Carlos
Drummond de Andrade
Floriano Martins
Ao
prefaciar a edição conjunta de 10 livros de poesia de Carlos
Drummond de Andrade, Antonio Houaiss destaca que o poeta
brasileiro “humildemente se põe na posição de que todos os
saberes possíveis sobre poesia nunca esgotarão o novo”, ao mesmo
tempo em que atenta para o fato de que “há subjacente na sua
poesia uma contradição ostensiva e uma coerência latente entre o
viver individual e o viver da espécie”.
O que temos pela frente é o reflexo de uma obra que é toda uma
existência, vorazmente coerente com todos os seus meandros, não
ocultando falhas, decepções, hesitações, esgotando-se na
diversidade.
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da
humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de
verdadeira poesia.
Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) situa-se como um dos maiores
beneficiários do Modernismo no Brasil. Integrante do grupo que,
em Minas Gerais, fundaria A Revista (1925) – publicação
que, a exemplo das inúmeras não somente do Modernismo, mas de
todo o período convulsivo das vanguardas, teria curtíssima
duração, em seu caso apenas três números –, o poeta não convive
diretamente com a explosão do movimento, vindo a deparar-se,
sobretudo no instante em que edita o primeiro livro, Alguma
poesia (1930), com seu momento mais desafiador, quando se
acumulam os destroços da tradição e se impõe a necessidade de
contribuição estética mais substanciosa da ruptura.
E aqui faz
bem lembrar a correta avaliação de Antonio Houaiss ao dizer que
coube a Drummond,
mais do
que a ninguém dentre os modernistas – incluindo os próprios
Mário de Andrade e Manuel Bandeira – a função de cristalizador
do movimento, pois nele é que a poesia brasileira contemporânea
atingiria a plenitude moderna, de que derivariam (no melhor
sentido) os melhores poetas subseqüentes – moderna no sentido de
antenação com a problemática do mundo moderno, na sua
multifacetada e aparentemente caótica dispersão e concentração
planetizadas.
Embora a
Semana de Arte Moderna (São Paulo, 13 a 17 de 1922) seja o marco
promulgador das idéias do Modernismo, este já se prepara – em um
misto de inquietação e insatisfação, no dizer de Wilson Martins
– somando, de pelo menos meia década antes, uma série de
acontecimentos, internos e externos, de que são exemplos o
insustentável anacronismo do Parnasianismo e o fervilhamento de
idéias européias, sobretudo aquelas oriundas de Marinetti e
Apollinaire. O referido crítico observa ainda:
Mais do
que uma simples escola literária ou, mesmo, um período da
vida intelectual, o Modernismo foi, no meu entender, toda uma
época da vida brasileira, inscrito num largo processo social
e histórico, fonte e resultado de transformações que
extravasaram largamente dos seus limites estéticos. A sociedade
nova, aqui e alhures, correspondia, necessariamente, literatura
nova – eis o que não se cansaram de repetir, desde o primeiro
instante, todos os teóricos e artistas.
A obsessão
por uma literatura nova, por inevitável e sempre benéfica que
seja a busca de algo que subverta os parâmetros em voga, gerou
um certo atropelo estético que, supostamente, deveria ser
equacionado pelas gerações subseqüentes. É natural que ocorra
isto, pela própria convulsão que caracteriza o choque entre
tradição e ruptura. No caso brasileiro, o dilema central é que
praticamente não havia uma tradição, de maneira que a ruptura
teria que desempenhar muito mais um papel de carta de fundação,
e justamente em um território pautado por vícios oriundos do
período colonial que se multiplicavam como um cancro. Recorda
Ivan Junqueira:
O
movimento modernista de 1922 tinha diante de si uma paisagem de
fato desoladora: a do triunfo parnasiano, isto é, o triunfo da
fôrma sobre a forma. E isso porque deitara suas raízes nas
entranhas de um ideário estético inteiramente importado. E além
de importado, empoeirado, gasto, cediço.
Tanto é
verdade que no resto do continente americano já ocorrera a
entrada do modernismo, considerando aqueles preceitos
mínimos que podem ligar uma instância a outra. Na América
Hispânica, por exemplo, quando surge o período das vanguardas
que, cronologicamente corresponde ao Modernismo brasileiro, já é
plenamente possível falar de ruptura em contraste com a
tradição. O atraso nunca foi vencido de todo, de tal maneira que
o adjetivo tardio persegue a história da literatura
brasileira – e não somente da literatura, é bom que se diga – de
maneiras as mais impróprias possíveis. Dentro deste espírito,
quero reproduzir um pouco mais das palavras de Ivan Junqueira:
O furor
iconoclástico do grupo de 22 era tamanho e tão difuso que seus
integrantes chegaram a proclamar que não sabiam bem o que
queriam, mas sabiam perfeitamente o que não queriam. É claro
que, nessas circunstâncias, o movimento modernista incorreu numa
série de rupturas que não se justificavam em absoluto, mas que
afinal tiveram lá sua utilidade, pois, na pior das hipóteses,
conseguiram tirar nossa literatura do marasmo e da subserviência
em que até então se encontrava. A maior prova de que tais abusos
não procediam é que os beneficiários do modernismo de 1922 não
foram propriamente seus líderes, e sim aqueles que os apoiaram a
distância ou, mais ainda, os que começaram a produzir alguns
anos mais tarde.
Este que é
considerado pela crítica como uma segunda fase do Modernismo
brasileiro é o momento em que surge a obra de Carlos Drummond de
Andrade, marcada pela polêmica já desde o princípio, com a
publicação do poema “No meio do caminho” na Revista de
Antropofagia (São Paulo, julho de 1928). Talvez por
facilidade da crítica em tratar-lhe a obra esquematicamente ou
por uma astúcia que implica em sua redução, Drummond se viu
reduzido a um poeta de fases, sem que jamais tenha ficado bem
explicado onde o lírico se deixa substituir pelo engajado, em
que momento o esteticismo abre passo para algum eventual
descuido com a linguagem ou então se decide a ser apenas
compulsivamente erótico – aspectos ou variações que,
considerados os que de fato se verificaram, jamais se deram em
isolado. A distribuição de fases ganha um novo alento com a
carta de defunção do poeta decretada por todos aqueles que
consideram o auge de sua produção poética os 10 livros
encerrados sob o título Reunião (1969). Excessiva
benevolência da crítica, segundo se pode depreender da afirmação
de Wilson Martins, ao afirmar que,
em 1945,
já o poeta se havia completado em sua natureza profunda; a
partir de então, há um aperfeiçoamento poético e um certo
enriquecimento da inspiração, mas nada de realmente novo seria
acrescentado à sua essência.
É imenso o
risco de tal avaliação ser interpretada como terminal no que diz
respeito às possibilidades de desdobramento de uma poética. Além
do que a mesma se apega a dois aspectos que são plenamente
aplicáveis à leitura crítica da obra dos mais notáveis
representantes de quaisquer correntes artísticas em toda a
história da humanidade: técnica e inspiração. Carlos Drummond de
Andrade foi essencialmente um poeta de seu tempo. Não o
determinou propriamente, nem se deixou vitimar por ele. Foi mais
essencialmente o seu cronista e esteticamente distinguiu-se por
haver incorporado de maneira magistral técnicas múltiplas,
diversas entre si, pautado por oscilações naturais, de tal
maneira que, no dizer de Houaiss, por mais variações que se
observe, emerge uma obra que deve ser percebida em sua condição
totalizante, uma obra que “vale essencialmente como um unipoema,
ou melhor, como um universo, construído num poetar de várias
décadas, poetar que deve ter sido, que foi condição sem a qual
uma vida não teria sentido”.
A idéia de fase sugere o entendimento da obra como sendo
heterogênea, de maneira que não me parece relevante, portanto,
abordar a obra de Drummond, sob prismas redutores, como se
estivéssemos a instalar quebra-molas no dorso da história.
A leitura
do diário de Carlos Drummond de Andrade ajuda em muito a
compreensão daquilo que José Maria Cançado identifica como um
paradoxo e uma condição, ao dizer que “esse homem que parecia
não pertencer a nada, dessemelhante absoluto, parecia também,
por isso mesmo, condenado a participar de tudo”.
As anotações sistemáticas em forma de um diário têm início em
1943, quando Drummond já havia publicado os quatro primeiros
livros, e o acompanham até 1977. Constituem uma fonte básica de
convívio com este personagem tão múltiplo, segundo o qual viria
a dizer Cançado, no mesmo livro, ser “dez, vinte, oitenta
sujeitos diferentes, cada um deles com delineamentos,
delicadezas e formas próprias de conquista e troca amorosa”.
Esta abundância ou complexidade existencial, que naturalmente ia
mais à frente do aspecto amoroso evocado por seu biógrafo, em
parte se identifica com o panorama algo intrincado da época que
lhe tocou viver, considerando os conflitos naturais de um país
em sua entrada na modernidade, os embaraços políticos e os
atropelos da vida pessoal. O próprio poeta reflete em uma
passagem do diário:
Há uma
contradição insolúvel entre minhas idéias ou o que suponho
minhas idéias, e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e
minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e
sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes
dura, senão impiedosa.
Embora o
ponto manifesto dessa contradição diga respeito ao engajamento
do poeta na ação política daquele momento, localiza-se aí um
aspecto fundamental da personalidade de Drummond, expresso na
indagação: “como posso convencer a outros, se não me convenço a
mim mesmo?” Temos um conflito que extrapola a delimitação
política, dilema que fez com que o poeta se retorcesse a vida
inteira na impetuosidade dos inúmeros confrontos com sua
natureza.
Não à toa, quando prepara uma antologia pessoal de sua poesia,
dispõe os poemas não na usual ordem cronológica de publicação
dos livros mas agrupados tematicamente, abrindo o livro sob a
égide de “um eu todo retorcido”.
Fato é que
Drummond se contorcia em perene conflito entre o próprio caráter
e o temperamento dos fatos à sua volta. Em momento algum, no
entanto, foi vítima de uma indecisão, pois de uma maneira ou de
outra entregava-se por inteiro àquilo em que acreditava. Neste
sentido, foi homem de uma integridade abismal, pouco
compreendida ou aceita em um meio sempre afeito a moderações de
toda ordem. Não era um homem alheio a seu tempo, como João
Cabral de Melo Neto certa vez aludiu, indignado com o aparente
desinteresse de Drummond “pelo que estava acontecendo em termos
de poesia na Europa”. Evidente que desinteresse não quer dizer
desinformação. Drummond não era o alheio à maneira de um
Jorge Luis Borges, por exemplo. Sua natureza sempre colidente
consigo mesma é que o conduziu por caminhos que não se limitavam
a contornos literários, imprimindo em sua aventura um feitio
tanto mais amplo quanto diverso e não menos controverso.
***
A crítica
literária possui seus vícios, naturalmente, e um deles diz
respeito ao padrão de comportamento por ela atribuído ao poeta.
José Maria Cançado dá no alvo ao perceber que a poesia do autor
de O sentimento do mundo vem “às rajadas daquele ponto
negro, onde se encontra o próprio Drummond comendo sacrificial e
iluminadoramente o próprio fígado”. Não se inclinava por uma
sedução fácil das vanguardas, o que não quer dizer que as
desconhecesse. João Cabral não percebia uma pequena distinção:
Drummond e Manuel Bandeira – sua ressalva também envolvia este
outro poeta – não tinham a preocupação de fundar uma voz
própria, definir uma poética, pois se encontram entre aqueles
raros casos de poetas que já nascem prontos. Olhavam à volta com
outras preocupações, portanto. Apenas isto, porém distantes de
quaisquer temores de cristalização estética e menos ainda de uma
satisfação plena ante o que a experiência de vida ia
descortinando a cada momento.
Na série
de entrevistas radiofônicas realizada por Lya Cavalcanti,
Drummond recorda o período de edição de A Revista – um
dos principais momentos de repercussão do Modernismo fora do
eixo São Paulo/Rio de Janeiro –, nos seguintes termos:
Fui, e não
me custa dizê-lo, um misto de agitador e gaiato, com tempo
disponível para fazer uma espécie de modernismo estridente, que
irritava mais do que convencia, ou antes, não convencia coisa
alguma.
Esta
passagem ajuda a engatar três perspectivas dadas como distintas
entre si: um Drummond alheio a seu tempo, outro que questionava
os jeitos usuais de adaptação e um terceiro que rejeitava
qualquer forma de subordinação. Tais delineamentos não atendiam
à voracidade existencial de Drummond, basta pensar no que diria
à mesma Lya Cavalcanti:
O que há
de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a
comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à
distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para
isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos
amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de
Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua
vida são resgatadas pela música de seus versos.
Também se
pode recorrer à síntese do poeta, bastante sugestiva, que traça
um de seus tradutores para o espanhol, o mexicano Francisco
Cervantes, ao destacar que Carlos Drummond de Andrade
enfrenta la realidad, pasando por una sensación populista, muy
de guerra mundial, para llegar al conocimiento de que uno pasa
con las manos vacías por las estancias de la existencia y que,
al hacer una reconsideración de ésta, descubre otra vez lo
elemental, lo fundamental de los asuntos sencillos, para
concluir que el habla llana encierra en ocasiones maneras más
hermosos, de uso poético, que el refinamiento. La trayectoria de
una obra así de sólida reviste una apariencia de juguetona
sensatez, de supervivencia sin compromiso, pero sin ocultarse al
mundo dentro de una pecera.
Seu
humanismo era verdadeiramente possuído por esses engodos
existenciais, de tal maneira que até mesmo o cinismo, a visão
corrosiva, o humor não se encaixavam na poética senão como uma
zona de tensão, tablado onde por vezes confundir era a melhor
estratégia para alcançar alguma compreensão. Drummond não
confundiu somente a si mesmo, mas a todos os seus críticos. E
não o fazia, diga-se melhor, de forma artificiosa, mas antes,
como afirma Fábio Lucas, retratando “a crise do sujeito no
ritual da modernidade, seu isolamento e sua solidão”.
E a representação desse conflito evidentemente se dá de modo
múltiplo, seja do ponto de vista da linguagem – não à toa
inúmeros poemas assumem a forma velada de uma crônica e
vice-versa – ou desse caudal de vozes que muitos críticos
confundem com mera superposição de fases. Diria que este é um
dos notáveis ardis da poética de Drummond, porém uma astúcia que
essencialmente reflete essa “consciência armada por severo senso
de negatividade e inadequação do mundo”,
traço fundamental do poeta que salienta um outro estudioso de
sua obra, Davi Arrigucci Jr.
Ainda
seguindo as pistas preciosas deste crítico, temos que mesmo o
aspecto da desilusão – outra recorrência na abordagem da obra do
autor de Sentimento do mundo – não deve ser interpretado
de maneira isolada, sobretudo porque ele também se reveste de
oscilações que, por vezes, tocam o oposto. Arrigucci Jr.
atentamente observa que “não se trata de ‘desilusão’, mas de um
verdadeiro pensamento poético sobre nossa condição, o que não se
deixa reduzir aos conceitos abstratos de uma filosofia
existencial, mas é um sentimento refletido do mundo articulado
em palavras, em imagens, em poemas”.
E cabe insistir na inexistência de sobreposição de fases, pois
mesmo a relação entre épico e lírico é antes o reflexo de
contradições internas do que propriamente flutuações de
linguagem. Este “misto de canto épico com acento lírico”
que encontramos na poética de Drummond não se verifica de
maneira estratificada, mas sim como uma íntima controvérsia que
reflete justamente este eu retorcido – não apenas do
poeta, claro está – já aqui evocado.
Evidente
que a desilusão pessoal existiu e se manifestou em graus de
intensidade distintos em momentos diversos, de maneira que
negá-la seria desconhecer passagens fundamentais da biografia do
poeta. Contudo, sua dimensão é mais profunda e importa sobretudo
por esta lúcida abordagem de Geneton Moraes Neto:
Pouquíssimos criadores terão conseguido, em qualquer época,
transformar em palavras de beleza tão intensa o sentimento de
permanente “inadaptação ao mundo”, o espanto diante do absurdo
da vida, a frustração cívica, a certeza de que tudo é um
“sistema de erros”, um “vácuo atormentado”, “um teatro de
injustiças e ferocidades”. Desse sentimento, desse espanto,
dessa frustração, dessa certeza, Drummond extraiu uma poesia
paradoxalmente solidária, perplexa, esperançosa.
Vale
insistir, portanto: Carlos Drummond de Andrade foi certamente o
poeta que, no Brasil, mais soube dialogar com a multiplicidade
voraz da época que lhe tocou viver, diálogo nem sempre marcado
por conquistas, inclusive porque a vitória a todo custo é uma
das marcas da debilidade. Sua conquista maior é a da freqüente e
incansável irradiação da dúvida. Tratou ironicamente e até com
violenta náusea a presunção de todos aqueles que sentiram -se
com respostas a dar ao mundo, e o fez justamente revelando
inquietudes e desilusões, identificando-se com o mundo à sua
volta, errando sem sucumbir ao erro, indo e vindo em todos os
matizes da sensibilidade humana, e sempre em altíssima expressão
poética.
Talvez
pareça controverso dizer que o poeta tenha vivido intensamente
cada momento, pelo que nos pareceu sempre tão cético,
discordante, desiludido. O fato é que nele a experimentação era
tanto existencial quanto formal, o que requer diálogo intenso
consigo mesmo e com o que lhe é – aparentemente – exterior. Não
se pode descrer antes de haver crido. O estar intensamente em
algo possui um caráter muito mais amplo do que geralmente
percebemos. O próprio Drummond alude a isto em um poema ao dizer
que “o esquecimento ainda é memória”. Por mais que o mundo se
inicie pela afirmação da realidade, este somente se desdobra
ante o questionamento da própria alegação. A intensidade da
criação vem justamente de uma condição ulterior de harmonização
dos contrastes, dos opostos. Fábio Lucas nos ajuda a situar
melhor a questão:
Carlos
Drummond de Andrade tornou-se mestre da figuração engenhosa,
caprichadamente lúdica do universo, principalmente no campo
formal. Na esfera íntima, conteudística, freqüentemente
manifesta uma paixão dramática, que puxa para o aspecto irônico
ou desencantado de avaliação da existência. Daí o seu texto
pender para o jogo da criação pura (retratação de uma fantasia
original, autônoma, pessoal) ou para o artifício da
representação (modo de buscar uma similitude, direta ou
indiretamente, entre o signo e o que ele representa).
A
estratégia – se cabe o termo – era a do risco permanente, porém
o pêndulo não era artificioso. Em um de seus “apontamentos
literários”, o próprio Drummond ironiza: “Fazia sonetos tão
lindos, mas tão lindos, que ninguém percebia que não eram
sonetos”.
Talvez se pudesse dizer dele mesmo que sua estratégia era tão
envolvente que ninguém percebia que não era apenas uma
estratégia. Drummond encarnava como poucos o dilema do
esfacelamento do ser praticamente imposto pela voragem de um
século em que a experimentação converteu-se em cobaia de si
mesma, ou seja, havia um emaranhado incontrolável de exigências
participativas que não somente cegou inúmeras esperanças como
principalmente gerou individualismos controversos que desaguaram
em regimes de exceção e um caudal inoperante de desencantamento.
Sob este aspecto, Drummond foi o grande sobrevivente do século,
e é até aceitável que tenha despertado inúmeros desafetos que
apostaram em outros não-sobreviventes.
Carlos
Drummond de Andrade era intensamente anti-dogmático. Mesmo se
dissesse de si, como o fez aos 60 anos, que havia alcançado uma
“serenidade ascética”, no minuto seguinte já cometia uma
imprudência juvenil. Rejeitava até a si mesmo, para não
confundir-se com um dogma de qualquer natureza. Deu grandes
pistas neste sentido, mas a crítica só o conseguia perceber
literariamente. De volta ao conflito entre os territórios épico
e lírico, ele próprio provocava:
Não há
tempo de epopéia, reclamando poetas aptos para interpretá-los.
Há – ou não há – poetas épicos, capazes de extrair seu alimento
do contemporâneo mais álgido, como do passado, ou do futuro.
Eis uma
evacuação territorial do epos, em que o poeta é sempre um
navegador de si mesmo e de seu tempo, esteja em busca do passado
ou de volta ao futuro. E ele próprio acentuava o assunto:
Que fazer
de nossos possíveis dons literários, entregues à nossa própria
polícia e julgamento? O público não nos decifra: apóia ou
despreza, simplesmente. A bolsa de valores intelectuais é
emotiva e calculista, como todas as bolsas. Hoje temos talento;
amanhã não. Éramos bons poetas na circunstância tal, mas, já
agora estamos com o papo cheio de vento; somos demasiado
herméticos; demasiado vulgares; nosso individualismo nos perde;
ou nosso socialismo; chegamos a dois passos da Igreja; o que nos
falta é o sentimento de Deus; nossa prosa é lírica, nossos
versos são prosaicos.
É
impressionante a lucidez de Drummond nesta passagem de um de
seus apontamentos literários, onde aduz, referindo-se ao que
deve esperar de si um jovem poeta:
A vocação
tem de lutar contra o próximo, que tradicionalmente a ignora.
Tem de achar-se a si mesma, na confusão dos modelos, estáticos
ou insinuantes, que constituem o museu da literatura. E por todo
o sempre continuará, solitário, a interrogar-se e a corrigir-se,
não esperando que lhe venha conforto exterior.
Diante
disto, impossível imaginar que este poeta tenha prestado tributo
a alguma escola literária ou argumentação política. Viveu
essencialmente um conflito ulterior, e a ele entregou-se com
tamanha intensidade que, mesmo ocasionalmente desagradando a
expectativas de todos os matizes, foi íntegro, honesto consigo
mesmo, honrado, de uma maneira que pouco se encontra no mundo
fugidio das letras.
Quando se
comemorou o cinqüentenário do poeta, Emílio Moura recordou os
encontros nos anos 20, e tocou no aspecto sempre controverso das
influências: “misturávamos Stendhal com Anatole, Pascal com
Bergson, Antero com Rimbaud, Ibsen com Maeterlink”.
Ao lado de Drummond, Emílio Moura viria a fundar, juntamente com
Martins de Almeida e Gregoriano Cañedo, uma publicação
intitulada A Revista, de decidida filiação ao Modernismo.
Este grupo de escritores, que incluía ainda nomes como Pedro
Nava, Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, dentre
outros, a exemplo do que passava no resto do país, tinha uma
educação literária acentuadamente francesa, ocasionalmente
mesclada a vozes inglesas e portuguesas, ou seja, sempre
européias. Era comum os jovens poetas de Belo Horizonte
adquirirem exemplares das edições do Mercure de France,
da N.R.F. e da Calman-Lévy. Para além do ambiente
francês, cada um deles ia naturalmente buscando outras opções
que lhes ajudassem a forjar uma melhor definição tanto ética
quanto estética. No caso de Drummond, é curioso que tenha
despertado interesse por dois portugueses, Albino Forjaz de
Sampaio (1884-1949) e António Ferro (1895-1956). Esta
aproximação nunca foi devidamente explorada, mas certamente
influíu na maneira como o intenso niilismo de Drummond se
mesclava com o humor, certo cinismo e mesmo as posturas
anti-clericais. Fato é que um livro como Palavras cínicas
(1916), de Albino Forjaz de Sampaio, provocou um grande impacto
em Drummond, o mesmo ocorrendo com a presença de António Ferro
em Belo Horizonte, quando este se apresentou, em 1923, no Teatro
Municipal, tocando bumbo e disparando sua propaganda poética: “A
minha época sou eu”. Os dois poetas cultivavam um gênero caro ao
poeta brasileiro: o aforismo. Em Forjaz de Sampaio encontramos:
A águia
que rói os fígados a Prometeu não é outra senão a Dor. Bendita
seja a Dor que tiraniza e leva ao crime.
Tudo
mentira, tudo ilusão. Quem sabe lá quanta podridão levedou para
dar uma rosa, para abrir um malmequer, e para florir uma chaga?
Que as chagas o que são senão rubras e esquisitas flores?
Abre o
crânio e vê se distingues a alma de Dante da alma de Caim, a de
Inocêncio III da do galego ali da esquina.
Por outro
lado, vemos na personagem central da novela Leviana, de
António Ferro passagens como:
De hoje em
diante, passo a mandar-te folhas de papel em branco, com a minha
assinatura no fim. Enche-as como entenderes. É que eu não sinto
o que digo, mas sinto sempre o que tu me dizes.
[…]
Marco,
todos os dias comigo, um rendez-vous ao espelho. Falto sempre. A
minha imagem, ali à espera, e eu, muito longe, contigo, nos teus
braços.
António
Ferro inclusive foi participante da Semana de Arte Moderna e
publicou, na revista modernista de São Paulo, Klaxon, o
manifesto “Nós”, lançado em seu país no ano anterior, 1921.
Considerado um dos pais do modernismo em Portugal, dirigiu a
revista Orpheu, e foi intelectual ligado ao Estado Novo
português, dirigindo o Secretariado de Propaganda Nacional do
governo Salazar. Albino Forjaz de Sampaio também deu
contribuição a uma política de espírito acentuadamente
nacionalista criada por Ferro. De alguma maneira, os aspectos
declaradamente transgressores que envolviam cada um deles
exerceu algum crédito na formação do jovem poeta brasileiro. O
humor em Drummond está ligado mais à ironia do que à comicidade,
ironia que, por sua vez, se atém menos à zombaria do que a uma
oposição aos valores sociais vigentes. Daí que seu ceticismo não
possa jamais ser entendido como uma fase, como algo determinado
por uma desilusão de momento. Ele próprio aclararia em uma
entrevista:
Eu sou uma
pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum
valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a
vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e
termina, acabou, não tem nada.
Evidente
que naquela mescla de autores lidos nos anos 20 – Drummond se
revelaria sempre um leitor voraz, mas também um apaixonado pelo
cinema – os portugueses mencionados não foram mais prestigiados
que os demais, embora seu biógrafo tenha destacado o impacto do
diálogo de Drummond com os dois poetas. Ajuda a
fortalecer o que defendo um trecho da nota por ocasião da morte
de Erik Satie, publicado em A Revista # 3, onde lemos:
Satie
deixou uma técnica e uma expressão, o que é tão raro e
perturbador. Foi um criador sem messianismo, porque irônico. Em
muitas de suas obras sua personalidade estará oculta, porém
nunca distante. E para compreendê-lo há que dar-lhe a volta
toda. Chegou a uma simplicidade tal de forma que os
inexperientes e superficiais o acusaram de empobrecimento.
Segue
traçando um paralelo entre a liberdade e suas limitações, o que
está estreitamente ligado à conquista do verso livre.
Rigorosamente Drummond está conversando consigo mesmo, e Satie
torna-se então um valioso cúmplice dessa reflexão. Talvez a
crítica tenha deixado escapar estes dados, tanto pelo aspecto
distrital, acadêmico, quanto por certa cegueira hierárquica
baseada no artificial prestígio literário. A íntima ligação de
Drummond com o cinema, por exemplo, poderia ter sido muito
melhor explorada e inclusive agendada como realce nas
entrevistas tão cobiçadas pela imprensa com o poeta. Igualmente
seria possível traçar paralelos com autores traduzidos por
Drummond, de que são exemplos Choderlos de Laclos, Honoré de
Balzac, Marcel Proust, Federico García Lorca e Molière.
A maneira
como Drummond fala de Erik Satie é impressionante, quase como se
estivesse a antever o caminho que ele próprio deveria seguir, ou
melhor, que de fato acabou trilhando. Mesmo a atenção que tinha
pelo Modernismo, o atrativo da Semana de Arte Moderna, de 1922,
era quando menos ambígua, ambigüidade reforçada pela
correspondência com Mário de Andrade que, já em 1928, lhe dizia
coisas como
…publico o
Macunaíma que já está feito e não quero mais saber de
brasileirismo de estandarte. Isso tudo conto só para você porque
afinal das contas reconheço a utilidade do estandarte. Meu
espírito é que é por demais livre pra acreditar no estandarte.
E Mário
escrevera isto para Drummond justamente porque este lhe havia
mostrado os originais de um livro que pretendia publicar cujo
título era Minha terra tem palmeiras, referência direta à
“Canção de exílio”, poema de Gonçalves Dias, de profundo apelo
nacionalista. Na seqüência desta carta diria ainda:
Me parece
um pouco tardio pra você ir na onda. Tanto mais que o espírito
individualistamente contemplativo e observador de você, bem
livre, não combina com isto.
Drummond
acabaria desistindo não somente do título, mas de todo o livro,
e sua estréia na poesia viria somente dois anos depois, com
Alguma poesia. Estréia em que já se vislumbra a condição
heterodoxa de toda grande poesia e mesmo o relativo tributo que
paga a certas características do Modernismo, dentre elas o
poema-piada e a busca de uma brasilidade, uma leitura conjunta
de sua obra, tempos depois, tornará possível entender que não
seguiam tão à risca as ortodoxias do movimento. A expressão
jocosa logo se revelaria corrosiva em sua raiz, fruto mais de um
desconforto, de uma dissonância, de uma acentuação de
contradições do que propriamente de uma tirada espirituosa
destinada a alegrar ou libertar o espírito. Por sua vez, a
brasilidade em Drummond não foi construída, não se deu como
resultado de um esforço, de um programa, tendo havido bem mais o
que se possa chamar de revelação, de identificação, de
descoberta mútua, em que não ficariam de fora – nem haveria
motivo para tanto – os entendimentos com poéticas que
expressavam outras vertentes. Mesmo a deliberação por uma
temática urbana que fosse a expressão da modernidade se vê ali
mesclada com a mesmice sem ressonância de uma cidadezinha
qualquer, propiciando desde já leituras infinitas do cotidiano.
O moderno não perde sua condição de decadente e utópico, a um só
tempo. E Drummond é absolutamente moderno exatamente por
isto.
Há,
evidentemente, uma conexão ininterrupta que relaciona toda a
obra de Drummond – inclusive a prosa, embora esta não esteja
sendo tratada na presente edição –, que a unifica acima de todas
as perspectivas de fragmentá-la em fases, em face do que tão bem
observou Antonio Houaiss, de que se trata de toda uma vida,
“inclusive no que esta encerra de defraudações e vacilações, de
ilusões e decepções, de atritos e de lubricidades”.
O biográfico, portanto, não é penoso, um embaraço a ser evitado,
mas antes elemento fundamental para a concretização – e não
planificação, programação – de uma obra. E este conflito nunca
evitado, esta aceitação de um mundo encharcado de oscilações,
relevante mais pelos erros do que pelos acertos, onde
naturalmente a complexidade de linguagens que o evidenciem não
se distingue do comportamento – seja individual ou social –, dos
abismos dialéticos da presença do ser no tempo; este conflito
que o poeta não dissocia de seus dissabores ou alegrias, da
voracidade de suas leituras ou da intensidade colidente de seu
viver; este conflito perene e abrangente que encontramos em toda
a obra de Drummond é o que o torna o mais complexo e cristalino
dos poetas brasileiros. E refiro-me a complexo no sentido de que
não me parece tenha sido satisfatoriamente compreendida essa
condição cósmica de sua poética – termo aqui entendido como algo
comum a todos os homens, uma representação do mundo que o revele
por inteiro em cada uma de suas partículas, em cada um de nós.
Carlos
Drummond de Andrade era um poeta entranhado em seu próprio tempo
e que a todo momento punha em risco tal conexão, certo – ao
menos disto – de que a poesia, qualquer que seja a forma em que
se manifeste, não tem por fundo senão a própria existência
humana. Antonio Houaiss estabelece como nenhum outro crítico
esta relação, ao dizer do autor de Claro enigma:
É poeta do
seu tempo no fato de que a matéria-prima do cotidiano se lhe
aflora a todo instante, não havendo como distinguir, quase
sempre, o que é deliberadamente circunstancial – felizmente
salvo nas duas violas-de-bolso – do que é o contingente
temporal, como pressão motivadora imediata de certos instantes
do seu poetar; é poeta do seu tempo no fato de que eleva ao ou
insere no seu poetar todas as entidades do seu real objetivo e
subjetivo, desclassificando (mas usando deles) os assuntos,
motivos, temas, tópicos antes admitidos em poética, e
classificando os até então proscritos, construindo assim um
poliedro poético de milhares de faces, algumas muito iluminadas
por retornos no seu fazer criador, sempre a uma nova luz; é
poeta do seu tempo no fato de que é intrinsecamente avesso,
impotente, a dissociar assuntos, motivos, temas, tópicos entre
si ou uns dos outros; porque sua poesia, não sendo fazer poético
intencionalmente de objetos que venham a funcionar por si mesmos
como coisas com virtualidades própria ou auto-compensadas,
reflete sempre um estar-no-mundo que se faz rejeitar-o-mundo
para implicitamente propor-um-novo-mundo, estar-no-mundo que,
mesmo quando atado a uma particularidade do mundo, é sempre,
concomitantemente, uma antenação com todos os momentos e
aspectos do mundo; […]
Este
meter-se na matéria do mundo é o que torna Drummond ao menos o
mais intrigante dos poetas brasileiros. Evidente que quando uma
obra é tão abarcadora, dali se pode extrair hóstias para todo
credo. Em língua portuguesa é o que ocorre com Fernando Pessoa,
e a referência aqui não vai além do fato de que aspectos
controversos, de vida e obra, nos dois autores, acabaram por
gerar uma vastíssima proliferação de peritos que se empenham em
refazer tudo, à sua maneira, desfigurando o objeto da
vistoria e o reapresentando, na comarca em que agem, como um
modelo novo, sempre curiosamente restritivo. Talvez por esta
razão tenha se tornado um lugar-comum abordar a poética de
Carlos Drummond de Andrade como um compósito de diversas fases.
Embora
tenha rejeitado a vida inteira o epíteto de maior poeta
brasileiro, esta era a consideração geral acerca de sua obra,
condição estimada desde muito cedo e que levou Otto Lara Rezende
a declarar que “só Machado de Assis terá tido no Brasil do
passado uma presença tão intensa quanto foi, nesse século, a de
Carlos Drummond de Andrade”.
Ainda mais valiosa a abordagem de Luciana Stegagno-Picchio ao
referir-se a ele como
um dos
maiores poetas do Brasil: sem a inturgescência de Castro Alves,
quotidiano como [Manuel] Bandeira mas sem o seu desprendimento
sorridente, pessimista mas participante, esquivo mas
humaníssimo; e com uma habilidade verbal, com uma sabedoria e
criatividade poética só encontráveis contemporaneamente em
poetas como João Cabral ou Murilo Mendes.
É fato que
o poeta tornou-se paradigmático em muitas instâncias, não
deixando de fora as injúrias relativas ao seu pessimismo, ao
comportamento reservado, o que resultou em inúmeras críticas
claramente oportunistas, quase que da mesma ordem dos elogios de
ocasião. Paralelo a tudo isto, decorrências naturais na vida de
um criador da importância de Drummond, crescia um prestígio
internacional, verificado nas traduções, já nos anos 60, para
idiomas como o alemão, o sueco, o inglês e o tcheco. Uma década
antes o poeta já era traduzido para o espanhol, em antologias –
coletivas e individuais – que circulavam em países como
Argentina, Espanha, Bolívia e Chile. O cubano Helio Orovio, ao
organizar e traduzir uma antologia da poesia brasileira do
século XX, destacou:
Carlos Drummond de Andrade crea una poesía personalísima, que lo
sitúa entre los más altos cultivadores del verso de este siglo,
a escala mundial. Desde la aparición, en 1930, de su libro
Alguma poesia, ha ido dando un testimonio admirable de su
ser en el tiempo y el espacio, con evidentes referencias
autobiográficas, en estilo desenfadado, y con inigualable
energía verbal.
De
regresso a esta zona de tensão entre épico e lírico – Fábio
Lucas observa que, “para quem lê toda a obra de Drummond, sente
nela um misto de canto épico com acento lírico”
–, me parece interessante evocar algumas vozes na poesia
hispano-americana em que se verifique o mesmo aspecto, e neste
caso é oportuna a lembrança de nomes como Humberto
Díaz-Casanueva (Chile, 1907-1992), Pablo Antonio Cuadra
(Nicarágua, 1912-2002), e César Dávila Andrade (Equador,
1918-1967), todos eles, assim como o brasileiro, vozes
fundamentais no descortinar e desdobrar-se do grande momento
histórico das vanguardas no século XX. A exemplo de muitos de
seus pares, e em conseqüência da própria época, estes poetas
absorveram amplamente as tendências com que se expressava a
vanguarda – Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo etc. –,
cada um particularizando tal absorção sem submeter-se ao
programa de nenhuma delas. É possível apontar preferências,
afinidades, variações entre o declarado e o oculto, porém nunca
sujeitar-lhes a obra a nenhum dos movimentos ou escolas. Menos
cauteloso que Drummond na manifestação de suas identificações, o
chileno Humberto Díaz-Casanueva jamais esquivou-se da revelação
do impacto que lhe provocou, por exemplo, o Surrealismo.
Sobre este poeta diria Fernand Verhesen:
Toda la poesía de Díaz-Casanueva oscila entre un
desmantelamiento trágico, un impulso irresistible hacia la Nada
[…] y al mismo tiempo, una creación constante del Ser. El poema
es continuamente ruptura, dislocación, caída vertiginosa, sondeo
de los orígenes, y ascención súbita, discontinua pero
afirmativa, de la realidade del Ser, del devenir.
Seria
certamente valioso um paralelo entre estes dois poetas a partir
da interferência do biográfico na obra de cada um, o embate
entre um subjetivismo extenuante e a busca da otridad, de
uma voz comum a todos que possa expressar o drama humano, cuja
resultante dá a ambos aquilo que Ana María del Re constata em
relação à poesia do chileno: “hay que admitir sin reservas la
complejidad formal y semántica de esta escritura, como también
su densidad, rigor y trascendencia”.
Igual tensão destaca Guillermo Sucre, referindo-se apenas a
Díaz-Casanueva, ao situar “un continuo debate entre el poeta de
la duda y la desolación […] y el poeta de la fe”
– ainda que no caso de Drummond a fé tenha se mostrado sempre de
forma retorcida. O lamentável é que não se disponha até o
presente de estudos comparativos que avaliem a voltagem
dialética vertiginosa nos dois poetas.
Dentro de
um mesmo ambiente de absorção das experiências e derivações das
vanguardas, mencionei o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra e o
equatoriano César Dávila Andrade, dois poetas imensamente
distintos entre si, considerando que o primeiro encontrou forças
interiores para resistir a todas as adversidades, enquanto que o
segundo suicidou-se aos 49 anos de idade. Importa aqui,
destacadamente, a maneira como lidaram com o mito, dentro dessa
percussão constante de espectros de ordem lírica e épica.
Seguindo as pistas deixadas por Platão, em Fedon o del alma,
de que o poeta deve “inventar mitos”, ambos se embrenharam no
imaginário indígena que era a base da cultura de seus países.
Sem discordar deles ou de Platão, Drummond tratou de mergulhar
não em uma mitologia indígena mas sim no abismo profundamente
indigesto da relação do homem com seu tempo, avançando em tal
abismo a ponto de desmitificá-lo.
Em
entrevista que fiz a Pablo Antonio Cuadra ele se refere em dois
momentos a Drummond, inicialmente quando lhe indaguei acerca das
razões que levaram não somente a sua obra mas praticamente de
toda uma geração na Nicarágua a escapar a la fiebre política,
al cáncer de un patriotismo rancio, de un didactismo sutil e
inexpresivo, quando então me responde o poeta:
Creo que el hecho de coincidir la necesidad de crear una
literatura nacional con la irresistible atracción cosmopolita de
las vanguardias nos permitió un equilibrio entre la tentación de
la caverna y la lontananza. Añadiría otro gran peso en la
balanza: a pesar de nuestros ataques, éramos herederos de Darío,
de su lección antiprovinciana de universalidad. Y otra
importante ayuda: la ironía, ese alejamiento del poeta del poema
que permite el humor. No en balde nuestra generación tuvo un
genial maestro que cantó por todos nosotros, Drummond de
Andrade: ¡Carlitos Chaplin!
Ao final desta mesma entrevista, Pablo Antonio Cuadra destaca a
importância da obra de Drummond e indaga: “¿cuántas ediciones de
su obra hay en español?”
Por sua
vez, porém igualmente em uma entrevista, Drummond menciona
conversa que teve com Chico Buarque de Holanda e o então
embaixador da Nicarágua no Brasil, onde este diplomata
questionava o teor de uma crônica do poeta brasileiro,
acusando-o de desconhecimento do que se passava naquele país
centro-americano. Diz então Drummond:
Ah, tenha
paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou
partidário dos Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à
Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode negar que a
Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde
tenho amigo, o poeta Pablo Antonio Cuadra.
Mencionei
aqui três importantes poetas hispano-americanos cuja obra foi
cercada e provocada pelas múltiplas manifestações da vanguarda,
atentando para o fato de que neles – e não somente neles, cabe
acentuar – se verifica uma tensão instigante entre o épico e o
lírico. Evidente que há efusões românticas, simbolistas, o falso
brilho de algumas utopias, pretextos de toda ordem aproximam e
afastam poéticas expressivas deste mesmo ambiente de vanguardas.
Creio que inesgotáveis as possibilidades de leituras comparadas
entre inúmeras vozes fundamentais deste momento. A referência de
Carlos Drummond de Andrade ao nicaragüense foi praticamente a
única que ele fez a algum poeta hispano-americano. Houve um
incidente desprezível protagonizado pelo chileno Pablo Neruda
(1904-1973)
e a tentativa de encontro buscada pelo mexicano Octavio Paz
(1914-1998), ao qual Drummond se esquivou. Resistiu ainda às
insistências de seu genro, argentino, por propiciar um encontro
seu com Jorge Luis Borges (1899-1986), por ocasião de algumas
viagens de Drummond a Buenos Aires.
Se por um
lado o nicaragüense está certo em indagar quantas edições em
espanhol existem da poesia de Drummond, por outro lado podemos
nós, brasileiros, indagar quantas edições existem, em
brasileiro, da obra dos três poetas aqui referidos: Humberto
Díaz-Casanueva, César Dávila Andrade e Pablo Antonio Cuadra.
Esta ausência de diálogo é o aspecto mais preocupante e que
seguramente hoje dificulta – ou quase impossibilita – uma
relação mais amiga entre Brasil e América Hispânica em um
momento político-econômico em que seguramente o destino dessas
nações seria outro caso esta familiaridade cultural estivesse
bem sedimentada.
São
relativamente poucas as traduções de Carlos Drummond de Andrade
para o idioma espanhol. Não mais do que 20 antologias foram
publicadas nos 19 países de fala hispânica do continente, o que
é irrisório diante de quatro livros seus traduzidos para o
holandês ou cinco para o sueco. Reflete sobretudo o abismo
cultural que separa os nossos países, aspecto que sempre
constituiu uma grande festa para os sucessivos governos
estadunidenses que tão bem souberam – e seguem fazendo –
explorar tamanho desatino cultural. Há antologias de Drummond em
países como México, Cuba, Argentina, Peru, Bolívia, Venezuela,
praticamente todas esgotadas, considerando época e tiragem.
Mesmo avaliando e tratando de corrigir falhas de atualização
bibliográfica, é ínfima a presença de Drummond no mundo
referencial da literatura na América Hispânica, sendo ainda mais
precária a presença de poetas hispano-americanos em um âmbito
brasileiro.
Um de seus
tradutores, o poeta argentino Rodolfo Alonso, gentilmente cedeu
um testemunho crítico da poética de Drummond para a presente
edição:
Capaz de ser al mismo tiempo absolutamente renovador y
legítimamente nacional, en el mejor sentido, el modernismo
brasileño constituye una prueba evidente de la originalidad de
las vanguardias latinoamericanas, tantas veces acusadas de ser
mero reflejo de recursos europeos. Y, con ser originalísima, la
obra de Carlos Drummond de Andrade se vuelve también
significativa en ese contexto modernista, del cual constituye
muy probablemente el paradigma. Popular sin demagogia, discreta
sin pavoneos, distante pero cálida, precisa sin frialdad,
incluso en sus comienzos abiertamente comprometida pero con tal
intensidad de vida y de lenguaje que sus poemas de ese tipo
continúan en vigencia y conmoviéndonos, el desarrollo de la
poesía de Drummond constituyó para nosotros, y especialmente
para mí, una experiencia enriquecedora. Donde lo estético y lo
humano se daban como evidencia viva, lograda, cabal, y al mismo
tiempo temblorosamente inerme, transida, contagiosa.
Si pudo ofrecernos, en Procura da poesia, una lúcida,
ejemplar arte poética, de luminosa inteligencia y contagiosa
sensibilidad, capaz de precavernos contra toda demagogia, y que
cada día cobra más justificadas dimensiones (especialmente en
estos tiempos de ácida banalización y consiguiente aridez del
lenguaje, inclusive cotidiano, asolado por los medios
audiovisuales globalizados), ¿no es llamativo que haya logrado
hacerlo después de su tocante Consideração do poema,
humanísima abertura con la que abre, en los duros y crueles años
que fueron de 1943 a 1945, en plena lucha mundial contra el
fascismo, nada menos que un libro que quiso llamar A rosa do
povo?
Es la misma temblorosa precisión con que, como el torero a la
hora de la verdad, en un golpe de gracia, culmina allí mismo ese
otro poema imborrable: Passagem do ano, como si quisiera
dar una demostración definitiva a aquel lúcido aserto de
Huidobro (“el adjetivo, cuando no da vida, mata”), con estas
palabras indelebles: “A vida é gorda, oleosa, mortal,
sub-repticia.” No sólo calidad literaria, ni mucho menos
habilidad retórica, como se ve, sino precisamente lenguaje
encarnado, belleza-verdad hecha voz, inflexión y sentido.
Porque, como él mismo dijo, no se trata apenas de escribir bien,
de tener buenos sentimientos o buenas razones sino de “ser
hombre en el poema”, apenas, nada menos. Después de todo, aunque
con sobria dignidad él haya aludido “razones de conciencia”, ¿no
habrá sido asimismo por razones estéticas que, en 1975, Drummond
rechazó el bien dotado Premio de Literatura de Brasília que
celebraba el aniversario de la dictadura militar?
Rodolfo
Alonso foi um dos integrantes do grupo Poesía-Buenos Aires, cuja
revista homônima circulou por 30 números, de 1950 a 1960. Carlos
Drummond de Andrade não somente esteve ali presente por duas
vezes como também viu publicada uma breve mostra de sua poesia
na coleção “Poetas del Siglo XX”, na tradução de Ramiro de
Casasbellas, e emprestou o título de um de seus livros,
Sentimento do mundo, para uma outra coleção da mesma
editora. Em uma das aparições na revista, inclui-se uma nota de
Edgar Bayley – também como Alonso, um dos companheiros do grupo
que contava ainda com a presença de Jorge Enrique Móbili,
Nicolas Espiro, Wolf Roitman e a figura central de Raúl Gustavo
Aguirre –, em que o poeta argentino observa:
Drummond de Andrade ha sido conciente del proceso a que ha
estado sometida la palabra en los últimos tiempos. Pero esa
conciencia no ha sido en él un mero modo de estar à la page
o de mostrarse falsamente avanzado. Ha constituido, por lo
contrario, una forma de honda honestidad consigo mismo y con los
demás, un deseo de evitar cualquier trampa o fraude, de
verificar por sí mismo la calidad del vino antes de darlo a
beber a los otros. Su búsqueda en las formas más densas y
contemporáneas del verso es, antes que una renuncia a sí mismo y
a la comunicación, una voluntad personalísima de expresión
creadora. Recordemos de paso una vez más que el esfuerzo del
poeta por renovar las formas expresivas sólo es válido en la
medida en que logra organizar la materia verbal para ponerla en
función de su experiencia humana. Es el grado y la trascendencia
de su temblor, y no esta o aquella fórmula retórica lo
que hace, en suma, su calidad y, por ende, su novedad.
Carlos
Drummond de Andrade manteve durante toda a vida um vínculo
intensamente estreito com a imprensa, não somente considerando o
largo período em que atuou como cronista e mesmo na direção de
redação de alguns jornais, mas tendo igualmente em conta um
aspecto salientado por Fábio Lucas, de que praticamente a
totalidade de sua obra “passou primeiramente pelo teste do
periódico, somente se consolidando em livro posteriormente”.
Apesar disto, criou-se um mito de rejeição de Drummond a dar
entrevistas, um mito em grande parte alimentado pela frustração
de quantos buscaram em vão entrevistá-lo. Para muitos ostentar
uma entrevista com o poeta assume o caráter de um prêmio, e há
registro de um caso extremo, um livro em que se menciona a
existência de uma entrevista com Drummond quando na verdade o
que se apresenta é uma brevíssima conversa por telefone em que o
poeta gentilmente se declara proibido pela médica de qualquer
esforço intelectual e até sugere à pretendente que entreviste um
outro poeta, indicando-lhe o nome de Dante Milano (1899-1991).
Na
penúltima década do século passado surgiram então inúmeras
entrevistas com o poeta, e não por outra razão que a exigida
pela Editora Record contratualmente, de que o mais novo escritor
integrado à casa tivesse participação ativa na difusão da
própria obra. Durante um curtíssimo período que vai de 1984 a
1987 – ano da morte do poeta – Drummond se expôs como uma figura
pública sem reservas, embora salientasse o desconforto diante de
situação que defendia como desnecessária, uma vez que sempre
emitira opinião – através da crônica, do artigo e essencialmente
da poesia – sobre o que julgava relevante, imperativo. Foi de
uma generosidade impecável, diante do pouco consistente ideário
de perguntas que lhe era destinado.
Recuemos
um pouco no tempo, uma vez mais recorrendo à série de
entrevistas radiofônicas que Carlos Drummond de Andrade
concedeu, em 1955, à jornalista Lya Cavalcanti, aqui destacando
uma passagem em que o poeta nos diz:
O
jornalismo é escola de formação e de aperfeiçoamento para o
escritor, isto é, para o indivíduo que sinta a compulsão de ser
escritor. Ele ensina a concisão, a escolha das palavras, dá a
noção do tamanho do texto, que não pode ser nem muito curto nem
muito espichado. Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza
de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E
proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente
verificada. Não admite preguiça, que é o mal do literato
entregue a si mesmo. O texto precisa saltar do papel, não pode
ser um texto qualquer. Há páginas de jornal que são dos mais
belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não
tivesse a obrigação jornalística.
Inevitável
a concordância com ele, ao mesmo tempo em que não se pode deixar
de lamentar que a literatura não exerça igual influência sobre o
jornalismo. Dentre as variadas entrevistas – mas quase sempre a
mesma, graça à natureza das perguntas – que concedeu Carlos
Drummond de Andrade, cumpre destacar aquelas que souberam
extrair a clareza necessária sobre certos assuntos, a
contundência cabal do pensamento do poeta, o envolvimento sem
restrições no tratamento de alguns aspectos polêmicos. A
primeira delas que merece destaque foi concedida a Zuenir
Ventura e logo de início o poeta trata de desfazer a falsa idéia
de que seja uma pessoa inacessível, recorrendo à sua atuação
jornalística:
Tenho uma
coluna onde, quando quero emitir uma opinião, omito. Ou uma
conversa lírica ou um devaneio. Sou cronista de segundo caderno
mas, em meio às amenidades, me permito reclamar contra o excesso
de generais que comandam o Brasil com o título de presidente da
República, assim como me permito satirizar o Congresso quando,
em vez de trabalhar e de reivindicar suas próprias
prerrogativas, se torna um instrumento dócil ao governo.
Esta é uma
entrevista em que a exterioridade conta mais do que os meandros
da criação poética, não restando ao entrevistado senão ceder a
seus caprichos. O cenário nacional estava então inteiramente a
reboque da crise política, a passagem de um prolongado regime de
exceção para um novo percurso civil sendo de forma quando menos
extravagante arregimentada pelas forças armadas. Em momento
algum o entrevistado se recusou a dizer o que pensa, destacando:
Não perdi
a capacidade de indignação, mas ela está misturada com o
ceticismo de quem não vê perspectiva de melhora nesses próximos
tempos. Há um entusiasmo da mocidade, há desejo de fazer alguma
coisa, mas a mocidade foi tão sacrificada nesses anos de
revolução, os melhores foram destruídos: ou ficaram
aterrorizados para o resto da vida, ou morreram fisicamente ou
desapareceram. Houve um hiato na formação social do Brasil,
houve uma geração que não pôde dizer a sua realidade.
Caberá a
Edmilson Caminha realizar uma contundente entrevista com Carlos
Drummond de Andrade em que aspectos, tanto no biográfico quanto
de matiz estético, são tratados de forma apurada. O entrevistado
revê assuntos imperativos em sua formação intelectual, discute a
popularidade que lhe é conferida, traça abordagem forçosamente
intransigente das condicionantes da crítica e da poesia que se
praticava no Brasil, esclarece alguns tópicos controversos e já
anotados em diário etc. Drummond sabia muito bem identificar
oportunismos de toda ordem. Ao fazer uma leitura dos
desdobramentos poéticos não via senão uma repetição já sem força
alguma de atrito da influência dos “tiques do vanguardismo”,
tema para o qual chamou a atenção sempre que possível, o que lhe
rendeu antipatias e frustradas tentativas de cooptação, e que
encontramos anotado em diário desde 1957, quando ali já observa
com restrição a simpatia de Manuel Bandeira pelo Concretismo:
Nunca vi
tanto esforço de teoria para justificar essa nova forma de
primitivismo, transformando pobreza imaginativa em rigor de
criação. Consideram-se esgotadas as possibilidades da poesia,
tal como esta foi realizada até agora, quando infinitos são os
recursos da linguagem à disposição do verso, e um criador como
Guimarães Rosa efetua, paralelamente, a reinvenção contínua do
vocabulário português. Por que os poetas não tentam um esforço
nesse rumo?
No diálogo
com Edmilson Caminha, Drummond discorre acerca de influências de
maneira clara e despida de qualquer pudor, a começar pela
referência direta a Machado de Assis (1839-1908):
Acho que
devo a minha formação a Machado. Até hoje: quanto mais o leio,
mais fico impressionado. Resolvo mesmo não ler Machado de Assis,
leio quando me dá uma tentação. Mal e começo a ler Machado e
fico com a tendência de escrever o que ele escreveu, de
imitá-lo… Quantas vezes, na minha crônica – que é esvoaçante,
escrita sem nenhuma preparação, porque aquilo tem de ser
entregue duas horas depois –, me surpreendo com tiques de
linguagem, com jogos verbais de Machado… Ao lado disso tive
influências variadas: li Flaubert, Fialho de Almeida, António
Nobre, Cesário Verde… Gostei muito de Eça de Queiroz, adoro Eça.
Acho que, na língua portuguesa, são os dois que mais me agradam,
Machado e Eça. Outra influência minha foi Anatole France.
Anatole era considerado um deus naquela época; depois passou de
moda e agora ouço dizer que está sendo redescoberto. Mas Mário
de Andrade me proibiu de ler Anatole, dizia nas cartas: “Deixa
de ler esse sujeito, é um sacana!”.
Se por um
lado considerava-se um profissional da crônica, era bem distinta
a relação que mantinha com a poesia, e reflete prazerosamente
sobre ela, anos depois, em diálogo com Gilberto Mansur:
Para mim,
ela foi necessária e ainda é necessária, porque é uma atividade
da minha vida, praticada por mim, sem interferência de ninguém.
Ela não obedece a nenhuma interferência: eu não sou um
profissional da poesia, eu convivo com ela por uma necessidade
de expressão, até mesmo para fins terapêuticos, digamos:
conflitos psicológicos, problemas, inquietações, dúvidas que eu
tive… Então, eu acho que, na minha vida, a poesia foi uma
espécie de terapia, porque eu tive uma infância mais ou menos
insegura e uma mocidade também inquieta, e a resposta que eu
procurei achar para os meus problemas foi esta: manifestar-me em
versos, com a liberdade que o Modernismo estava assegurando.
Porque, quando eu comecei, o Modernismo já tinha se manifestado.
Então, eu tive assim uma certa liberdade, uma certa ausência de
disciplina, que permitia me manifestar em verso de uma maneira
não formal, uma maneira que não era a oficial existente no
Brasil. Com isso, então, eu senti que à media em que eu ia
escrevendo, eu me sentia, não digo com os problemas resolvidos,
mas me sentia um pouco aliviado.
[…]
Devo dizer
que eu não tinha, realmente, preocupação literária, no sentido
estrito de fazer uma obra literária, de ser um poeta com livro
publicado. Tanto assim que eu só publiquei o meu primeiro livro
com 20 anos de idade, não tive pressa disso. Eu acho que há uma
diferença entre o literato, o escritor propriamente dito, que
planeja uma obra escrita, que trabalha para ela, que se
documenta, que se informa, que pesquisa para realizar
determinados trabalhos, e a figura do poeta que eu fiquei sento,
uma pessoa que se manifesta em versos, mas sem um programa.
Drummond
dará valiosa seqüência ao tema, três anos depois, em diálogo com
Luiz Fernando Emediato:
A minha
obra literária foi determinada pela circunstância de eu ser
mineiro. Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração,
onde a dificuldade de comunicação era maior do que em outras
zonas do Estado. Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por
necessidade e por contingência.
[…]
Uma grande
parte da cultura que a pessoa absorve para uma carreira
literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de
fundo. Na realidade, a gente obedece a um impulso interior, à
capacidade de imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos nos
prender àquilo que lemos ou aprendemos não escreveríamos nada.
Todas as obras-primas já foram escritas. O contemporâneo não
conta, a meu ver.
[…]
Eu sou
inteiramente partidário da idéia da inspiração. Seja banal,
antiquado, mas sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A
pessoa adquire a técnica de se comunicar e tem facilidade, como
eu tenho, de escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem
das entranhas da gente, isto é inspiração.
[…]
Quando eu
estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação física, um
certo ardor. (pausa) Não, não exageremos; também não é um estado
de transe, de levitação. Mas sinto uma espécie de emoção
particular que me impele a escrever. E isso me surge até em
horas imprevistas, diante de um espetáculo, de uma criança
dormindo na rua, um cachorro mexendo o rabo, uma moça. Qualquer
destas coisas pode provocar na gente um estado poético. Ao lado
disso, há o lado crítico, depois.
Por
último, observando cronologicamente aquelas entrevistas mais
relevantes, há o longo diálogo com Geneton Moraes Neto, que
viria, ao lado de outros documentos fundamentais, a constituir
um livro de indiscutível contribuição do jornalista ao
conhecimento da obra e sobretudo do cidadão Carlos Drummond de
Andrade. A entrevista foi dada poucos dias antes de sua morte.
Nela vêm à tona os mesmos temas, reafirmados, e o poeta
inclusive rememora a gênese do poema “No meio do caminho”, que
tanta polêmica havia causado à época:
Minha
intenção era fazer apenas um poema monótono – sobretudo monótono
– e com poucas palavras. Um poema repetitivo. Um poema chato
mesmo. Uma brincadeira. Não tinha intenção nem de fazer uma
coisa que agredisse o gosto literário nem também uma coisa que
permitisse uma revolução estilística. Muito menos tinha uma
intenção filosófica aludindo a dificuldade que a vida pode
oferecer à pessoa. Nada disso! Apenas o seguinte: fazer um poema
com poucas palavras repetidas e bastante chato, bastante árido,
bastante pedregoso. Uma brincadeira! Eu tinha vinte e poucos
anos e nenhuma pretensão de fazer nada que pudesse irritar os
outros. Era uma brincadeira, como a gente costuma fazer quando
moço.
O
essencial neste poema é a confirmação – melhor seria dizer
antevisão, considerando que foi um de seus primeiros poemas – de
que o humor é um dos traços mais altos da poética de Carlos
Drummond de Andrade. A maneira como ironia e humor se mesclam
com niilismo e ceticismo aponta na direção de uma linguagem
corrosiva e de um caráter conflitante. A reflexão do poeta
acerca da realidade à sua volta era arrancada do próprio
convívio, em grande parte relutante, com esta mesma realidade –
imagem que se dilata tanto na monotonia de uma “pedra no meio do
caminho” quanto os versos com que abre um dos últimos poemas:
Sofrer
é outro nome
do ato
de viver.
Não há
literatura
que
dome a onça escura.
Esta
intensidade do viver, refletida no poema tanto no risco da
linguagem – a maneira como se fundem verso livre e verso medido
– quanto na infiltração do biográfico – um biográfico sem
artifício, cabe destacar – leva Mário de Andrade a observar,
quando da publicação de Alguma poesia (1930) que Drummond
parecia estar
apenas a
dois passos do sobrerrealismo, ou pelo menos daquele lirismo
alucinante, livre da inteligência, em que palavras e frases
vivem duma vida sem dicionário quase, por assim dizer
ininteligível, mas profunda, do mais íntimo do nosso ser,
penetrando por assim dizer o impenetrável, a subconsciência, ou
a inconsciência duma vez.
A
percepção de um “lirismo alucinante” é deflagradora, naquele
momento, de toda uma poética de Carlos Drummond de Andrade, e
revela a ambigüidade em que mergulha – ou pela qual se vê
acossado – o poeta na modernidade. Não à toa, um outro poeta,
Mário Chamie, quando da publicação de Claro enigma
(1962), observa que Drummond
está fora
da disputa entre o inteligível e o sensível. O seu mundo é a
ambigüidade direta das coisas e dos acontecimentos. A sua
linguagem desenvolve a lição desses acontecimentos e dessas
coisas.
A
consciência de uma ambigüidade contagiava o poeta de certa
tragicidade, ao ponto do Mário de Andrade lhe escrever o
apontando como “o mais trágico dos nossos poetas, o único que me
dá com toda a sua violência, a sensação e o sentimento do
trágico”. Evidente que o sentido de trágico não dá à poesia de
Drummond uma conotação dramática, grandiosa ou funesta. É
trágica na medida em que aborda um conflito, uma impossibilidade
de relação entre ser e tempo, porém sem exaltação, despida tanto
do espetacular quanto da confiança na redenção da espécie humana
por algum sistema filosófico. Em uma conversa com Lygia
Fernandes diz que “a vida é bastante caótica, bastante
imprevisível para ser regida por um princípio filosófico, por
mais alto e perfeito que seja”, e conclui:
Havia um
humorista brasileiro, aliás, secundário, mas que durante um
certo tempo alcançou sucesso no Brasil. chamava-se Mendes
Fradique. Era o autor de uma História do Brasil pelo Método
Confuso. Tenho a impressão que um mundo confuso pede um método
confuso. Talvez as pessoas se entendam melhor aderindo todas à
confusão.
O humor em
Carlos Drummond de Andrade foi ficando mais negro, mais
implacável, na medida em que se intensificava o diálogo com o
mundo, em que se opunham experiências vitais, em que se
decepcionava com aspectos que interferiam tanto no biográfico
quanto na visão de mundo. Ao publicar Sentimento do mundo
(1940), é novamente Mário de Andrade que lhe faz observação
valiosa:
O poeta
não mudou, é o mesmo, mas as vicissitudes de sua vida, novos
contatos e contágios, novas experiências, lhe acrescentaram ao
ser agressivo, revoltado, acuado em seu individualismo
irredutível, uma grandeza nova, o sofrimento pelos homens, o
sentimento do mundo.
Uma vez
mais a presença da ambigüidade, onde mesmo a sátira ou a
zombaria relutam em descrer completamente no homem. Esta
ambigüidade não pode ser jamais entendida como um sofisma,
considerando a blague típica do Modernismo. A obra de Drummond
não se subordina em momento algum aos tópicos manifestos do
Modernismo, antes se apropria de alguns desses traços, por
sincera identificação, e lhes dá uma dimensão outra. Mário de
Andrade foi seguramente seu melhor leitor, embora o tenha
acompanhado por bem pouco – morreu no mesmo ano da publicação de
A rosa do povo (1945) –, ao perceber que o dilema
fundamental de Drummond é que não conseguia transcender a si
mesmo. Esta impossibilidade é a raiz de uma das poéticas mais
contundentes do século XX.
A obra de
Carlos Drummond de Andrade foi estraçalhada em fases com a única
tentativa de melhor retê-la, uma débil prerrogativa da crítica
acadêmica em sua impossibilidade de compreender o mundo em sua
totalidade. Apontava-se um poeta ideólogo, outro de aprimorada
artesania, um com inclinação memorialística, o devotado a um
Eros isolado do mundo etc. Tipificar assim uma poética é como
mostrar-se inapto a dialogar com ela, com os meandros da
escrita, incluindo os interlúdios e contradições que também a
definem. Há uma parcela da crítica que compartilha esse
desdobrar em fases do poeta que não atenta para o fato de que o
biográfico evolui. No caso de Drummond, evolui trazendo consigo
a voragem de uma época bastante conturbada e as restrições do
poeta a inúmeros aspectos, dentre eles, na medida que o tempo
avança, a rejeição à figuração que lhe queriam impor, o que
deixa claro ao dizer que
a maioria
das pessoas que me consideram o maior poeta brasileiro não leu o
que escrevi! Ouviu falar. Como acham que fulano de tal é o maior
craque do futebol, o outro fulano é o maior compositor, o outro
é o maior pintor, eu fiquei sento o maior poeta por um
julgamento que não é um julgamento literário: é uma opinião
transmitida socialmente, mas sem nenhuma ponderação crítica.
Nunca me julguei nem julgo, e digo mais: não sei qual é o maior
poeta brasileiro de hoje nem de ontem. Para mim, não há maiores
poetas. Há poetas. E cada poeta é diferente dos outros. Se não
for diferente e se não transmitir uma forma particular e uma
maneira especial de sentir, ver e manifestar poesia, ele não é
poeta.
Talvez se
pudesse pensar em um sistema de fases abertas no tocante à
poesia de Drummond, o emprego de um conceito que não faz parte
da crítica literária, mas sim da físico-química, onde pormenores
de fronteira dão passagem a outras investigações, experiências
etc. Mesmo assim, este seria um expediente científico, em
violento contraste com um poeta que esteve acima das
vicissitudes de ocasião. Mesmo considerando pormenores temáticos
e estilísticos acrescentados a cada livro, não eram pontos
excludentes que lhe antecediam mas antes uma ampliação, o que é
bastante comum em qualquer grande criador. Uma vez mais frisar
este aspecto é reflexo unicamente do um vício de estima da
poesia de Carlos Drummond de Andrade no Brasil, repetido à
exaustão.
Recordemos, por último, uma deliciosa ponderação de Drummond
acerca do poema longo, de que foi um dos máximos cultores no
Brasil:
Confesso a
você que tenho certo fraco pelos poemas longos. Dizem – e eu
acredito – que o poema deve ser curto. A música deve ser curta,
tudo deve ser curto em arte para nos causar um impacto – e ficar
a ressonância desse impacto na sensibilidade. Por outro lado, o
poema longo tem um aspecto tentador para um poeta: sustentar a
nota lírica ou a nota dramática por muito tempo. Você sabe que
as tensões são rápidas, as grandes emoções são profundas e
velozes; depois, ficam o cansaço, a tristeza, a melancolia,
aquele fogo da paixão desapareceu. O poema longo oferece todas
essas dificuldades, a ponto de alguns dos meus poemas longos
serem divididos em partes, em blocos, porque a continuidade
deles importaria certa monotonia. Eu subdivido o poema.
Parece
aceitável extrapolar e inferir que o poeta igualmente subdividiu
a própria existência, inserindo o biográfico na mesma e intensa
relação de ressonância que separa o poema curto do longo. Para
ele, o grande desafio não foi propriamente viver ou escrever,
mas sim sustentar a nota – fusão plena do lírico com o dramático
– de um eu retorcido, um eu sinceramente comovido e que, no
dizer de Paulo Rónai, “carregava consigo uma sentença de origem
desconhecida, que o condenava ao mesmo tempo à estranheza e a
viver entre os homens”.
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