sua árvore ígnea. Todo um universo mítico - conquistadores,
pescadores, lavadeiras, rendeiras, prostitutas - habita sob a
copa do sol.
O livro
revisita figuras históricas, a exemplo de Pinzón, Martim Soares
Moreno, Matias Beck e Silva Paulet, ao mesmo tempo em que deita
suas metáforas sobre coqueiros, praças, urubus, dunas, frutas
etc. Traça, na verdade, um ideário fulgurante dessa cidade
mítica habitada pela memória do poeta. Basicamente afeito ao
verso branco, deixa-se iluminar também pela presença de alguns
sonetos, curiosamente ao esticar, mais solene, sua teia sobre o
mito. Fábula do sol, que a tudo invade com sua profunda
claridade, seu incêndio transbordante.
A compacta
estrutura temática de Beira-sol, no entanto, abre a
guarda e permite o ingresso de quatro digressões: “Evocação de
García Lorca”,
“Zoológico”, “João” e “Mucuripe, peixe e paixão”. Pode-se pensar
numa defesa: o primeiro deles celebra o reconhecimento ao poeta
de Romancero gitano; “João” também parte da mesma raiz:
dedicado que é ao autor do mais importante estudo crítico da
poesia de João Cabral, o ensaísta Antônio Carlos Secchin. Por
sua vez, “Mucuripe, peixe e paixão” é um aquartelamento
cordelista, que chega a soar retórico em um poeta tão marcado
pela irreverência. Mesmo recorrendo a Ulisses nos costados dos
versos finais, soa mais como uma pouco charmosa litania,
disfarçada em seu galope martelado. Defesa menor comporta o
zumbido zoomórfico com que o poeta ilustra “a planície do
domingo” de sua aldeia mítica. Além do mais, estes dois últimos
poemas são recheados de obviedades contrastantes com o surto
brusco das grandes imagens que definem o resto do livro.
De
qualquer maneira, a insurreição é francamente debelada, não
interferindo radicalmente no “galope fogoso” da poética do
autor. Diz de um pescador que “retalha com a peixeira / o
esquivo / milagre dos peixes”. Em outras passagens refere-se à
luz que “irriga de calor / a angústia dos homens” e ao bulício
das pernas que “viajam / para o centro do dia”. Graças à
concentração do fogo da memória tudo é irradiação na poesia de
Adriano Espínola. Neste sentido, nenhum verso define melhor a
transpiração pensativa de seu livro: “o sol me aponta / o carvão
íntimo / das coisas”.
Beira-sol
recebeu o prêmio de poesia de 1995 da Fundação Biblioteca
Nacional/INL para obra em curso. Estampa em sua capa um dos
raríssimos equívocos cometidos pelo magnífico artista gráfico
que é Victor Burton. Não compreendeu que o sol de que trata a
poesia de Adriano não paira sobre algo e sim que se encontra
cravado firmemente no dorso de sua memória. Não se trata do
fulgor futurista do Adriano Espínola de Em trânsito, mas
sim de uma fulgurância revisitada. Talvez prenda-me a excessivos
detalhes. Importa então concluir dizendo que este livro segue a
definir o livre tráfego de um poeta por todas as aventuras
estéticas da modernidade. Já não se trata de uma aparição e sim
de uma afirmação. |