Carlos Felipe Moisés: no subsolo de uma grande poesia
Floriano Martins
FM
Inicio este nosso diálogo lembrando uma lúcida afirmação do
peruano César Moro: “O essencial é a beleza da linguagem sobre a
profundidade da experiência”. Somente a poesia logra a fusão das
contradições que regem a condição humana. Verdadeiro lugar de
uma revolução permanente - a revolução do ser sobre os escombros
do tempo -, como chega a você a poesia?
CFM
A poesia tem sido para mim, desde sempre, um alimento
indispensável, tanto quanto as proteínas e carboidratos das
refeições diárias. Recorro a ela normalmente e sobretudo quando
percebo estar sendo minado pelo desgaste do cotidiano, pela
rotina que leva a achar tudo igual. A poesia me ajuda a sacudir
os nervos e a reavivar a paixão da descoberta; me ensina e
permanentemente reensina aquele modo de olhar para as coisas que
transforma a falsa e perigosa familiaridade em estranheza
geradora de energia.
FM
“Todo poema é um exercício de exercícios” - assim você defende a
criação poética, defesa esta concentrada em três palavras
essenciais: “deliberação, impulso, desafio”. Quanto à emoção,
que lugar cabe a ela? Compartilha a opinião daqueles poetas que
acham que escrever emocionado dá péssimos resultados?
CFM
Penso que as emoções e sentimentos fortes são inimigos da
poesia, embora os moderados não tenham nada a ver com ela. A
intensidade das emoções é o estopim que deflagra a poesia, mas
tentar passá-la diretamente para o papel é condidatar-se ao
malogro. A poesia nasce das emoções, sem dúvida, mas pede a
intermediação da memória para que estas se façam mais densas,
menos precárias.
Por isso,
a ênfase no Exercício, não por amor ao trabalho artesanal em si,
nem para privilegiar o cerebralismo, mas para que o poema se
realize objetivamente ali, no papel, arquitetura transparente de
palavras, e não seja apenas uma vaga lembrança infiel da emoção
malbaratada e esquecida nas malhas do cotidiano. Meus poemas
mais sinceramente comovidos, aqueles com endereço, estão entre
os piores que já escrevi; os menos maus são os engendrados pela
memória, quando a emoção já não chegava mais à extremidade do
gesto.
FM
Estamos de acordo que o poeta é fruto de suas leituras. Também
poderíamos acrescentar que é ele, por extensão, quem manipula
seu próprio caldeirão de influências. É possível detectar o veio
de onde brotou sua poesia?
CFM
Mal-entrado na adolescência, recebi de Mário de Andrade e
Vinicius de Morais, simultaneamente, o meu primeiro grande
impulso poético. Logo depois, Bandeira, o Camões lírico,
Fernando Pessoa (Caeiro e Campos) e o Drummond de Fazendeiro
do ar e Poesia até agora. Na mesma altura, Rilke,
incursão obrigatória para os de minha geração (refiro-me ao fim
dos anos 50, início dos 60), embora me entusiasmasse menos. Mais
tarde, já ultrapassada a adolescência, poetas de língua inglesa
e francesa: Blake, Whitman, T. S. Eliot e Baudelaire, Rimbaud,
Saint-John Perse. Depois os surrealistas mitigados ou
dissidentes, como René Char e Henri Michaux. Drummond ocupou
sempre um lugar privilegiado, aquele pólo de medida e contenção
que me alertava para o perigo da eloqüência e do derramamento.
Ao me dar conta disso, lá por meados dos anos 60, cresceu o
interesse por João Cabral, a cuja sedução geométrica e
construtivista eu resistira por algum tempo. Esse o veio básico,
múltiplo e vário. Tenho procurado o meio termo entre as
tendências conflitantes que aí se abrigam.
FM
Em sua poesia podemos encontrar referências a músicos e
pintores. Diria que música e pintura são fundamentais em seu
processo de criação poética?
CFM
O que me atrai na música, sobretudo a instrumental, é a sugestão
do continuum, do tempo ilimitado, e a promessa de
libertação do jugo da palavra. Já a pintura me seduz na direção
oposta: a volúpia da instantaneidade, o tempo retido na
visualidade da espacialização circunscrita. Ao juntar palavras
sobre o papel, ao longo das linhas seccionadas do poema, minha
aspiração é somar um pouco de cada: cosa mentale, para os
olhos e para os ouvidos.
FM
Nesta sua recente participação em um encontro de poetas
realizado no MASP (15 a 19 de maio de 1990) você fez uma rápida
referência a Umberto Eco, ao afirmar que “o artista moderno não
tem mais para onde avançar, deve voltar atrás, revisitar a
tradição, mas com ironia”. Isto me conduz a uma antiga
declaração de Octavio Paz:
“Forma é vida. A falta de forma do mundo moderno é ausência de
verdadeira vida.” Diante disto, qual acredita que seja, em
nossos dias, a missão do poeta?
CFM
Tenho certa dificuldade com a palavra missão, que para
mim se associa a uma idéia ultra-romântica de poesia, com forte
acento religioso. Não vejo o poeta como um condutor de
multidões, um missionário. Mas deve ser mera implicância minha,
pois sua pergunta pode ser lida: qual a função da poesia, hoje?
Eu diria que essencialmente a mesma de sempre: inquietar,
subverter, manter vivo o germe de insatisfação radical que o
cotidiano tende a sufocar em cada um de nós.
FM
Você já se referiu por três vezes às misérias do cotidiano; no
entanto, sua poesia tem fortes compromissos com ele. Não há aí
um paradoxo?
CFM
O cotidiano é fatal para a vida e vital para a poesia. Penso que
é exatamente aí, na banalidade do dia-a-dia, que devemos
reencontrar a energia desperdiçada na rotina diária. Buscá-la
mais além, por via mística, metafísica ou outra, seria uma forma
de escapismo, seria acomodar-se à existência de um universo
paralelo, destinado a compensar a mediocridade do cotidiano.
Compensações dessa ordem são ainda piores que a derrota. Por
isso minha poesia enfrenta o cotidiano, para buscar ali o tudo
ou nada. Dia-a-dia rotinizado e dia-a-dia subvertido se opõem,
para mim, em termos de real repudiado x ideal almejado. A
subversão deve realizar-se aí mesmo, nas ciladas do cotidiano, e
não no reino do faz-de-conta. Mas pense que quanto mais
ostensivamente o poeta busque esse desiderato, mais reacionário
será o resultado. A verdadeira subversão é a que se infiltra,
silenciosa e insidiosa, nos desvãos da nossa sensibilidade
diária e não aquela que sai por aí gritando lugares-comuns e
indignação de palanque - inúteis, porque há muito assimiladas
pelo establishment.
FM
Em artigo publicado no Jornal da Tarde (março de 1990),
relativo a este seu mais recente livro, o crítico Wilson
Martins refere-se a certo prejuízo que o concretismo teria
trazido aos bons nomes de tua geração. Diz o seguinte: “São
poetas que, surgindo no outono glorioso do Concretismo, e dele
independentes, viram-se rejeitados para as trevas exteriores
porque todos os holofotes da publicidade se concentravam então
nos ruidosos manifestos e manifestações verbivocovisuais, tanto
mais estridentes mais percebiam a própria desintegração”. Essa
rejeição, alguma vez você a sentiu? Acaso o concretismo teria
acrescentado algo à sua poesia?
CFM
O tópico alude não só ao esforço concretista, mas a todo o fogo
cruzado que, nos anos 60 e 70, pôs em confronto Geração de 45,
Concretismo, Práxis, Tendência, Neoconcretismo, Processo,
Tropicália, etc. O ardor polêmico do combate tomou conta de toda
a cena e pôs ênfase na luta pelo poder literário, relegando a
segundo plano a própria literatura, a boa literatura produzida
não só por esses grupos e correntes, mas por outros, menos
combatidos e até mesmo alheios a essa luta. A falácia
filogenética, que insiste em entender o panorama literário como
uma sucessão linear de ismos, fez o resto: para muitos,
não há como encaixar aí individualidades independentes como
Renata Pallottini ou
Hilda Hilst, que são um pouco anteriores à minha geração;
Lindolf Bell, Roberto Piva ou Rubens Rodrigues Torres Filho,
meus contemporâneos, surgidos no início dos anos 60; ou Antônio
Fernando de Franceschi, Orides Fontella VARINDREM "Fontella,
Orides" e outros bons poetas que estrearam em seguida. Creio
que Wilson
Martins se refere a essa visão esquemática e distorcida da
história literária, que rejeita por algum tempo certos poetas,
relegando-os a uma espécie de limbo provisório. No meu caso,
nunca me senti rejeitado (toda rejeição é proporcional ao
incômodo e à importância implícita do que se rejeita) e o
sectarismo com que os concretos defenderam, naquela altura, a
engenhosidade novidadeira como um valor em si, nunca me atraiu.
De resto, sempre foi possível chegar a resultados semelhantes
por outros caminhos. Pretender o monopólio de qualquer um deles
é render-se à sedução da futilidade ou da paranóia.
FM
Se nos detivermos em um estudo acerca da obra poética produzida
por esta geração “extremamente plural e diversificada” - no
dizer de uma de suas vozes: Claudio Willer -, o que você
apontaria como suas contribuições fundamentais ao
desenvolvimento da poesia brasileira?
CFM
A idéia de uma geração “plural e diversificada”, apontada por
Claudio Willer em relação a esse grupo de poetas surgidos em
São Paulo, em 1960, na coleção dos Novíssimos lançada por Massao
Ohno, creio que se filia ao espírito anárquico (anarquista,
mesmo, em alguns casos), não corporativista, que paradoxalmente
nos une e de algum modo se prolonga até hoje. Jamais vingou
entre nós a hipótese de cerrar fileiras em torno de qualquer
doutrina ou plataforma com a qual inscrever nosso nome na
história. (O Neo-Surrealismo, de Sérgio Lima, a Catequese, de
Lindolf Bell, o Sermão do Viaduto, do Álvaro Alves de Faria,
a Poesia na Praça, de Neide Archanjo, foram ensaios momentâneos
logo abandonados, enquanto ação coletiva, embora não enquanto
válida proposta individual.) Tendo estreado em plena
adolescência, certo inconformismo tão generoso quanto ingênuo
selaram entre nós, desde o início, a certeza de que a poesia
passa ao largo desse comércio mesquinho. Creio que a
contribuição fundamental desse grupo reside justamente na
diversidade e pluralidade de um contingente de poetas que, ao
longo de trinta anos, já, vem persistindo na criação incessante
e na fidelidade àquele espírito de origem, na medida do possível
atualizado e sintonizado com as mudanças.
FM
Embora não sendo um poeta surrealista, você tem dedicado grande
parte de sua vida ao Surrealismo, notadamente aquele localizado
em Portugal. Em recente entrevista ao Jornal de Letras
(Lisboa. Fevereiro de 1990), Mário Cesariny cita seu nome como
autor das primeiras páginas críticas importantes sobre a poesia
de Antonio Maria Lisboa, este notável surrealista português.
Tomaria para si a afirmação de Cesariny de que “o Surrealismo
continua a ser o último enunciado verdadeiro dos problemas
centrais de nosso tempo”?
CFM
Meu primeiro enfrentamento com o Surrealismo, no final da
adolescência, foi medíocre: resisti, recuei e atirei tudo,
equivocadamente, para a vala comum do charlatanismo e da
gratuidade. Mas algo de muito insólito e radical, ali
entrevisto, me captou como um desafio, que eu acabei de
enfrentar. A reconciliação se deu aos poucos, através da pintura
de De Chirico e Delvaux (não de Dalí ou de Magritte) e do
ensaísmo filosófico de Ferdinand Alquié (a filosofância dos
manifestos de Breton sempre me soou como demagogia de um
cartesiano incorrigível, embora arrependido). No fim dos anos
60, mergulhei de cabeça na aventura surrealista, a pretexto de
uma dissertação de Mestrado sobre os surrealistas portugueses,
que eu literalmente acabara de descobrir: pouca gente, em
Portugal, e ninguém, aqui ou na Europa, tinha ouvido falar de
Mário Cesariny ou Antonio Maria Lisboa. Julgo ter aprendido,
então, graças à ajuda atrás citada, o que seria a idéia-motriz,
o pensamento, a intenção fundamental do Surrealismo: a busca da
“verdadeira vida”, sonhada por Rimbaud.
De lá para cá, tem sido um namoro constante. E pude compreender
também o que me desagradara no primeiro contato: muito cedo, o
movimento surrealista derivou para uma espécie de
maneirismo piegas e previsível, em que só a letra fala,
estereotipadamente, daquela verdadeira vida; a
substância, não. Por isso, concordo, sim, com Cesariny: o
Surrealismo é a mais generosa e radical Utopia deste século,
algo por que vale a pena empenhar uma existência inteira. Mas em
minha própria poesia nunca fui capaz de aderir aos seus
maneirismos ortodoxos.
FM
De uma maneira geral (as exceções se reduzem ao extremo) o
objeto da crítica literária que se pratica hoje, entre nós,
quase nunca é a obra em si e sim o autor, ou um feixe de
determinadas circunstâncias que o envolvem, o que traz como
resultante um progressivo desfoque na formação do possível
leitor. Críticos, editores, autores envolvidos, costumam todos
desempenhar o lamentável papel de cúmplices em um quadro
patético de glorificação de futilidades. O que você acredita
seja determinante de todo esse quadro e quais as saídas para um
escritor coerente com as delimitações de sua obra atualmente
neste país?
CFM
A crítica literária, em qualquer tempo, é sempre tendenciosa,
unilateral, não tem como evitar os equívocos. Sabemos bem dos
equívocos que foram cometidos no passado, mas temos enorme
dificuldade em reconhecer os que provavelmente estamos cometendo
no presente. E não pode ser de outro modo. A nenhum de nós é
facultada aquela consciência crítica ideal, fundada em isenção e
neutralidade, equanimidade e tolerância. Nosso olhar crítico é
fruto de nosso Zeitgeist, com suas idiossincrasias, e por
isso não somos capazes de detectar o que é bom ou mau senão para
nós, aqui e agora. (O Shakespeare que apreciamos é o mesmo dos
românticos?) Só estaríamos a salvo desses equívocos,
involuntários e inevitáveis, se abdicássemos da nossa condição
de homens do nosso tempo, assumindo o ponto de vista de algum
crítico de outro planeta, por acaso interessado na Literatura
que se produz neste canto escuro da galáxia.
Não sonho
com isso - nem tu, estou certo. Agora, ao lado dos equívocos
involuntários existem também os premeditados, os
mal-intencionados, resultantes do tráfico de influências, do
corporativismo, de uma forma aviltada de crítica praticada como
forma de agradar ou agredir, de obter ou conceder favores.
Mas o
tempo também se encarrega, e mais depressa ainda, de ir
corrigindo tais distorções. Penso que o escritor, por sua vez,
não deve cometer o equívoco de ignorar esse quadro, não deve
menosprezar (nem supervalorizar) a real importância da crítica,
sabendo distinguir a verdadeira da aviltada. Em caso de dúvida,
deve estar pronto a guiar-se pela própria consciência.
FM
Pelas respostas anteriores, e pelos caminhos percorridos em sua
obra poética e ensaística, parece que seu interesse
extra-fronteiras restringe-se às culturas de língua inglesa e
francesa. E a língua espanhola? E a literatura
hispano-americana? Como você se situa nesse contexto?
CFM
Minha geração, formada antes de 1964, é ou foi decididamente
francófila. E americanófoba. Na universidade, pude adquirir uma
visão mais ou menos sistemática da cultura e da literatura
francesas; mais tarde, tendo-me acontecido de viver alguns anos
nos EUA, pus de lado o preconceito ideológico e procurei
realizar o mesmo, por conta própria, em relação à rica
literatura de língua inglesa. Quanto ao espanhol, apesar da
facilidade representada pelo idioma, mais próximo do nosso (e
pelas afinidades sociais e históricas, no caso da América
Latina), nunca tive a oportunidade de me dedicar com igual
empenho às literaturas dessa língua. Isto é apenas uma das
muitas deficiências da minha formação. Ter um bom amigo no
México, outro na Argentina; um no Peru, outro no Chile; um na
Colômbia, outro no Panamá ou na Espanha (todos escritores, com
quem me correspondo e/ou me avisto de vez em quando), não tem
sido suficiente para suprir a falha. Meu conhecimento nessa área
- a despeito de eu ser, há anos, um leitor assíduo de Octavio
Paz ou Borges, Lorca ou Salinas, Vallejo ou Carpentier, e
tantos outros - é lamentavelmente granular, dispersivo,
assistemático. Mas não é preciso mais do que isto para saber que
um dos nossos caminhos aponta nessa direção: um intercâmbio mais
intenso com a literatura e a crítica literária latino-americana.
Esse esforço conjunto talvez nos leve a superar o antigo e comum
complexo de inferioridade, que historicamente nos tem induzido a
buscar uma improvável parceria com o Primeiro Mundo, para
esquecer a indesejável, mas verdadeira e natural, parceria com
os vizinhos.
FM
A consciência do já escrito é algo manifesto em todo poeta.
Romper a circularidade, uma utopia cara à poesia de todos os
tempos. Busca de uma síntese das contradições que regem nossas
vidas, a poesia transfigura tudo em que toca. O poema, sempre
incompleto, é pura transmutação. Insisto: tudo já foi escrito?
CFM
No que me diz respeito, enquanto consumidor voraz de poesia (e
isso me traz de volta à tua primeira pergunta: como a poesia me
toca?), poderia responder afirmativamente. Se nada mais for
escrito, passarei o resto da vida, ainda que dure bem mais do
que o esperado, alimentando-me da grande poesia do nosso tempo.
Mas desconfio que não poderá ser assim para sempre: nada é
permanente, não obstante alguma transitoriedade permaneça,
provisória, mesmo que o provisório às vezes dure séculos. Por
isso, respondo também pela negativa: não, nem tudo foi escrito,
e é preciso insistir em continuar escrevendo, para que a nossa
sensibilidade esteja atenta às mudanças e para que daí brote,
quem sabe, se não o alimento, pelo menos a fome ignorada. |