Ana
Hatherly e a visceralidade da escrita
Floriano
Martins
A
poesia é a nossa melhor suspeita de uma caligrafia do abismo.
Refiro-me à poesia e não unicamente ao poema. É com ela que
tateamos o espírito das diferenças, a voragem insustentável do
mundo. E o que nos permite tal aventura é que sua cartografia
não é definida por certezas e sim por inquietudes e mesmo por
indispensável dose de ceticismo. Naquilo que mais deve crer um
criador é na dúvida.
A presença
de Ana Hatherly (Porto, 1929) no Brasil se delineia mais
substancialmente, e de maneira curiosa, nos anos 60, e avança
nas décadas subseqüentes percorrendo uma mesma trilha de
percepção acadêmica. Trata-se de um livro originalmente
publicado em 1963, O mestre, novela que é uma mescla de
prosa poética com estrutura narrativa recortada cuja curiosidade
a que me refiro vem do fato do livro haver gerado algumas teses
acadêmicas — no decorrer de quatro décadas — sem que tenha
havido uma edição brasileira ou que sua autora venha a despertar
entre nós interesse por sua poesia ou por seu experimentalismo
no âmbito do que ela própria considera “a escrita como desenho”.
Um pouco
antes, final dos anos 50, já dialogava ela com uma das fatias de
nosso experimentalismo, o Concretismo, tendo sido a primeira
poeta a lidar com a poesia concreta em Portugal. Contudo, logo
compreende a distinção entre o que se praticava nos dois países
em nome de uma vanguarda. E nisto é muito pertinente o que
declara em uma entrevista a Fernando Martinho, em 2001: “a
posição política de esquerda, o internacionalismo do movimento e
a defesa de um certo passado cultural, em particular do
maneirismo e do barroco com o Camões à frente, são vertentes
ideológicas dominantes no concreto-experimentalismo português,
às quais é necessário acrescentar os fundamentos teóricos da
prática estética propriamente dita”.
Estes dois
parágrafos tão a seco apenas provocam uma primeira suspeita do
que há de latente polêmica nos assuntos de que tratam e na
própria poética de Ana Hatherly. Contudo, cabe aqui destacar que
esta poeta possui um entendimento pródigo, em nada dissimulado,
da importância de não limitar-se a uma experiência única ou a
uma leitura restritiva da própria aventura do ser em busca de
si. O que temos agora é uma antologia da obra poética de Ana
Hatherly, em que se pode finalmente mostrar ao leitor brasileiro
que sua voragem investigativa define-se pela criação de
entidades e que não busca senão a visceralidade da escrita. Em
outra entrevista, a Pedro Sena-Lino, em 2002, declara que quer
“mostrar o grafismo da escrita ocidental, posta em confronto com
a escrita oriental” e que, para tanto, “para mostrar as suas
modulações tive de a tornar ilegível”. Evidente que a escrita se
mostra de várias maneiras, e não se restringe apenas à sua
representação figurativa. E nisto há algo de intensamente
convulsivo na poética de Ana Hatherly, uma vez que, na medida em
que aponta — segundo entendimento corrente da crítica — para um
experimentalismo de linguagem, realiza uma mais acentuada
subversão, considerando a tradição lírica portuguesa, no plano
discursivo, em seu arrazoado. Basta pensar na freqüência de uma
metapoética ou no tratamento que dá à ironia em seus versos,
mas, sobretudo, em sua concepção de um eros frenético —
título de um livro de 1968 —, em cuja gênese refere-se ao prazer
como uma “deturpação do sofrimento”.
É natural
a compreensão de esgotamento de qualquer experiência. Não se
poderá dizer de Ana Hatherly que sua poética tenha se
cristalizado. E grande mérito dessa jornada é que jamais refutou
a tradição, que sempre a entendeu como recurso essencial para
investigar o futuro, para desafiá-lo, duvidar de seu fascinante
enunciado. Mesmo considerando um aspecto que se dá à revelia do
poeta, em seu caso o fato de que sua obra visual resultou ser
mais conhecida do que os textos poéticos e teóricos, o que se
realizou está sempre à prova.
A presente
antologia nos dá esta dimensão múltipla de sua criação de
entidades. Reunimos aqui uma seleção bem variada de poemas, uma
mostra da poesia virtual, palestra e entrevista. Isto decerto
ajudará o leitor brasileiro a discernir em torno do que já
conhece da obra da poeta portuguesa e a descobrir um mundo
substancial por sua multiplicidade. Não à toa o título desta
mostra brasileira recorre a um livro seu em particular, A
idade da escrita (1998). Como ela própria o defende, “A
idade da escrita é a minha idade, mas também é a idade da
escrita no sentido de, como se diz, a Idade da Pedra, a Idade do
Bronze: corresponde a uma era, a um eon, mas
também a um sentimento do fim de uma era”. Selecionamos aqui
poemas que definem esta era e que lhe avançam até hoje. E
o título permanece expressivo de toda a poética de Ana Hatherly,
não se restringindo a uma fagulha sua, mas antes revelando todo
o incêndio que propõe. |