António Barahona: Deus, pátria e família
Maria Estela Guedes
Olhai no descampado
a Virgem de olhos mansos.......................o
Jesus chinês e eu.
Muhammad Rashid,
O Progresso de Jesus
(1975).
Quando
conheci o António Barahona, era ele então bom muçulmano e
reverenciador da Virgem Maria, mas já passara para além de
Aos Pés do Mestre,
buscando na Pátria o seu lugar sagrado. Foi assim que em 1980
saiu na Guimarães Editores um dos melhores livros de poesia do
meu tempo,
Pátria Minha,
uma epopeia da nossa contemporaneidade. Anos mais tarde, na sua
já muito preenchida carteira bibliográfica, a Imprensa
Nacional/Casa da Moeda publicava-lhe o
Livros da Índia,
nascidos da sua paixão religiosa ou gramatical pelo sânscrito,
que o levara a ir estudá-lo
in loco,
ao oriente. Além do
Livros da Índia,
desse longo périplo resultou também uma tradução da
Bhagavad-Guitá,
O Livro do Senhor,
publicado pela editora Relógio de Água, em 1996. Na realidade, a
trilogia monárquica ou salazarista, “Deus, pátria, família”, que
o poeta deseja ver restaurada em todo o seu esplendor, não cola
verdadeiramente no rosto de António Barahona, nem sequer como
uma das várias máscaras que tem posto nesta trágica
representação que é a vida.
O que lhe
define o rumo nas paragens poéticas é a gramática, que também é
ou era trina, com acento na sintaxe mais do que na fonética e na
morfologia, não obstante António Barahona se deter amiúde na
palavra e no som, sopro ou música dela, e burilar os seus poemas
até cintilarem como cristal. Mas as palavras só por si são
objectos de dicionário, que não marcam espíritos a não ser
talvez por sistemático uso de meia dúzia delas, o que
corresponderia às séries nas artes plásticas – onde o rumo
falta, a repetição substitui-lhe a dinâmica, dando a ilusão do
movimento.
Há outra
trindade envolvida na criação que, essa sim, nos dá a medida da
singularidade do poeta: a escolha de umas e não outras palavras,
o matrimónio que celebra entre elas, e o enquadramento em que as
dispõe. Esta é a operação sintáctica, aquela que faz com que as
coisas aconteçam na linguagem. As palavras “Deus, pátria e
família” passariam incógnitas pelos textos, fora desta ordem
sintáctica, para o caso instituída, e não uma criação do poeta,
e em qualquer outro enquadramento não causariam nenhum
sobressalto. Para ferirem como diamante ou reflectirem a luz
como cristais, é necessário que um bom gramático as retire do
dicionário e oriente-as no mapa da nossa consciência, de outro
modo não reagimos. E então sorrimos porque nos dão prazer, ou
gememos porque nos deram um estalo na cara.
A António
Barahona deve agora a Literatura Portuguesa mais duas belas
obras, de cunho autobiográfico não factual, e sim espiritual,
Lugares de Lume
e
O Corpo
e o Sangue,
nas quais declara ostensiva e exuberantemente a sua conversão ao
Cristianismo. Em sendo necessário, que o não é, eu poderia
chancelar, como poeta que também sou, não só a sua fé mas a sua
fé furiosa. Porém, a fé é uma paixão e como nas paixões, todas
elas religiosas, como muito bem diz o poeta, acho que nem valerá
a pena dar orientação sintáctica à frase. Neste caso excepcional
o que penso ficou melhor dito assim do que se a tivesse
completado. Entranhada na sintaxe, temos a alma da obra. Por
alma entenda-se o que a suporta em sentido, saltando a barreira
da matéria e, por conseguinte, o
próprio registo da escrita, que nestes dois últimos livros se
encontra com a obra de Muhammad Rashid,
Aos Pés do Mestre,
e se afasta muito do de
Pátria Minha.
Porventura, a diferença decorre da posição assumida pelo poeta:
nos volumes de memórias e em Aos Pés do Mestre, ele
senta-se aos pés de quem o ensina, transmitindo-lhe de boca à
orelha a tradição.
Este conhecimento é retransmitido pelo poeta em discurso de
aprendiz, logo tocando a infância da linguagem, como acontece em
geral com os poetas que em certo momento se vêem na situação de
“Começar” (Almada) ou “Re-Começar” (Ernesto de Sousa).
Presumindo que seja próprio de todos os que valorizam as
palavras e fazem delas o seu destino pessoal, o desejo de
assistir ao próprio acto da Criação, e para isso balbuciam,
fazem-se crianças, tentam reviver um instante original nunca
aliás vivido, excepto na sua pseudomimese. É então esta posição
submissa de criança-muito-adulta a adoptada por António Barahona
em obras de religião explícita, tanto mais que a religião ou
exige ser submisso ou é um dispositivo controlador. Em Pátria
Minha, o mestre é o próprio poeta, é ele quem toma as rédeas
de um discurso oposto ao pseudoinfantil, muitíssimo culto e
elaborado, de uma sintaxe não normativa, geradora de voz
própria, estilo inconfundível. Não é possível confundir este
mestre da poesia portuguesa com nenhum outro poeta, a
originalidade ganha em Pátria Minha um valor muito alto,
que o poeta ainda não ultrapassou em obras subsequentes.
Nas que temos sob os olhos, a singularidade vem de outros lados,
da tendência para a polémica e para a provocação que se vem
acentuando desde os
Alicerces dos Telhados de Cristal,
em que, salvo qualquer lapso de memória, e a memória está mesmo
a falhar, António Barahona se colocou ao lado de quem queria
cortar a cabeça a Salman Rushdie por causa dos
Versos Satânicos.
É claro que a luta é desigual: em qualidade poética dificilmente
algum contendor bateria Muhammad Rashid. Em poder de decisão
política é evidente que António Barahona só nos confins do
deserto da Arábia encontraria os seus aliados. Mas este
incidente revela que a fé é de facto uma paixão furiosa.
Nas obras
explicitamente religiosas, o poeta perde voluntariamente a voz
pessoal. Tudo se confunde, porque estamos na presença de um
aprendiz simulado: a educação adquire-se por mimese. Mas muito
mais longe vai o poeta ao plagiar, isto é, ao conferir categoria
poética a um acto que noutro contexto seria criminoso. Não
conheço outro artista que tenha ido tão longe nesse tópico do
retorno ao
infans,
o que ainda não sabe falar. Neste momento já temos a noção de
que Muhammad Rashid não é um poeta e sim vários, como Pessoa,
esse Fernando Pessoa que contribuiu para dar título a
Pátria
Minha
de António
Barahona: a voz e a personalidade mudam consoante as instâncias
da sua errância. Nos extremos, mantendo a sua soberania como
artista, ora temos um mago ora um amante. O mago é dominador, o
amante um dominado.
Ora, que
pátria é a de Pessoa? “[Sua] Pátria é a língua portuguesa”,
todos sabemos, aqui, no Brasil, e nas outras ex-colónias. Pátria
é a comunidade que está em condições perfeitas para comungar a
palavra. Porque é a linguagem o que temos de mais íntimo e
comum, aquilo sobre que assentam as leis por que nos regemos, as
orações que rezamos, o amor que nos votamos e o pensamento que
exercitamos, e sem essa pátria comum seríamos bárbaros, áfonos,
surdos e animais.
O António
Barahona não é um cristão, como não foi um muçulmano, se
entendermos que o crente é um instalado, um acomodado, um alguém
que já chegou ao seu destino ou já lá estava antes de ter
empreendido a viagem. O poeta é uma ave de arribação, um
peregrino perpétuo, uma alma em questa de Deus. António Barahona
escreve como um profeta, e será preciso dar-lhe atenção, pois
desde sempre foi em meio à loucura que irrompeu a Palavra mais
constitutiva das culturas. O facto de lhe negarmos razão não
significa que ele labore nas trevas, significa que ele está no
outro lado da nossa rasa “racionalidadezinha”.
Fé não lhe
falta e é sincera, mas a fé é uma agitação interior, um tender
para e não um
stop,
como José Augusto Mourão já deixou expresso nas
Alquimias.
António Barahona ama tanto a Cristo como Muhammad Rashid amou a
Allah, dois nomes para o mesmo Desconhecido. É para O encontrar
que se senta aos pés de um padre ou de um imã-tala e continuará,
porventura, a sentar-se diante de outros mestres, de outras
religiões, enquanto viver. O que para trás fica, quando se
ergue, não é Deus, sim a religião. O que à frente avança, quando
a religião se desmorona, é a Poesia, lugar de assombro em que
também é possível procurar Deus, e até encontrá-Lo. É aqui a
Pátria, é Deus aqui, aqui a Família Gramática.
António Barahona, senhor poeta
Senhor poeta
vamos dançar,
caem cometas
no alto-mar
António Barahona
Pássaro-Lyra
(Ichtus, Lisboa, 2002) é o segundo volume da Obra Poética de
António Barahona. Estas antologias são importantes, não só por
darem meios para uma visão global da obra, como por
reactualizarem textos. Alguns deles marcam a cultura portuguesa,
como é o caso do livro
Eunice,
que data da época em que Barahona estava casado com a actriz
Eunice Muñoz, anos setenta. Se o divórcio ocorreu entre eles, já
no enlace vida-obra não pode haver divórcio, sob pena de
desagregação de uma unidade poética inscrita num complexo
contexto de História.
Infelizmente, se Portugal reconhece o valor de Eunice Muñoz, já
o mesmo não aconteceu (ainda) com António Barahona, cuja obra
vem
passando
mais ou menos incógnita de geração em geração, apesar de alguns
livros publicados em editoras poderosas, e estou a pensar na
Imprensa Nacional/Casa da Moeda. O poder estatal devia consistir
em integrar oficialmente os seus autores no núcleo dos mais
representativos da Literatura Portuguesa. Porém, esse poder
parece não ter tido qualquer repercussão nacional, de uma parte
porque António Barahona não permaneceu na Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, continuando a dar-se à estampa em edições de autor,
como o demonstram estes dois primeiros volumes da sua Obra
Poética, de outra parte porque este Senhor Poeta não é
socialmente integrável. Criadores com registo de vida pouco
social, mais facilmente se integram no cofre dos valores
nacionais depois de mortos, se bem que a regra tenha excepções,
como Herberto Helder.
Em
princípio, declarou-nos António Barahona, a partir de agora a
Assírio & Alvim encarrega-se de lhe editar os livros. Antes
tarde que jamais: com a chancela desta editora, que tem
publicado autores portugueses como Herberto Helder, justamente,
e Mário Cesariny, a obra de António Barahona ascenderá por fim
ao lugar a que tem direito. E por que tardou tanto, e tarda
ainda, o reconhecimento pelo valor da obra do autor de
Pátria
Minha?
Provavelmente, porque a poesia se tornou formal e burguesa, a
sua sacralidade tem vindo a ficar submersa ao longo dos tempos
debaixo da tirania da imagem de marca: mais depressa se eleva a
insignificância apoiada num currículo universitário e numa forma
de vida modelada por uma carreira de sucesso – expressa em
sinais exteriores de riqueza – do que no mérito intrínseco de
obra oriunda de pessoa sem este perfil social. Cada vez há menos
espaço para margens e António Barahona é um marginal. Já o termo
“marginal” se sobrecarrega de tons negativos e associa-se mesmo
à criminalidade. Ora, a marginalidade de António Barahona é de
outra estirpe, indissociável da religião e da poética concebida
como teologia, como ele mesmo diz, num poema deste volume que
traz a rubrica de um testamento: “À
despedida, com a letra mais escassa / [...] / De mim só ficará
grande: grande alegria, / pássaros de papel, amores e teologia”.
Numa época em que o país era maioritariamente católico, e ateu
na sua representação científica e cultural, António Barahona era
muçulmano. Aliás o seu casamento com Eunice verificou-se segundo
o rito islâmico. Hoje, quando a tendência do catolicismo é para
a abertura e adaptação a novos problemas, quando no interior
dele há aqueles que lutam pelo acesso das mulheres ao
sacerdócio, e quando a elite intelectual recupera os valores
religiosos – em expressões várias, e não apenas católicas –,
António Barahona assume provocatoriamente uma posição
fundamentalista cristã. Ele navegará sempre contra a corrente, e
nós podemos recusar as suas ideias e projectos de vida, não
podemos é persistir no silêncio quanto à sua poesia, da mais
alta que nas últimas décadas tem aparecido em Portugal.
António Barahona escolheu o peixe (Icthus) para emblema das suas
edições mais recentes, e de facto é também sob o signo da água
que no “Pássaro-Lyra” vai levantando voo a n’ave poética. O que
é o poeta, o que é a poesia? Sempre algo e alguém imaginado como
participante de actividade ou elemento aquático: navegação,
barca, “harpoador com restos de baleia ao redor da alma”,
“degraus de rio” que é necessário passar. Note-se que o
“harpoador” é também o pescador de música, tal como o
pássaro-lyra não é apenas uma ave. Neste ambiente húmido,
evocador tanto da Diva como dos Descobrimentos, um dos poemas
mais significativos é o que analoga a natureza-poesia a um
ritual. Essa natureza-poesia decorre da fusão dos elementos de
uma paisagem marinha com recordações (verso final) de um dos
mais conhecidos sonetos de Camilo Pessanha. Intitula-se “Missa”,
deixando claro que o Senhor Poeta é um sacerdote, Nosso Senhor,
e que, em António Barahona, a poesia é de facto um sacramento. |