A propósito de algumas recordações em letra, sobre Agostinho da
Silva
Nicolau Saião
Na sua impalpável amargura
Odor de um país ulterior onde piores
Fúrias passeiam e expõem as garras.
Geoffrey Hill (Ovídio no Terceiro Reich)
Dizia
Pablo Picasso, em resposta muito dele a uma entrevista de
Madeleine Buez-Thoury, que “Recordações é tudo aquilo de que nos
esquecemos”. Creio entender o que queria significar na sua
aparente “boutade” o autor de “Pesca em Antibes”: aludia decerto
ao acervo de imagens, transpostas pela memória da sua peculiar
maneira que, frequentemente, coloca a norte aquilo que está a
sul, acantonando tudo no lugar penumbroso onde repousam as
nossas mais resguardadas lembranças. E que aí, ao sedimentarem,
se reconfiguram e cobram então a sua forma definitiva, como
disse um dia Benjamin Disraeli.
Tanto quanto me recordo, foi Henrique Madeira que numa tarde aí
do Verão, pelo telefone – prenda que nos era muito usual
utilizar nesses anos em que eu ainda telefonava – ao
agradecer-me as referências que lhe fizera a um livro editado há
pouco tempo e que logo deixara chegar até mim, me fez saber que
oferecera um exemplar remanescente do meu “Foto-síntese da
pedra” ao autor do prefácio do dele, Agostinho da Silva. O
professor, acrescentou, gostara da plaquette e ele sugeria-me
que o visitasse quando fosse a Lisboa.
Assim fiz – nesse tempo em que ainda visitava Lisboa com
frequência. Numa tarde qualquer, que as manhãs as usava para
vasculhar alfarrabistas, bati à porta da casa do Abarracamento
de Peniche.
Encurtando razões: a disponibilidade do homem, que cifrava a
peculiaridade do escritor (pois era como escritor e apenas como
escritor de “Herta, Teresinha e Joan” que eu o queria situar,
não só por ser esse o meu campo de interesses mas também porque
esse me parece o lugar mais alto a que subiu, tirante as
curiosas deambulações por outros autores de boa talha clássica a
que se votou) verifiquei-a na própria maneira com que me deu
entrada: sem aparatos de guru (que eu aliás não apreciaria e
mesmo aquiesceria, porque como John Ford o pensou e disse, numa
tirada célebre, no cinema como nas relações humanas “O olhar
do homem deve estar à altura do olhar da câmara”…) em que
alguns pelo que julgo saber, agora como na hora pretendem
encafuá-lo, sem tiques de iluminado, sem outivas de sapiência
consumada em que determinados periféricos da sageza e, mesmo,
rústicos se mergulham com temeridade, dizia – apareceu-me como
uma pessoa sensata, sensível, boa e culta.
Mas duma cultura serena, comparticipativa e solidária, sabendo
ouvir e sabendo fazer-se ouvir, tendo mesmo atenções tocantes
que em muito ultrapassavam o “scholar” de eleição para se
projectarem sim naquilo que mais estimo e na única condição que
respeito verdadeiramente: a da nobreza de carácter do sage que,
por o ser, sabe entender nos outros a sua marca própria que os
confirma como confrades de caminhada ainda que diferente, de
existência ainda que dissemelhante ou, quando muito, paralela.
Não receio dizer – passando por alto os continentes do seu
pensar (da sua filosofia, para utilizarmos este conceito
relativamente cómodo) – que sempre reconheci Agostinho da Silva
como o Mateus Maria Guadalupe exposto nessas três novelas onde
se exprimem e confluem a aventura (na primeira), a “humildade
gloriosa” algo vizinha de um destino implacável de cariz
vincadamente lusitano (na segunda) e os “encontros falhados” a
que se vêem sujeitos os que não se dão conta, dura e complexa,
que no fundo muito pouca coisa há em comum entre seres que, por
razões de acaso, se movem aparentemente em conjunto no seio duma
Europa que não nos conhece, não nos deseja nem, sequer, nos
estima.
“Herta,Teresinha e Joan”, na sua aparente displicência de
economia narrativa, ágil e sabiamente vertida (como noutro mundo
de preocupações o fez Bill Ballinger no seu sublime “Versão
original”) e veiculada por um discurso aparentemente sem estilo
literário galardoável – e é esse um dos seus maiores méritos num
país novo-rico, literato e podre de estilo - traça em escassas
(?) 140 páginas uma das mais belas incursões em português pela
arte da novela. Lêem-se, e verifica-se não haver ali sabor a
rolha, aqueles três relatos permeados de diálogos onde
aparentemente nada de relevante acontece e onde, afinal,
acontece tudo - desde o desgosto de viver bem na linha do fado
lusitano, até ao sabor da solidão que se intui ou se sabe ser
definitiva e para nunca mais. Até ao aflorar, discreto ainda que
agudo, duma reconhecível esperança onde pode existir “a vida
palpitante no céu longe”, como Mateus se dá conta no decorrer da
última parte da trilogia.
Que dizer de conversas onde se falou de tanta coisa, ao correr
dos meses que foram desaguar em anos em que não nos frequentámos?
Que me comprazia o contacto desses raros momentos em que eu,
noutros continentes interiores e exteriores, ia vendo e ouvindo
outros percursos, tocando outras rotas, olhando outros rostos e
outras experiências (foi por essa altura, se bem recordo, que
tive o sumo privilégio e o fundo gosto de conhecer Jacques
Bergier e outros alguns que não vou aqui citar por discrição…).
Numa certa noite de um certo dia, voltando de Lisboa com um
filho que também o frequentara (historiador e estudioso
intemerato aberto a todos os ventos da aventura de conhecer e
sãmente admirar) parei o automóvel numa área de serviço para um
simples café e umas cigarrilhas de que sou particularmente
guloso enquanto não-fumador que nunca alinhará em
fundamentalismos anti-tabagistas). Daí a bocado, esse meu filho
– muito comovido – veio chamar-me a atenção para uma notícia
inserida num jornal não sei se de referência (como agora certos
zoilos, inteligentemente, dizem): e soube então que morrera o
“Bom amigo e senhor professor”, como rezava sempre nas cartas
que lhe endereçava, escritas nas minhas horas de Portalegre, de
Arronches, de algum vasto recanto…
Muitas vezes me lembro dele, agora que já vivo por bandas
exteriores muito diferentes e distantes. Recordo a figura
desempenada, mesmo na idade que tinha, de homem erecto, cordial
e sapiente. O seu olhar penetrante e a maneira de falar, que
nunca me pareceu artilhar uma lição mas sim uma comunicação,
efectuando – e com força o deixo dito – uma verdadeira doação
de pessoa para pessoa. Assim o recordo e o recordarei sempre,
esse sempre que é volátil como as palavras - mas tão firme e
forte como elas o podem ser.
Gostaria de aqui deixar expresso o gosto, só em parte turvado –
por razões epigonais que não salientarei – que tive ao
corresponder ao convite formulado para ter estado presente.
Também, o ter ali encontrado o meu amigo Manuel Ferreira
Patrício, confrade de muitos anos desde o tempo, algo mítico já,
de uma comum estadia em Sintra.
Finalmente, o ensejo de ter estado em Sesimbra, local que me
habituei a estimardesde os tempos, já relativamente longe
notempo, emque ali jornadeava em férias e que, aqui o deixo
dito, tem a ver com uma boa parte de “Os olhares perdidos”. |