Alberto
Pimenta e os estatutos do crime semântico
Floriano Martins
FM
Desde quando inexistes?
AP
Desde que Pádua Fernandes entendeu definir assim, por metonímia,
a relação dos meus textos com o público, ou melhor, do público
com os meus textos. Acho que foi da parte dele, a esta distância
toda do Atlântico, um lance de dados com muita perspicácia e
sabedoria.
FM
Em que te distancias hoje do protagonista do Discurso sobre o
filho-da-puta?
AP
Mas quem é afinal o “protagonista” do Discurso sobre o
filho-da-puta? Deve ser o filho da puta, claro. Em 1977, no
livro simbólico e realmente autobiográfico Repetição do Caos,
escrevi: “1956: uma noite prenderam-me por eu berrar em plana
rua e a plenos pulmões que a polícia, a autoridade em geral,
eram tudo filhos da puta. / É extraordinária a minha
precocidade: hoje não seria capaz de dizer melhor. Mas
acrescentava: - Os outros também.” Assim, em 1956, como se vê, a
minha opinião não estava ainda completa. Em 1977 (ano de
publicação da 1ª edição do Discurso), estava. Em 1997 não se
havia alterado. Nem hoje, como se pode ver pela mais recente
edição do Discurso, que é de 2003. Mas amanhã pode ser que eu
chegue a outra opinião! O mundo está a mudar, não é? O pior é
que eu não dou ouvidos a noticiários e desportos em geral.
FM
Recordo teus jogos em torno das palavras nu e cu
("Metade da palavra cu / é como metade da palavra nu. / Mas a
outra metade da palavra cu / não é como a outra metade da
palavra nu"). O que é semelhante e diferente se pensarmos na
relação entre vida e arte que faz com que apenas metade de uma
seja como metade da outra?
AP
O que se passa com as palavras cu e nu não se passa com as
palavras vida e arte: só têm uma letra em comum, e ainda por
cima uma no cabo, outra no rabo. Mas por aí também lá chegamos:
todos os caminhos vão do cabo para o rabo. O que sucede com a
vida é que ninguém sabe ao certo se ela é o que nos acontece ou
o que nós fazemos que aconteça. Já com a arte depende da
perspectiva: há a de quem faz e a de quem curte. Afinal está
bem: depende de ser o nosso nu, ou o nu de outra pessoa, e quem
diz isto do nu diz do cu, claro.
FM
De que maneira o excesso inconseqüente, a recorrência banal, com
um acentuado ímpeto de apenas fazer rir, esfacela uma aventura
tão radical quanto a do teatro do absurdo de Ionesco?
AP
Julgo que Ionesco é que esfacela o discurso trivial do ser
humano. Esfacela-o pela técnica do espelho (um bocadinho côncavo
ou um bocadinho convexo, e aí está a arte, como no caso dos
polidores de lentes). Claro que há outras técnicas, mais
aristotélicas: a da parede, do vidro, das nuvens etc.
FM
De que maneira vês o tratamento paródico dado a Fernando Pessoa
pelo Cesariny de O Virgem Negra e o Saramago de O ano
da morte de Ricardo Reis?
AP
Nenhum dos dois me parece que trate parodisticamente de Fernando
Pessoa, mas sim de alguns modos do culto (ou dos cultos) a
Fernando Pessoa. Thomas Bernhard fez o mesmo em relação a Gustav
Mahler. De resto a paródia, como constatou Th. W. Adorno na
Teoria estética, é talvez, com o humor, a única forma não
kitsch de a modernidade homenagear o que já passou.
FM
Ao prefaciar o livro A vida é assim, do brasileiro
Alberto Pucheu (Ed. Azougue, 2001), observas que a poesia,
"sendo a voz de todos os tempos, por fora se compõe do discurso
do seu próprio tempo". Está bem. Mas logo concluis o prólogo
dizendo que o Brasil está "há pelo menos meio século na crista
da onda deste surf que começou com Homero". Isto soa falso para
brasileiros que convivem com distorções e desgastes em torno da
linguagem poética e seus desdobramentos. De que maneira Portugal
não pega a mesma onda que Homero?
AP
O Brasil, desde meados dos anos 50, quando Haroldo de Campos,
Augusto de Campos e Décio Pignatari lançaram o modo concreto da
poesia (na Europa foi o Gomringer que o fez, mas houve um real
entrelaçamento), colocou-se na crista da onda. Se a onda
entretanto espraiou, o defeito não é deles, é da natureza, que
fez as ondas assim. Mas até dentro da continuidade do modo
lírico, noutra onda portanto, creio que poetas como João Cabral
e Drummond bastariam para justificar o que eu digo. Ou o que eu
disse. Portugal!? Tradicional e conservador sim, mas tanto como
voltar a Homero também não.
FM
Olha, talvez o ludismo em torno da onda seja divertido mas a
condizer-lhe com a realidade há aspectos inúmeros. O beco sem
saída a que nos levou o Concretismo não possui elo algum com a
dinâmica do surf, a menos que pensemos naquelas esteiras de
academias de musculação. Drummond e Cabral são de gerações
distintas e também não foram tão longevos no surf, cedo se
desfazendo da prancha. Sendo tão tênues os conhecimentos
recíprocos de nossas culturas, é bem natural que estejamos
sempre a sublimar a realidade um do outro. Assim não percebemos
que há ondas que já nascem espraiadas, por um defeito especial
qualquer. É preciso conhecer bem os meandros da poesia
portuguesa, por exemplo, para saber da inexistência concreta do
que se conhece como Poesia 61. Da mesma maneira, há uma leitura
excessiva dos desdobramentos do Concretismo no Brasil, quando
este, se não é inexistente, pende mais para um malefício do que
o contrário, em grande parte ao dar-nos uma falsa idéia de outro
jogo semântico, desta feita entre as palavras rigor e vigor.
Resta saber onde está o nu, onde está o cu. Como sabê-lo à
distância, diante da quase inexistência de diálogo entre nossas
culturas?
AP
É curiosa a preocupação (luso-brasileira ou vice-versa) com o
Concretismo… parece a dos santos medievais com o diabo. Todos os
movimentos estéticos nascem, crescem e passam – Surrealismo,
Futurismo, e por aí fora ou dentro. O Concretismo teve um papel
importante de depuração de muita enxúndia poética. foi ao cerne,
descascou, descascou, e pronto, ou ponto. O “Soldien” de Emmett
Williams, ou a “Elegia para o Che” do Joan Brossa, são clássicos
no sentido puro e próprio. A mim, do Concretismo (como de todos
os movimentos) ficou-me a sua lição, mas o que eu escrevo é a
minha poesia, e, como não entrei num caminho murado, não tenho
problemas de saída. É até onde as pernas derem. Dizia António
Pedro (o poeta e homem de teatro que partiu do Surrealismo e
depois fez o seu próprio caminho dentro dele) que não há antigo
ou moderno, ou correntes… há bom e mau. Feliz de quem tem fé no
bom, e não nas correntes em si até ao fim.
FM
Que importância hoje se pode ver na atuação, em Portugal, de
algo como Os Felizes da Fé? Acaso as obsessões
conceituais (performance, happening, intervenções) não
constituem um ardil para dissolver um princípio de representação
que é reflexão intensa da realidade ou acobertar uns
maltrapilhos estéticos espertalhões que roubam proveito de tudo?
AP
Os Felizes da Fé foram (quem sabe se poderão voltar) um
grupo de Teatro de Rua, com atuações muito brilhantes, outras
menos, como acontece com todos os grupos de teatro, de rua ou
palco. Proveito? Não tenho notícia de que tivessem tirado algum,
econômico ou político, digamos, de poder. Discordo totalmente de
que a ação poética e também dramática (performance, happening)
seja necessariamente o que se chama conceptual. É ação! Claro,
em relação à guerra tem essa coisa de usar molho de tomate e não
sangue. No tempo em que atuou teve a importância que tem o
Teatro de Rua desde que existe: divertir e desinquietar.
FM
Não me referia, ao falar em proveito, a Os Felizes da Fé
e sim ao que temos hoje em termos de performance e happening, à
distorção prática e conceitual dessas formas de representação.
Talvez possam hoje ainda divertir, mas já não inquietam. Até que
ponto teriam sido desgastadas essas maneiras de atuar?
AP
Hoje, toda a atuação-espetáculo fora da bosta da TV (ou, vá, dos
teatros residentes) inquieta desde a manicure até ao
catedrático.
FM
Em Lisboa degustávamos um bom vinho, juntamente com a poeta Rosa
Alice Branco, enquanto apaixonadamente comentavas a respeito da
sucessão no Vaticano e suas implicações. Estava ali implícita a
relação entre domínio e transfiguração da vida.
AP
Se o vinho é o sangue de Cristo, então nada mais a propósito que
uma boa conversa sobre o seu vigário na Terra. Segundo a
profecia de Malaquias, este bom polaco será o penúltimo sucessor
de Pedro. É inquietante! Que é que se seguirá? A água ou a
coca-cola?
FM
Vês alguma relação entre happening e Surrealismo?
AP
As exposições surrealistas foram quase sempre formas de
happening, e o surrealista Salvador Dalí um dos seus maiores
profetas.
FM
Em muitas coisas Brasil e Portugal se aproximam, a despeito da
falácia em torno do carnaval. Também temos medo do risco, nosso
racismo é igualmente econômico, e se acaso fazemos dançar melhor
a língua, por outro lado, minguamos essa aparente liberdade por
falta de assunto. Este é o maior dilema de nossa cultura: onde
estamos, o que somos? Mesmo que igual dilema se possa viver em
Portugal, o que se espera aí do Brasil?
AP
Eu não espero nada nem do Brasil, nem de Portugal, nem de
qualquer país ou grupo. O que espero é de pessoas, de mim
sobretudo, e confesso que é pouco.
FM
Qual a tua ambição em relação à poesia, Alberto? Ou melhor, de
que maneira poesia pode constituir-se uma razão de ser?
AP
Uma razão de ser parece-me que é de mais, mas no entanto cito-me
de novo: “Uns dizem que a arte dá alegria, outros dizem que
infunde terror; o mundo poderá estar à beira da hecatombe, mas o
espírito humano não passa sem celebrar o seu engenho.
incessantemente. uma pessoa entra, desabotoa as calças,
senta-se, muda de traje, já nada é o que era. Que outra coisa
faço eu desde que nasci? Sim, desde que percebi que a saída era
para o norte, quer dizer, para a morte. Aí está o pólo, o pólo a
nortear o caminho, mas a paixão é um norte e uma morte, e quanto
mais ao norte e mais morte mais a paixão se polariza, mais se
torna pólo e brilha de cada vez como uma estrela ou o cu de uma
ursa quando se peida depois de comer muito mel.”
PORCO
TRÁGICO
conheço um
poeta
que diz
que não sabe se a fome dos outros
é fome de
comer
ou se é só
fome de sobremesa alheia.
a mim o
que me espanta
não é a
sua ignorância:
pois estou
habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou
nada dos outros.
o que me
espanta
é a
distinção que ele faz:
como se a
fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de
comer
também. |