Diálogo
com Astrid Cabral
Floriano Martins
FM
Em uma entrevista dizes que “exprimir emoção não é apenas uma
questão estética, é questão de saúde. O que tem buscado a poesia
através da Astrid Cabral e como ela tem reagido a isto, ao longo
de sua obra?
AC
Sou um ser de muita compaixão. A doença é algo que me comove e
abala. Na infância quando visitava o tio-avô Teófilo, que em
conseqüência de queda de rede tinha uma grande mala nas costas,
começava a sentir doer as minhas. As pessoas brincavam comigo,
quem tem pena é galinha, menina. A preocupação com saúde
resultou de ter presenciado meu pai no hospital, de turbante na
cabeça já sem algum osso do crânio, meu avô vítima de esclerose
a falar de uma máquina monstruosa que um inimigo construíra para
eliminá-lo, minha irmã perdendo o fôlego em constantes crises de
asma. Até os 11, quando fui a Fortaleza conhecer a família de
meu pai, meu projeto era estudar medicina. Mas o sonho foi
enterrado com o cadáver que eu vi na Faculdade de Medicina,
desfigurado, boiando em formol. Passei muito mal. Eu não tinha
os nervos, a devida serenidade para enfrentar tais situações. Ao
longo da vida, minha resposta foi valorizar a saúde e ocupar-me
com a prevenção. Leio apaixonadamente sobre o assunto e faço o
possível para mantê-la. Acho que, de um modo geral, as pessoas
menosprezam o corpo, desrespeitando-lhe as exigências.
Por outro
lado essa idolatria no mundo atual, a obsessiva malhação nas
academias, não me convence. Não passa de modismo meio mórbido.
Uma falta de equilíbrio bastante insana, que aponta para um
vazio interior deplorável. As pessoas descartaram o fanatismo
religioso e adotaram o fanatismo atlético.
Saúde para
mim brota do reconhecimento e preenchimento das profundas
necessidades de cada um. Acho que tem a ver com o que Yung fala
sobre o processo de individuação, a possibilidade de
desabrochar-se em plenitude. Essa história de amordaçar os
sentimentos é uma submissão covarde ao culto das aparências.
Puro medo de manifestar fraqueza. E quem não tem as suas? Mas se
fraqueza disfarçada é altamente corrosiva, quando assumida perde
o travo, fica mais convivível, mais combatível. Que história é
essa dos homens posarem de deuses? Não quererem confessar que
levaram porrada? Adoro o poema de Pessoa em que ele desmascara
tal vaidade covarde. Nos dias de hoje o mito do sucesso é tão
ditatorial que as pessoas não ousam admitir suas falhas e
incapacidades. Tudo porque o próximo é antes de tudo visto como
um competidor em potencial. Ninguém quer ficar por baixo. Tem
que levar a melhor nem que seja de fachada. As pessoas vivendo a
vida como se estivessem o tempo todo no palco.
Vejo a
poesia como um eficaz “conhece-te a ti mesmo”, isso na
modalidade lírica, um “conheçamo-nos a nós mesmos” na modalidade
épica. Suponho que nunca recorri a psicanálise por causa desse
hábito de descer sozinha ao meu porão. E até comprazer-me nesses
mergulhos no escuro. Além de suspeitar de tudo por onde passa o
dinheiro, de tudo que cheira a negócio e dá espaço para
charlatanismo, sempre detestei tutelas. A poesia me compraz por
ser atividade de absoluta independência. Me faz sentir livre
(embora, a rigor, a liberdade não passe de uma utopia), é um
vinho reconstituinte. Produzi-la me dá também uma sensação de
poder. Só eu posso executar a minha poesia. Não posso delegar a
ninguém a tarefa. Gosto muito de cozinhar e já ensinei muita
gente a fazer do meu jeito. E as pessoas executam como se fosse
com as minhas mãos. Mas poesia não é ensinável.
Tem muito
autor por aí falando no sofrimento do ato de escrever. Cada um
fala da sua experiência particular, é claro. No meu caso seria
uma mentira descarada, pois se a vida me faz penar e já me feriu
muitas vezes, a literatura sempre me proporcionou prazer.
Através dela posso dialogar com a dor e transfigurá-la. Escrever
para mim só foi desagradável quando no serviço público eu tinha
que “redigir”, isto é, utilizar-me da linguagem convencional,
rígida, fossilizada. Era um uniforme com que eu tinha de vestir
o pensamento alugado, que não era meu. Tratava-se de um ato de
disciplina, nada a ver com o ato de criação. Mas a criação é uma
dança da alma. Vale o tempo empregado.
Como lidar
com palavras é um ato altamente aprazível (poucos fazem poesia,
mas muitos brincam de palavras cruzadas), temos aí uma ocupação
terapêutica. O prazer sempre foi manancial de saúde. Eu consegui
através da poesia restabelecer o equilíbrio pessoal ameaçado
pelas exigências familiares e profissionais. Os encargos
particulares e públicos eram tantos que eu me sentia sugada por
força centrífuga, afastada de mim mesma, girando em torno dos
outros. É comum as mulheres passarem pelo processo de perda de
identidade, não saberem quem são além de filhas, esposas, mães,
amantes, secretárias, profissionais, etc. Abdicarem até da
primazia do pensamento sobre a vida. Passarem a pensar conforme
vivem e não o inverso. A entrega total ao outro é nociva, tem
que haver momentos de pausa e retorno ao âmago de cada um. De
vez em quando precisa ocorrer revolução na casa antropófaga que
vai engolindo nossos pensamentos, mãos, pés e sobretudo nosso
tempo. Temos que reagir sem sentimento de culpa contra o
canibalismo do excesso altruístico, o auto-esvaziamento.
Através da
poesia busquei e cultivo a minha identidade. Sempre quis me
descobrir. Tentar saber o que se esconde em mim. Toda uma
trajetória de vida pode ser rastreada nos meus textos: os
arroubos da juventude, as indagações existenciais que me
perturbam, os momentos cruciais, os espaços por onde andei e que
me causaram deslumbramentos ou decepções, os encontros
transformadores. É um itinerário emocional. Nunca me debrucei
sobre temas puramente (será que existem?) intelectuais e
abstratos. As tragédias que me sacodem são as que vivencio ou
testemunho, de pessoas próximas de carne e osso, não de ilustres
e remotos gregos e troianos. Talvez por contingências
específicas não tenha enveredado a fundo pelos caminhos da
cultura como gostaria e sonhei na juventude. Mas quando converso
com certas pessoas simples do povo, com crianças e velhos (que
ainda não foram iniciados na cultura oficial ou já esqueceram
tudo), aprendo coisas sobre a condição humana e a natureza,
nuvens, formigas, hábitos dos bichos, e convenço-me de que a
vida é um livro aberto, onde letras e páginas não fazem falta. A
questão é abrir os olhos e aprender a enxergar diretamente, sem
intermediação. Como já dizia o nosso Oswald, “ver com olhos
livres” e que até adotei como lema para meus alunos de formação,
a fim de ousarem pensar sozinhos sobre o que liam, sem se valer
de interpretações alheias, nem sempre de boa qualidade.
Exercitar a própria intuição sempre me pareceu um hábito mais
enriquecedor do que entupir a memória de material em abundância,
sem processá-lo de modo crítico.
FM
Não creio que o Oswald de Andrade praticasse o que preconizava,
mas entendo o que dizes. De que maneira busca e cultivo de
identidade se mostram, em teu caso, em termos de poética? É
possível que te distancies da Astrid Cabral e comentes a
percepção crítica que tens de sua obra?
AC
Para início de conversa vale dizer que não tenho grande paixão
pela obra do Oswald. Considero-o supervalorizado. Dele eu pinço
e adoto um ou outro relâmpago de intuição. Meu enorme respeito é
mesmo pelo Mário, que tanto trabalhou pela identidade nacional,
com seriedade em vez de humor.
Quanto à
questão da identidade sempre agucei o ouvido para a voz
interior. Nunca me deixei levar pelas expectativas que os outros
possam ter de mim. Nem adolescente me importei pela moda
reinante. Sempre fui “inner directed”, pelo menos nas minhas
intenções conscientes. Nos anos 50, a maioria dos meus amigos do
Clube da Madrugada cultivava o soneto e as formas fixas. Eu
escrevia à solta. Quando, ginasiana ainda, eu descobri o
modernismo, vibrei. Era o direito ao verso fora da gaiola, em
que eu, timidamente, ensaiava. Aliás, a essa altura, eu me
exercitava muito mais na prosa, e foi nela que me inaugurei nas
letras. Em 52, no curso clássico do colégio Pedro II,
organizou-se um debate para comemorar os 30 anos da Semana. A
província ainda era tão impregnada de parnasianismo que ninguém
queria participar na bancada de defesa. Fiquei cabalando até
encontrar dois colegas para atuarem comigo em prol do
modernismo. Convivi com poetas da geração de 45 e apreciava a
competência técnica deles, mas não me submetia àquela
disciplina. Comecei a praticar o soneto ao traduzir Petrarca
como tarefa do curso de língua e literatura italianas, já na
faculdade. Gostei da experiência, mas há na minha natureza uma
espécie de rebeldia a balizas e portas fechadas. Sou
claustrófoba por natureza e estou sempre com um pé atrás diante
de leis e convenções.(Enquanto minha avó beijava o anel do
bispo, eu apenas lhe estendia a mão.)
Ao
analisar minha obra vejo nela a manifestação das contradições e
conflitos, indagações e descobertas que me habitam desde que me
entendo por gente. Em testes de psicologia empato extroversão
com introversão, daí uma espécie de força centrífuga que me
conduz à descrição e crítica do mundo real circundante, e de uma
força centrípeta que me reconduz ao âmago de mim mesma, à
ponderação e reflexão de questões filosóficas, invisíveis.
Adepta da linguagem mais concreta, uso metáforas para expressar
realidades imateriais. (Por exemplo, me refiro à morte como onça
sem pelo, bicho de sete cabeças, coisas assim.) Amazonense,
nascida e criada em Manaus, aberração de cidade sofisticada no
meio do mato, sou atraída pela natureza e pela cultura. O
balanço entre esses pólos pode ser rastreado na temática e
também na fatura dos meus poemas. Acolho o popular e o erudito,
o coloquial e o requintado, o regional e o universal, sem
preconceitos. A vida é feita de aspectos contraditórios e quero
apreendê-la no seu todo, sem preocupação elitista, no calor da
paixão, sem a frieza das coisas idealizadas. Por isso é que
tanto leio os clássicos como ando de ouvidos abertos para o que
as pessoas dizem nos ambientes informais das feiras, das filas,
etc. Tudo me apraz. A linguagem oral é também um espetáculo
imperdível e a vida incessante aprendizagem.
Creio que
meu foco poético está no existencial e não no metalingüístico. A
linguagem para mim, só eventualmente constitui-se em tema. Ela é
sobretudo meu instrumento de sondagem e apropriação direta da
realidade, sem intermediários, a não ser os que o inconsciente
convoca. Não utilizo o que Benedito Nunes chama de “esfolhamento
das tradições”. De um modo geral, meu discurso poético decorre
mais da intuição, filtrada, é claro, pelo conhecimento de várias
tradições literárias (leio poesia em várias línguas), que da
memória consciente de outros textos e autores. Já li tanto que
se tivesse boa memória até que teria armazenado razoável
erudição, mas minha cabeça funciona em sínteses, não se detém
muito nos detalhes, a não ser os que a emoção sublinha.
FM
Como se deu tua experiência de ensino por ocasião da criação de
Brasília. Ali te encontraste, por exemplo, com o poeta Santiago
Naud. Que espécie de esperança alimentava então aqueles dias de
surgimento da nova capital e até que ponto esta esperança foi
abortada pelo golpe militar?
AC
Entrei para UnB pela mão de José Carlos Lisboa, irmão de nossa
querida Henriqueta, que nem ela, um ser culto e sensível. Foi
meu professor de língua e literatura espanhola na Faculdade
Nacional de Filosofia do Rio, onde cursei neolatinas, idos de
55-58. Devo a ele minha formação como professora. Era desses que
não se limitava a trazer os peixes. Ensinava efetivamente a
pescar. Tinha metodologia e estava sempre interessado no
crescimento pessoal de cada aluno de per si. Tanto lidava
com os grandes painéis, como descia às minúcias do texto. Era um
dissecador dos problemas linguísticos, dos recursos literários e
exigia produção e aperfeiçoamento. Estava sempre avaliando o
progresso ou a estagnação do aluno. Mantendo uma estreita
aliança com seus discípulos, conhecendo-os em suas
potencialidades, escolhia os autores e os temas em que cada
aluno deveria trabalhar com extrema perspicácia psicológica.
Impossibilitado de se transferir definitivamente para Brasília
(era catedrático no Rio e em Belo Horizonte), passou o cargo ao
Cyro dos Anjos que me recebeu muito bem, pois apreciara a
contista de Alameda.
Na UnB
tínhamos contratos semestrais e com isso estávamos sempre
trabalhando em áreas diferentes, como auxiliares jovens de
professores mais velhos e experientes. Trabalhei em teoria
literária com Oswaldino Marques, em língua portuguesa com
Adriano da Gama Kury, em literatura portuguesa com o professor
George Agostinho da Silva. Foi na equipe deste que me encontrei
com o Santiago Naud, até hoje meu grande amigo. Tenho por ele
uma admiração total, pela alta qualidade de seu trabalho e pela
figura humana extremamente digna. É um ser como o Afonso Félix
de Sousa era, de alta espiritualidade. Nos idos de Brasília
estávamos todos unidos pela utopia de um Brasil melhor, de uma
universidade de alto nível. Mas nós, idealistas, volta e meia
nos defrontávamos com fatos reais decepcionantes. Darcy Ribeiro,
por exemplo, a despeito de toda bagagem etnográfica e
sociológica, era de uma prepotência terrível. Queria sempre
ditar as leis, não sabia dialogar. Uma de suas propostas era de
que o mestrado em letras devia incluir obrigatoriamente línguas
indígenas, podendo até dispensar o latim e o grego. Um dia um
colega lhe disse de cara que ele não parecia um reitor de
universidade, mas um feitor de fazenda. Havia também muita
rivalidade entre equipes oriundas de regiões diferentes, o grupo
paulista, o grupo baiano, o mineiro. Farpas e mais farpas. Porém
a degringolada veio com o golpe militar, pois a degola começou
pelas figuras de proa. Eu trabalhava num curso de morfologia dos
gêneros literários com o professor Oswaldino Marques, quando ele
foi cassado. Pedi exoneração em solidariedade e também porque o
ambiente estava lúgubre. Apareciam figuras suspeitas a paisana
espionando as aulas e até policiais certa vez invadiram minha
sala dando busca em papéis e livros. (Vários amigos me
aconselharam a queimar os livros de esquerda que eu tinha em
casa. O Afonso estava viajando e eu podia ser surpreendida por
uma visita de inspeção. Felizmente eu não cometi o crime de
jogar fora os livros.) As vagas dos cassados foram preenchidas
por pessoas favoráveis à ditadura e incapazes na profissão,
espertalhões que avidamente abocanharam os empregos sem o menor
escrúpulo. Por outro lado os professores que permaneceram
durante a instalação da ditadura passaram por grandes apuros.
Quando retornei à UnB, depois da anistia em 88, observei que com
o passar dos anos tinha havido uma certa recuperação e o nível
no departamento de letras estava bom.
FM
Bom exatamente em que sentido, Astrid? Quais relações poderiam
ser traçadas, em termos de qualidade de ensino, entre o que se
tinha no período do regime militar e o que se tem hoje em âmbito
democrático?
AC
Observei, Floriano, contrariando minhas expectativas
pessimistas, que o nível dos alunos era de melhor qualidade.
Brasília dispõe hoje de bons colégios de nível médio. Nos idos
de 60, os candidatos afluíam de vários pontos do país, eram
moradores recentes, com bagagem educacional de origem muito
variada. Já nas últimas décadas, a seleção mais apertada no
vestibular, devido à forte competição, redundou em turmas mais
aptas e homogêneas. Os três ou quatro alunos que não consegui
aprovar por total falta de base, eram beneficiados por lei de
transferência dos servidores públicos, com dispensa de
vestibular para o ingresso na UnB.
Nesses
mais de 20 anos de ausência, a competição entre maior número de
professores determinou processos de avaliação, em princípio mais
difíceis, maior cobrança de produção acadêmica. O atual quadro
docente é basicamente constituído de doutores com
especialização.
Cabe
lembrar que não testemunhei o terrível período da ditadura no
poder, a não ser no primeiro ano de sua instalação. Isso me
impede de traçar uma análise profunda das transformações.
De certo
modo, acho que dei uma pequena contribuição à democracia quando,
ao reassumir o magistério, incentivei vivamente os alunos a
fazerem uma avaliação do meu curso. O fato é que eu, na condição
de oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores,
durante vinte anos fui julgada pelos chefes diplomatas, o que
sempre me pareceu um abuso de poder, dada a inexistência de
julgamento em sentido inverso. Pude portanto ver com alegria o
diretório estudantil começar a avaliar semestralmente os cursos,
dando nota aos professores, contribuindo portanto diretamente no
aperfeiçoamento do processo de aprendizagem. Se a gente abre bem
os olhos, vê que no Brasil ainda se tem uma democracia muito de
fachada. A todo momento deparamos situações de flagrante
autoritarismo, as pessoas crentes que os cargos lhes concedem
poderes absolutos.
FM
Falemos sobre poetas brasileiros com os quais acaso tenhas
dialogado no desenho de uma poética que te define. Mencionaste
em algum momento o “fôlego épico-lírico” de Jorge de Lima. Que
importância tem este poeta para ti?
AC
Pergunto onde falei do “fôlego épico-lírico” de Jorge de Lima,
pois não estou me lembrando. Tenho uma verdadeira paixão pela
poesia dele, em particular pelo Invenção de Orfeu, que
tanto me seduz quanto me escapa. Acho de uma complexidade
fascinante. Esse poema tem uma dimensão de mistério que me
atrai. É um labirinto que convoca ao desafio. Meu poeta
preferido é Drummond, mais ao alcance do meu entendimento, mais
em sintonia com a minha cosmovisão prosaica. Jorge de Lima me
ultrapassa em seus oníricos périplos, seus altíssimos vôos. Eu
não me alço muito alto, tenho asas de galinha, mas tenho o
desejo de ultrapassar meus limites. Aliás, a minha proposta para
dissertação de mestrado (1963/1964) era sobre os processos de
criação vocabular em Invenção de Orfeu, que terminei por
abandonar a meio caminho. O primeiro obstáculo foi a morte do
meu orientador, o Hélcio Martins que faleceu de uma anemia
perniciosa. Depois veio a ditadura e a essa altura, aos 29 anos,
eu já estava com uma escadinha de 4 filhos e outros problemas de
pesada sabotagem.
Quanto a
outros poetas brasileiros, estou à espera de que alguém me diga
onde me encaixo, quais são meus antepassados. Já me aproximaram
de Ungaretti, Francis Ponge, Elizabeth Bishop. O Otávio Mora já
me falou até de um poeta escocês, de quem esqueci o nome, mas
que segundo ele tem tudo a ver comigo. E eu que sou
escancaradamente brasileira, não sei mesmo onde me entronco, com
quem me aparento. Será que você me ajudaria? Uma coisa é certa,
nunca me preocupei em imitar ninguém. Não sou furta-cor e
qualquer semelhança é mera coincidência, ou fruto de uma
elaboração gratuita do inconsciente.
FM
Não pretendia falar em semelhanças ou coincidências, mas antes
em afinidades, ou seja, quem te chama a atenção em termos de
poesia brasileira, e que importância atribuis a tais afinidades
em tua poética. Mencionaste aqui uma grande poeta brasileira
raramente lembrada, a Henriqueta Lisboa. O que disseste sobre o
Jorge de Lima foi em resenha escrita sobre livro do Reynaldo
Valinho Alvarez. Não me interessa com quem te aparentas. Eu
tampouco me aparento com ninguém, por exemplo, mas sei observar
algum diálogo valioso que minha poesia traçou, em algum momento,
com poetas como Roberto Piva, Ferreira Gullar e o próprio Jorge
de Lima. É disto que quero que fales.
AC
Muitos poetas brasileiros me tocam fundo, além de Drummond e
Jorge de Lima. Gosto imensamente de Gregório de Matos e Augusto
dos Anjos. São poetas de incontida força, vulcões em erupção.
Dos árcades prefiro Claudio Manuel da Costa e dos românticos, me
amarrei primeiro em Castro Alves e mais amadurecida, vim a
preferir Gonçalves Dias, mais épico e menos altissonante. Entre
os modernistas, além dos já mencionados, gosto do Bopp com quem
comungo do telurismo amazônico, e sobretudo de Joaquim Cardoso e
Mario Quintana. Estes dois sempre me arrebatam e iluminam.
Cecília Meireles me embala com sua finíssima musicalidade e
imagética. Gilka Machado me atrai por sua sensualidade e
coragem, precursoras do aflorar da voz feminina, secularmente
reprimida. A importância dela ainda não foi devidamente aferida
nas gerações que lhe sucederam. Creio, em certo aspecto
temático, estar mais próxima dela do que de Cecília. Dos
contemporâneos mantenho intercâmbio com grupos em vários pontos
do Brasil, mas acho difícil apontar afinidades. Nutro admiração
por alguns autores de expressão singular, que não nomeio para
evitar os infalíveis esquecimentos.
FM
Segundo teu entendimento, se tem praticado a crítica no Brasil
dando-se importância menor à obra literária, ou seja, nossos
críticos “servem-se dela mais como pretexto do que como núcleo
de análise”. Poderíamos conversar mais claramente, em torno de
nomes?
AC
Floriano, lógico que há muita gente séria, tipo Wilson Martins,
Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Fábio Lucas, etc. Peço que você
guarde segredo sobre os nomes dos outros. De muitos eu nem gravo
os nomes, desisto no meio do caminho, só vejo lá no pé do texto
que o autor é doutor em letras. Quando um aluno meu me
apresentava texto mal elaborado, eu assinalava todas as falhas
para que ele corrigisse raciocinando. Alguns apresentavam várias
versões como exercício até a definitiva. Tenho ganas de mandar
certos críticos de volta a uma classe de redação. O ensaísta ou
o crítico, a meu ver, não pode ser ambíguo, nem lacônico. Sua
função é desembrulhar e não embrulhar. Ele tem que ter uma
postura preferencialmente didática. Fico
espera de
que alguém traduza, em linguagem legível, os críticos de
pensamento confuso.
Penso com Boileau, “ce que l’on conçoit bien, s’ennonce
clairement”.
FM
Mas não te parece que os próprios escritores, sobretudo pensando
naqueles que exercitam a crítica, são muito coniventes com essa
linguagem cifrada de teus dois belos exemplos? Observo ainda que
é muito pouco substantiva a pretensão crítica em nossos poetas.
Isto acaso deriva de alguma falha de cultura? Seria reflexo
inclusive de tanta imaturidade poética, como a que sabe existir
desenfreadamente e até conviver muito bem com esses libelos da
crítica acadêmica? Isto acaso nos levaria a um círculo vicioso?
AC
Sim, há muitos cultores de linguagem cifrada, tanto entre
criadores como entre críticos. Será um estilo de expressão
típico da atualidade? Mais um modismo vigente? Um barroquismo
pós-moderno? Por que estarei eu a exigir tanta claridade? A luz
equatorial que me banhou na infância me viciou até hoje? Ou
lê-se tanto hoje em dia que a assimilação se processa de modo
atropelado e imperfeito? As pessoas, em geral, não mais se
debruçam sobre coisas, fatos e palavras com o devido vagar. São
engolidas pela voragem da leitura, enfeitiçados pela erudição.
Não lhes sobra tempo para refletir. Empanturradas de
informações, se perdem ao dissecar e analisar. Não se dão as
pausas necessárias para chegar ao amálgama da síntese. Que
existe falha de cultura e imaturidade poética, falta de
pretensão crítica da parte de muitos criadores é um fato. Nesse
caso, estarão expostos ao crivo dos leitores e entendidos. Mas a
crítica hermética acaso poderá resolver isso? Para ser de alguma
utilidade, ela precisa mostrar com precisão as deficiências ou
apontar as qualidades de modo convincente. Afinal, espera-se da
crítica como gênero secundário, uma atitude auxiliar,
avaliadora. Cito aqui o Fausto Cunha, um dos críticos mais
lúcidos que o país já produziu: “A crítica não supre o
conhecimento da obra, como o conhecimento da obra quase sempre
dispensa o conhecimento da crítica” . A impressão que tenho é de
que a crítica está disputando o primeiro plano, competindo com a
obra de criação, usando-a apenas como ponto de partida para uma
criação paralela de outra natureza, analítica, parafrásica, sei
lá, desdenhando portanto de sua função original. Bem, Floriano,
estás a ver que não sou nenhuma teórica, uso apenas o bom senso
que às vezes não passa de uma incapacidade para atingir alvos
mais distantes ou mais profundos. |