Diálogo
com Antonio Cícero
Floriano Martins
FM
Acaso se
poderia falar em um primeiro momento onde sentes uma inclinação
para a poesia ou a filosofia, algum momento em que ambas te
pareçam conflitantes? E de que maneira uma transborda na esfera
da outra?
AC
São
impulsos muito diferentes os que me levam a querer escrever um
poema dos que me levam a querer escrever um ensaio filosófico.
Para mim, a filosofia consiste no empreendimento racional de
crítica sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem
congelar ou cercear a vida. Para tanto, ela precisa conhecer e
expor a verdade.
A poesia é
a atividade em que ponho em jogo, até onde não possam mais ir,
todos os meus recursos - todo o meu intelecto, toda a minha
sensibilidade, toda a minha intuição, toda a minha razão, toda a
minha experiência, todo o meu vocabulário, todo o meu
conhecimento - a serviço de uma expressão concentrada da vida,
numa escritura que mereça intrinsecamente existir.
Entre
outras coisas, a filosofia defende e guarda o espaço da poesia;
para tanto, porém, ela não deve ser poética, mas veraz.
Por outro
lado, é evidente que a filosofia é um - mas apenas um - dos
elementos que posso pôr em jogo, ao escrever poemas.
FM
Poderíamos dizer então que defendes que em ambas a relação entre
conteúdo e continente deva ser recíproca, ou crês que a
filosofia teria um vínculo maior com a imanência ao passo que à
poesia coubesse mais ambientar-se com a transcendência?
AC
Na boa poesia, é impossível separar conteúdo de continente. No
limite, o bom poema é intraduzível. O próprio material imediato
da poesia são as palavras. Mas penso que a boa filosofia não é
poesia. O seu material são conceitos que podem ser expressos por
intermédio de diferentes palavras. Ao contrário de Heidegger ou
de Wittgenstein, que, cada um à sua maneira, movido por um
intenso ódio à modernidade, tentou relativizar a própria razão,
penso que, em última análise, as palavras devem e podem ser
continentes arbitrários para os conteúdos da filosofia.
A
filosofia deve em primeiro lugar defender as suas próprias
condições de possibilidade. Em segundo lugar, porém, ela é a
expressão necessária do princípio da necessidade reduzido ao
mínimo, isto é, reduzido à mera função de proteger a vigência
máxima do princípio da liberdade; em outras palavras, é o mínimo
de não-poesia necessário para garantir-se o máximo de poesia no
mundo.
Em outras
palavras, tenho a poesia como hierarquicamente superior à
filosofia, pois esta existe em virtude da necessidade de
defender aquela. Isto, porém, significa que, para mim, é a
poesia que é autotélica, isto é, que tem a sua finalidade em si
própria, enquanto que a filosofia é heterotélica, isto é, tem a
sua finalidade na defesa da liberdade, inclusive da liberdade
poética.
Quanto à
questão de imanência versus transcendência, tenho que
confessar que me é inconcebível qualquer transcendência radical
e absoluta, isto é, religiosa. Não concebo a transcendência
senão relativa, no interior de uma imanência última. Dito isto,
a poesia pode ser tomada como o exercício e o esplendor da
transcendência na imanência.
FM
Estava lendo um livro do Luther Link (The Devil, 1995), e
há uma passagem em que diz que “às vezes a fonte de uma obra é
a própria obra”, salientando que “os diabos com asas de morcego
de Giotto parecem ser um exemplo específico disso”. Poderíamos
pensar em uma fonte revelável de tua poética?
AC
Concordo com a afirmação de que muitas vezes a fonte da obra é a
própria obra. Mas acho que a verdadeira fonte de uma poética
não é revelável; ou, pelo menos, não é revelável para o próprio
poeta. Para mim, a fonte e o fim se confundem num ponto de fuga
ao qual a minha visão e a minha razão instrumental não têm
acesso pleno. Estas são muito adequadas para falar de meios, e o
que dizem, quando são totalmente lúcidas, é que os meios
dependem dos fins; ora, dos fins (que, de novo, se confundem com
as fontes), elas não sabem falar.
FM
O Eduardo Lourenço refere-se a um aspecto essencial na poesia,
uma natural exigência de «que inequivocamente a leiamos nos
poemas mesmos e não que deles a extraiamos depois de lá a ter
metido». Concordas com isto? E de que maneira podemos situar na
filosofia essa «dimensão inultrapassável da poesia», segundo
Fernando Guimarães?
AC
Concordo. O que metemos num poema não é o que faz com que um
poema seja um poema: não é o que faz com que um poema mereça
existir. O que faz com que um poema seja um poema – isto é, a
poesia propriamente dita – é algo que não pode ser nem metido
num poema nem extraído dele. Filosoficamente, a poesia é, como
diz Kant, falando da beleza, um universal sem conceito.
FM
O Caetano Veloso comenta que, durante a coincidente estadia de
vocês em Londres, nos anos 60, tua relação com a Tropicália
expressava um “entusiasmo contido”. Qual seria a dimensão desse
entusiasmo, e de que maneira te sentias integrado ao movimento?
AC
Não participei da Tropicália e, quando conheci o Caetano, esse
movimento já tinha terminado. Antes disso, porém, eu já avaliava
a importância enorme da Tropicália na cultura brasileira.
Entendo-a como um movimento libertário que, entre outras coisas,
explodiu os muros ideológicos elitistas que pretendiam
desclassificar tudo o que não se enquadrasse em estreitos
parâmetros nacionalistas, bom-gostistas e pseudo-machistas
dentro dos quais se pretendia confinar a produção cultural
brasileira. Em termos de música, ela completou o processo,
iniciado pela bossa-nova, de elucidação conceitual da natureza
da música popular brasileira, em particular, e da música
popular, em geral. Falo detalhadamente desse assunto num artigo
que está publicado na revista Continente, no número de
setembro deste ano.
FM
O nacionalismo populista que então se combatia - e não somente
com o Tropicalismo, mas também com a atenção voltada para a
Beat, o pop, o Surrealismo etc. - hoje se encontra substituído
pelas táticas de consumo. A própria afirmação do novo não vai
mais além do acento nas repetições e diluições de fórmulas já de
todo reveladas. Recordo aqui tua clara distinção entre progresso
artístico e cognitivo. Não te parece que o dilema permanece,
apenas atualizados os mecanismos de negação dos valores
universais?
AC
Na resposta anterior, mencionei o papel de elucidação conceitual
que o Tropicalismo teve na música popular brasileira. Ele é
equivalente ao papel que a arte conceitual teve na pintura. Em
outras palavras, o Tropicalismo é arte conceitual. Depois da
elucidação que ele fez, a música popular brasileira se livrou de
todas as restrições formais ou temáticas que lhe eram impostas
em nome do epíteto “popular” ou em nome do epíteto “brasileira”.
Isso não quer dizer que tudo seja bom, ou que valha tudo. Quer
dizer apenas que não se pode a priori determinar o que é
que é bom ou o que é que vale. Cada obra de arte é sui
generis e exige ser considerada em si. Isso é o que todo
artista sabe ou deve saber. O fato de que a indústria cultural e
o grande público ignorem essa lição da arte conceitual é outra
questão, que interessa antes ao sociólogo do que ao artista. De
todo modo, a elucidação conceitual só precisa ser feita uma vez
em cada arte e o Tropicalismo já a fez, no que diz respeito à
música popular.
FM
Ao referir-se à influência da metafísica sobre as culturas de
uma maneira em geral, Michel Leiris distinguiu as sociedades
primitivas daquelas a que supostamente pertencemos recorrendo a
uma característica nossa de “irremediavelmente degenerados”. O
que pretende conservar hoje a filosofia ao buscar uma aplicação
na realidade?
AC
Não conheço o texto nem o contexto em que Leiris diz isso, mas,
prima facie, a distinção entre culturas primitivas e
culturas degeneradas é inaceitável. “Degenerado” é o que se
afastou da sua raça ou linhagem, ou das qualidades que a ela são
atribuídas. Nas culturas tradicionais, baseadas em castas, é a
aristocracia que cultiva a sua linhagem, da qual pretende que
derivem os seus privilégios. Servos ou escravos não têm linhagem
que se preze. O mesmo ocorre com as culturas racistas, tais como
os nazistas alemães, os brancos sul-africanos, na época do
Apartheid, ou os brancos do sul dos Estados Unidos. É por isso
que, em tais culturas, afastar-se da sua linhagem é uma coisa
terrível, de modo que nada lhes parece pior do que o adultério e
a miscigenação. Na realidade, porém, toda cultura surge ou
progride como “degeneração” de uma cultura anterior. Onde há
mais cultura é onde há mais mistura. Entende-se assim que, no
Ocidente, as grandes culturas e a própria civilização tenham
surgido no leste do Mediterrâneo, onde se encontram os caminhos
da Ásia, da África e da Europa. Toda cultura humana já é
“degeneração” da natureza. Mais ainda, cada espécie que surge na
evolução é a “degeneração” de uma espécie anterior. O caráter
primitivo das “culturas primitivas” está no fato de ignorar a
sua condição “degenerada”.
Outra
observação: os nazistas consideravam toda a arte moderna como “entartete”,
isto é, degenerada e, como se sabe, fizeram, em 1937, uma
exposição destinada a ridicularizar a chamada “arte degenerada”.
Pois bem, eles tinham razão. Dizer, como eu disse acima, que
cada obra de arte moderna é sui generis é exatamente
dizer que ela se separa do genus, da raça, a que
tradicionalmente pertencia. Isto significa que, fazendo-se
degenerada, cada obra de arte constitui o seu próprio genus,
constitui a sua raça individual. Em outras palavras, os nazistas
desprezavam exatamente o feito - cognitivo - de que os artistas
modernos mais podem se orgulhar.
FM
Leiris mostrava-se então cegamente apaixonado pelas culturas
africanas. A miscigenação está na outra ponta desse conceito de
“raça individual”. Mesmo recorrendo ao que o mercado absorve e
expele como “world music”, o fato é que há um caráter excludente
na cultura européia que ainda é determinante entre nós. Uma
intensificação de misturas em escala planetária de que maneira
se confunde com um aproveitamento para erradicação de algumas
culturas?
AC
Não creio que o mercado tenha realmente interesse positivo em
erradicar cultura alguma. O que realmente me parece acontecer é
que as diferentes culturas se apresentam, ao mundo moderno, como
diferentes opções de vida, que podem ser livremente adotadas ou
rejeitadas: e adotadas ou rejeitadas não só por razões
profundas, mas também por razões superficiais; não só por razões
sérias, mas também por razões fúteis: e isso é explorado pelo
mercado. Mais ainda é explorado o fato de que elementos de
diferentes culturas podem perfeitamente ser destacados da
cultura em que se integravam ritual ou miticamente, e
transportados para outras culturas, às quais se integram de
modos inteiramente imprevisíveis. Assim, no Leblon, come-se
sushi com fois-gras, acompanhado por vinho australiano, ao som
ora de Belchior ora de Madonna. Mas o fato de que assim seja
significa que o homem moderno já fez a opção fundamental por uma
atitude crítica, uma atitude de distanciamento em relação a
todas as culturas, inclusive àquela em que, acidentalmente,
nasceu. Lévi-Strauss dizia que, quando jovem, defendia as
culturas “primitivas” que estavam ameaçadas de desaparecer, mas
que, depois de velho, percebeu que a própria cultura européia
estava ameaçada de desaparecer: e passou a defendê-la. Na
verdade, não acho que cultura alguma esteja ameaçada de
desaparecer. O que acontece é que a instância fundamental, a
instância decisiva, a instância última da subjetividade, a
metalinguagem das metalinguagens é hoje a instância crítica, que
é individual e não pertence a cultura alguma, mas sim à
modernidade, isto é, à civilização, que é a meta-cultura. Ante
essa instância, todos os ingredientes de todas as culturas – da
brasileira, da francesa, da alemã, da americana – são meras
opções individuais. Todas as culturas sobrevivem nos museus ou
nos shopping centers, mas nenhuma é essencial: todas são
acidentais, todas são contingentes, todas são disponíveis e
descartáveis. Mas estou longe de lamentar que seja assim. Este é
o meu mundo. Eu detestaria viver num mundo pré-moderno.
FM
Recordo uma afirmação tua de que “a poesia é compatível com uma
infinidade de formas”. O assunto seria de todo óbvio não fosse o
fato de que vez por outra ouvimos falar no anacronismo do soneto
ou na rejeição à letra de canção como eventual protagonista do
poético. Não te parece que de alguma maneira idealizamos um
modelo de vanguarda, estritamente formalista e congelado no
tempo?
AC
Sim. Estou convencido de que a vanguarda, tendo cumprido a sua
função libertadora, acabou. O legado da vanguarda foi a
desfetichização das formas tradicionais. O fetiche, como o
feitiço, é um objeto ao qual falsamente se atribuem poderes
mágicos. Um exemplo muito claro de fetiche é a rima. Os poemas
gregos e latinos não eram rimados. A rima é uma invenção da era
medieval adequada às línguas modernas. No século XIX, ela já
tinha sido tão associada à poesia, já que a maioria esmagadora
dos poemas que se faziam eram rimados que, por um lado, o que
não fosse rimado não era tomado como poesia e, por outro, um
conjunto de versos rimados era automaticamente tomado como
poesia. É porque à rima se atribui, desse modo, o poder de
produzir poesia, que ela é um fetiche. Ora, o modernismo do
século XX deu preferência aos versos brancos, sem rima.
Inicialmente, questionava-se se tais versos podiam ser
considerados poesia. Com o tempo, porém, a qualidade patente de
muitos de tais versos tornou impossível negar que fossem poesia:
o que também chamou atenção para o fato de que a maioria
esmagadora dos versos rimados não chegava a ser poesia, no
sentido forte da palavra, isto é, de que não chegava a ser boa
poesia. Estava assim desmascarado o caráter de fetiche da rima.
Ao
desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que a
poesia ou o poético não existe prêt-à-porter à disposição
do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou
palavras; inversamente, mostrou também que a poesia não é
necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Ela
se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma
combinação absolutamente imprevisível e irreproduzível de
fatores que não podem ser definidos a priori. Mas essa
descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o
que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é,
depois que percorreram o caminho que nos trouxe da
pré-modernidade à modernidade plena. Esse caminho, porém, não
foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de
desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve
fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço. Se
tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas
formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como
as únicas formas inadmissíveis na poesia. É o que chamo o
“fetichismo negativo” da vanguarda. Pois bem, o modelo de
vanguarda a que você se refere é exatamente o que ainda
praticava o fetichismo negativo. Que pode haver de mais
superado?
Por outro
lado, dizer que a vanguarda acabou não é dizer que acabou a
poesia experimental. Ao contrário, a poesia experimental pode
ser muito boa e é às vezes brilhante. Apenas, ela não é a única
forma legítima de se fazer poesia, no mundo pós-vanguardista em
que vivemos.
FM
Recordo uma passagem do livro Verdade Tropical, em que o
Caetano Veloso diz, a teu respeito: “depois de algum tempo, ele
se afastou da canção para poder dedicar-se àquilo de que mais
gosta: filosofia e poesia”. Houve mesmo esse afastamento?
AC
De fato, faço menos letras hoje. Faço mais poemas para serem
lidos. Reconheço-me mais nestes do que naquelas. Por que? Porque
o sentido da letra de música é fazer parte de uma bela canção.
Ora, como não sou compositor nem cantor, a letra que faço é
sempre apenas uma parte - e possivelmente uma parte secundária -
da canção que ajudo meu parceiro ou parceira a fazer. Já o poema
que faço vale (ou não vale) por si, independentemente de
qualquer outra consideração. Em suma, uma canção é uma obra
parcialmente minha, enquanto um poema é uma obra totalmente
minha.
FM
Não te parece que isto poderia ser remediado com a presença
(descoberta) de um parceiro único, um cúmplice mais cônscio do
que pretendes dizer através da canção?
AC
Não. Acho que tenho os melhores parceiros possíveis: que são
inteligentes e percebem as minhas intenções. Mas o que ocorre é
que a minha forma de expressão é realmente a palavra e não a
música. Gosto de fazer coisas que possam ser entendidas
imediatamente, num primeiro nível, mas que, para serem realmente
apreciadas, exijam uma concentração, uma atenção para os
detalhes e para sugestões que não são compatíveis com a audição,
mas somente com a leitura e a releitura. Ou seja, a finalidade
de tudo o que faço é ser lido.
FM
Um dos maiores equívocos do Surrealismo foi o de considerar a
música como uma atividade de mentalidades inferiores. Breton era
tão surdo quanto João Cabral. E ambos eram essencialmente
metódicos, considerando de menor importância as imagens
auditivas. Como vês o assunto?
AC
Para dizer a verdade, com o passar do tempo a música tem se
tornado menos importante para mim. Mas a sonoridade do poema me
é fundamental.
FM
Suponho que essa menor importância não é sinal de recusa à
música em si, mas antes uma saturação. Eu sinto o mesmo em
relação ao poema e acho bastante natural. Creio que há uma
proporcionalidade no ramo de prostituição das artes a ser
observado corretamente, ou seja, como a música está mais
presente nessa tática voraz de anulação do ser, acredita-se que
maneje a sós todos os disparates, digamos. Contudo, há
comportamentos igualmente desprezíveis ou quando menos
aborrecidos verificados no teatro, na poesia, no cinema etc. Não
te parece?
AC
Não é que eu recuse a música, mas que a música não é o meu
medium artístico. O meu médium é a poesia, que, por isso, tem
uma importância muito maior do que as outras, para mim. Agora,
de fato, acho que é cada dia mais difícil fazer arte, e isso
vale para todas as artes.
FM
Tuas observações sobre a poesia brasileira sempre me parecem
muito pertinentes. No entanto, sinto falta de uma leitura
crítica dos poetas da canção popular, que seja feita a eles uma
avaliação correspondente. Acabamos limitando o assunto,
simplesmente enfaixando-o. O que pensas, por exemplo, de um
letrista como Belchior? E como convives com esses pares todos?
AC
Acho Belchior muito bom. De modo geral, acho que há mais
letristas bons no Brasil do que nos Estados Unidos ou na
Inglaterra.
FM
Tendo a concordar contigo, mas ao mesmo tempo penso em letristas
como Nick Cave ou Tom Waits e mesmo o canadense Leonard Cohen,
que me parecem haver alcançado uma densidade invejável. Claro
que não se deve misturar o assunto tocando no refinamento
harmônico e melódico de nossa canção popular. Não é fácil
encontrar um Edu Lobo a qualquer momento, por exemplo. O que
estava sugerindo é que não temos uma discussão estética sobre a
canção popular pensada a partir de seus letristas, como se não
fosse possível detectar ali a presença de algumas sólidas
poéticas.
AC
Acho que realmente faz falta esse tipo de estudo. Mas os
brasileiros têm uma tendência tão grande ao corporativismo que
esse tipo de discussão tende a se transformar na luta entre a
corporação virtual dos poetas livrescos, que querem negar o
título de “poeta” aos letristas, e a corporação virtual dos
letristas, que acham que merecem tal título. Posta nesses
termos, a questão não me interessa.
FM
Teu novo livro de poemas inicia-se com uma indagação (“por onde
começar?”) e conclui-se por uma afirmação (“largar”). Temos aí a
idéia do poeta a desfazer-se de si, em busca do outro, suponho.
Que outro buscas através de tua poesia?
AC
Eu não poderia antecipá-lo, defini-lo, nomeá-lo. Busco o que
quer que, sendo terrestre, material, imanente, concreto,
temporal, objetivo, empírico, sensual etc. e, portanto,
precário, relativo, acidental, contingente, finito etc., seja
também maravilhoso (quando poderia não ser).
FM
Claro, Cícero, claro. Nem te peço que o prenuncies. Contudo,
imagino que cobices algo deste objeto eternamente inconciliável
com teu desejo. Ou não esperas nunca nada de ti?
AC
Talvez o que eu queira dizer seja que o que busco na minha
poesia é imanente ao poema, isto é, que se manifesta
exclusivamente no poema, e que, fora do poema, eu não saberia
dizer o que é. É o poema que o traz à vida.
FM
Por último uma provocação: em uma entrevista lembraste aquela do
Yeats de que se pode mexer nos poemas porque eles significam uma
mudança ulterior (“é a mim próprio que estou mudando”). Em um
outro diálogo, desta vez a respeito do que se convencionou
chamar de “poesia marginal”, dizes que isto nunca te interessou,
porque “era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto
é, produção de formas”. Então me vem a curiosidade de saber como
convives com tal contradição.
AC
Acho que essa contradição é mais aparente do que real. Enquanto
poeta, levo a sério a palavra de Mallarmé segundo a qual o mundo
- a vida - existe para virar um livro. Não penso que a poesia
seja simplesmente idêntica à vida porque o poema é, como diz o
belo título de um livro de Drummond, A vida passada a limpo.
Se o poema é a vida passada a limpo, então a vida é o rascunho
do poema. Ora, o rascunho ainda não é o poema. O poema, por sua
vez, já não é mais o rascunho. E o processo de passar a vida a
limpo é a poesia, a poesia-escritura, que faz parte da vida, mas
nem se reduz à vida-rascunho nem ao poema pronto.
Nesses
termos, quando Yeats escreve um poema, está passando a sua vida
a limpo. Quando o corrige, ainda está passando a sua vida a
limpo: ainda era rascunho o poema que ele erroneamente pensara
estar pronto. Como, porém, o poema é o telos da vida do
poeta, podemos dizer dele que é o poeta em sua realização
definitiva. É nesse sentido que o poeta muda a si próprio,
quando muda um poema: muda-se “tel qu’en lui-même enfin l’éternité
le change”. |