EM DEFESA DA
POESIA
A poesia como alimento estético-espiritual
Aíla Sampaio
Poesia
é uma forma de expressão literária que surgiu na antiguidade
simultaneamente com a Música, a Dança e o Teatro. A partir de
então, muitas foram as tentativas de defini-la, entendê-la,
escrevê-la. Para Platão, a poesia, como a arte em geral, era uma
ameaça epistemológica e ética à sociedade, pois ele via o
artista como um fabricante de fantasias que desviavam as pessoas
das verdadeiras ideias (a arte era mimese, pura e simples
imitação do real). Além disso, a arte estimulava as paixões, os
afetos e as emoções, que, descontroladas, podiam, conduzir à
guerra e à catástrofe. Por conta desse risco, a arte só poderia
ser praticada por crianças, loucos, mulheres e escravos, que não
exerciam influência na esfera social. A boa convivência em
sociedade dependia de certa a-phatia (ausência de emoções), por
isso, em A República, ele diz que os artistas devem ser
expulsos da cidade para que ela seja justa e feliz. A arte era
falseamento e, assim sendo, não poderia influenciar os cidadãos
comprometidos com a verdade.
Já Aristóteles (384 a.C.), seu discípulo, no livro Poética,
procurou mostrar que a arte é verdadeira, sim. Ele reinterpreta
a mimese ao afirmar que a arte não é só reprodução, mas
reinvenção do real. Afirma que a poesia (universal) é mais séria
e filosófica do que a história (particular) e vê nela (como nas
outras artes) a função catártica; atribui a ela um efeito
purificador, benéfico. A harmonia da cidade não estava na
a-phatia, mas na boa medida entre razão e afetividade. Além de
um meio para transmissão do saber, a arte passou a ser vista
como edificante e pedagógica.
Foi no séc. V a.C., que apareceu a designação do poeta como
poietés. Até então Homero e seus companheiros eram
designados como cantadores, aedos (aoidoí), isto é,
aqueles que cantam os altos feitos dos homens e dos deuses.
No decorrer do tempo, as experiências estéticas com a poesia
foram muitas. No Trovadorismo, entre os séculos XII e XIV, a
poesia era ligada à música e recebia a denominação de Cantiga
(Cantiga de amor, a que tinha como eu-lírico o homem; Cantiga de
amigo, a que tinha como eu-lírico a mulher; mais as Cantigas de
escárnio e maldizer). No Humanismo, além de ressuscitarem-se as
canções de gesta francesas para inspiração das novelas de
cavalaria, praticou-se a poesia palaciana, feita para ser
recitada nas festas, uma poesia de louvor. O Classicismo, no
séc. XV, trouxe a magnitude de Camões com sua epopeia Os
Lusíadas e os sonetos de amor moldados na fôrma clássica.
Até aí não se fala na poesia brasileira, porque fomos
oficialmente encontrados apenas no século XVI. Foi no período da
colonização que a poesia chegou ao Brasil, com finalidade
pedagógica e de catequização. No Barroco, ela foi a expansão da
verve ácida de Gregório de Matos, que se vingava de quem o
atingia por meio dos seus versos. No Arcadismo, ela cantou a
vida simples e, no Romantismo, idealizou a mulher e o amor,
despida de compromissos estéticos, tão somente comprometida com
a inspiração do poeta para cantar o amor ou clamar pela
libertação dos escravos. Os parnasianos contestaram o uso da
poesia para qualquer finalidade e passaram a cultuar apenas a
forma; a arte não deveria ter função, deveria existir puramente,
sem contaminar-se com os apelos da subjetividade humana. A ‘arte
pela arte’ era o princípio da criação artística. Muitos
simbolistas reagiram a essas ‘algemas’, no final do século XIX,
e buscaram novas soluções formais, sobretudo na França, mas, no
Brasil, tal experiência não ultrapassou o alcance de uma
linguagem fluida, vaga, em busca de evasão pela espiritualidade.
No século XX, a poesia perdeu toda essa pompa… o verso livre dos
modernistas e a inserção do cotidiano como tema poético abriram
espaço para que o poeta se movimentasse em liberdade entre as
palavras. E foram muitas as experiências com essa liberdade: os
concretistas aboliram o verso, o poema-processo mostrou a
desnecessidade da palavra, o neoconcretismo cobrou engajamento
nas questões sociais, o Tropicalismo reacendeu o diálogo entre a
poesia e a música, os poetas marginais expressaram sua
irreverência,… e hoje? O que restou disso tudo? Que função a
poesia tem?
A poesia permanece como uma forma de criar outro mundo “mais
bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado –
por cima da realidade imediata”, com diz Gullar. Ela é a
possibilidade de expressar, através da palavra, esse mundo
objetivo que nos cerca ou o mundo de subjetividades que nos
enreda. É como a luz que falta para que enxerguemos. Quem faz
poesia tem a capacidade de transfigurar o real, recriá-lo… Quem
lê poesia fica mais leve para aguentar o peso da existência.
Isso, porque ela é, naturalmente, algo que se diferencia do
ordinário, do comum, do mediano. Ela reconfigura as mentes ao
lançar sobre elas novos olhares, ao mostrar o que não se vê a
‘olho nu’, ao fixar sentimentos e pessoas que o tempo carrega.
Como fala
Cohen, a poesia força a alma a sentir aquilo que geralmente ela
se limita a pensar. Se lembrarmos de ‘O cão sem plumas’, de João
Cabral, veremos como ele, por meio dessa metáfora,
chama o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será aquilo
que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu vôo, e
sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o mar num
não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num não-homem:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
São esses olhares que nos dão conta de que o poeta tem o poder
da reconfiguração. Eles veem o que subjaz, o que não emerge à
flor dos olhos da maioria. Para trazer um exemplo mais próximo,
lembremos da canção ‘Flora’, de Ednardo, e sua exploração das
potencialidades da linguagem:
No roçado do meu coração
Há um tempo de plantar saudade
Há um tempo de colher lembrança
Pra depois com o tempo chorar
Ô Flora, meu sertão florindo
Aflora o meu peito só
Teu amor é um fogo, é um fogo
É um fogo, é um fogo
Dos teus olhos tição
Observemos como o substantivo próprio Flora é utilizado
expressivamente; Flora, a mulher; Flora, verbo no imperativo, um
clamor ao sertão que o eu-poético quer ver florido, verdejante,
como seu coração diante da mulher amada.
Distinta de sua teorização literária, a poesia pode ser apenas
um alimento para a alma. Ela não precisa ser entendida em sua
forma, dispensa conhecimentos prévios de métrica ou rima, de
melodia ou de escansões. Ela precisa essencialmente ser sentida.
É essa possibilidade de criação do que não existe, e da
recriação do que existe mas falta, que faz do poeta um ser
especial, como nos mostra Murilo Mendes, ao dizer que na poesia
Tenho constelações para me servirem
E gaivotas que levam minhas cartas
Mais depressa do que aviões
Nascem musas de minuto em minuto
Escovam o outro mundo para mim.
Não importa que os chamem de lunáticos, que os acusem de
sonhadores… os poetas têm um universo muito particular.
Realmente, nessa sociedade neoliberal e individualista em que se
vive, os que amam e se dedicam à poesia têm que construir um
universo à parte e preservar o sonho libertário da construção de
um espaço anárquico… São os anjos gauches de Drummond. De
que outro modo podemos não perder a delicadeza? Esse espaço
anárquico de que falo está dentro de nós e é o que nos capacita
à criação de um universo encantatório que nos salve do tédio. É
a poesia esse antídoto. Sem ela, onde celebraremos nossos
amores? Eles perecerão ou quedarão entristecidos como um violão
com a corda quebrada, abandonado por quem quis, mas não aprendeu
a tocar. Sem a poesia, o que faremos com a nossa saudade e com a
nossa esperança de dias melhores? Com os nossos amores que não
deram certo? Onde colocaremos nossas lágrimas e nossos risos?
Poetas são, sim, lunáticos… bendita seja essa nave que os conduz
a esse mundo onde ainda se pode celebrar a vida e seus sabores
acres ou doces. Quem não se rende à poesia, quem não se deixa
seduzir pelos seus olhares, sentirá o mundo e até a si mesmo
dentro dos secos limites das objetividades. Não se comoverá
diante de um pôr do sol e só enxergará pedra nas pedras, nunca
será capaz de transformar lágrimas em oceanos ou dores em
saudades gostosas de sentir. É Cecília Meireles quem diz: “a
vida, a vida, a vida só é possível reinventada”… e sem a poesia,
amigos, fica difícil reinventar o que quer que seja… |
POEMAS
DE OUTRO TEMPO
Há em mim uma casa desabitada
perdida no abandono dos ventos
que sopram sem direção
há portas que batem silenciosas
atrás de um adeus sem data,
lágrimas nas paredes retintas
e trancas enferrujadas nos portais
há hera entranhada nas vigas,
nos muros e em minha alma,
fechando porteiras,
lacrando janelas
misturando-se ao musgo
que no jardim cresceu
Há em mim um silêncio quase sagrado
e a memória de um tempo que não é o meu.
AUSÊNCIAS
O que me habita é feito de ausências:
a casa
perdida nos abismos da memória,
o amor
feito lembranças do que poderia ter sido,
a criança
que insiste em rasgar
o tecido
do tempo em que borda sua história.
O que
tenho são metades, nunca inteiros.
Sou feita
assim, dessa argamassa vil dos crédulos
que sonham
sem medo dos interditos e dos desesperos.
SEPARAÇÃO
Deixo teu corpo
como quem deixa a pele
e em carne viva
se expõe ao sol.
Como o filho que deixa a casa,
deixo teu corpo em silêncio
sem itinerário e só.
Deixo teu corpo
como quem abandona
o cais e perde-se
mar adentro
sem medo de não voltar.
Como quem naufraga,
deixo teu corpo
e minha alma nele
nua a dardejar.
Como quem se mutila,
deixo teu corpo
como quem deixa a vida.
CENA
Leves os teus dedos pela minha pele,
entre os pelos, entre os planos desfeitos e refeitos,
arrancando-me gemidos, certezas, dádivas, dúvidas.
Traço linha a linha o horizonte do teu corpo
como em tela pintando barcos,
como em argila esculpindo música;
em tuas calmas águas, em teus sedentos beijos
abrindo subterrâneos acordes
sob o branco dos lençóis.
É assim minha astúcia com as tintas
com que te pinto, com o barro com que te visto:
acordo cores em teu regaço,
desenho fontes onde escorre mágoas.
Depois de feita a arte-final,
por medo ou desilusão, talvez,
esqueço a cena
e te contemplo apenas de longe
como uma tela que não pintei...
PESADELO
Faz frio, muito frio
quando fico triste.
Tenho até febre
durante a noite que antecede
o desvario completo.
Faz frio e fica escuro o quarto vazio,
com o resto do teu cheiro de mar e ventania
fechando a minha boca
para eu não gritar.
Num impulso, tu agarras os meus cabelos
e me lanças a um fundo abismo
sem se importar com os meus gritos, o meu medo;
já descendo, a roupa ao vento,
eu acordo muda e com frio,
vejo a realidade, seu ar sombrio,
e peço, por tudo, que volte o pesadelo. |