A poesia
para além dos montes. Algumas palavras a propósito de
Fora de
portas
e Carlos Garcia de Castro
Nicolau
Saião
Fui-me
deitar. E levei toda a noite a sonhar com o deserto, diamantes e
animais
ferozes e com o desafortunado aventureiro morto de fome
nas
vertentes geladas dos montes Suliman.
H. Ridder
Haggard,
As minas
do rei Salomão.
É
preciso ver a poesia muito ao longe. Ou antes: é necessário, por
vezes, ver a poesia como se estivéssemos muito longe, do lado de
cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do
poeta, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito
distante da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus
motivos quotidianos e reais, das suas quimeras ou das realidades
que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos
seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoada, e
serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja
imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar, nos vai
talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara.
Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente
aos nossos olhos se patenteiam.
Mas será
isto possível? Será mesmo efectivável, por maioria de razão se
com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos dos
mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou
envolver, dos sonhos que lhe percorrem o espírito, daquilo que
viu e que o suscita para que se permita escrever sem desdouro e
sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele um companheiro
de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que
é única mas também nos seduziu? Pode, pelo menos, tentar-se.
Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é
assim como que um olhar lançado na direcção de algo que já vimos
mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não
planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual
a memória de ritmos imarcescíveis.
E, afinal,
não se pode esquecer que há no poeta, como em qualquer outra
pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente
desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.
Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando
iniciamos uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno
território da escrita que doravante não nos será alheia.
Linhas
de força
A lua,
que começa a mostrar-se, ilumina os ramos mais altos das
árvores.
Emílio
Salgari,
A montanha
de luz.
Ao
entrarmos na poesia de Carlos Garcia de Castro deparamos de
imediato com aquilo que é, a meu ver, uma marcada característica
dos seus versos: a celebração de um certo real muito terra a
terra, daquilo a que se usa chamar os movimentos inscritos em um
quotidiano mensurável, tudo o que afinal está disperso nas horas
exteriores e interiores – o corpo, os utensílios recorrentes, os
ritmos de uma existência em família ou em comunidade, os amigos
que passam ou que o poeta freqüenta e frequentou, os lugares
domésticos ou de passeio que viu, tudo isso que nos enrola em
nostalgia se mais tarde recordamos ou, então, que nos permite
confirmar nos mapas da nossa existência os minutos que por nós
passaram e, perdendo-se embora, passam a viver em nós para
sempre.
Em suma,
as presenças de gente e de momentos que nos dão notícias disso
que é o mundo, do que vai pelo mundo ou o poeta intui que exista
(e nós com ele) nesse universo de complexidade a que é costume
chamar
os outros.
Muitas vezes, isso que é sulcado por pequenas inflexões, das
frágeis miudezas e chatices
/
pequenas nicas úteis dispensáveis
/
que ao
dia-a-dia dão sustentação
(“Gajo
porreiro”).
No
entanto, não nos deixemos enganar: esse mundo de notações é
apenas o invólucro em que CGC acondiciona um outro universo que
se projecta noutro espaço, mesmo noutro tempo, esse verdadeiro
núcleo duro do que constitui de facto a sua poesia,
Dentro de
casa, exactos, os amigos / sentam-se à mesa a conversar de tudo
/
que há
na cidade e fora da cidade.
/
Principalmente do que há dentro deles
(“Eppur si
muove”). Por detrás desse quotidiano de gentes aparentemente sem
recantos sombrios, com que o poeta vai vivendo em Portalegre –
cidade amada, mas também claramente divisada enquanto lugar
onde, eivada de pequenos sevandijas e suaves infâmias,
Virtude
é ter esperteza, um desenlace,
/ “deitar
à frente quando a cama é estreita”
(“Eppur si
muove”) – há um outro cenário que muitos não querem nem podem
ver e que outros, os mais espertos e perigosos, muito bem vêem
mas buscam ocultar ao geral dos cidadãos que habitam naquela que
é uma das mais belas das cidades alentejanas e portuguesas, [1]
mas onde certas coisas não estão nada salubres eticamente.
Daí que,
na poesia de CGC, se sinta um intenso travo de humor negro –
tanto mais negro quanto mais sofrido – bem como uma ironia
magoada que o autor deixa que o percorra “assim como quem não
quer a coisa”, uma vez que, sendo um cidadão reconhecível,
embora resguardado não pode, no entanto, abstrair-se das
correntes de ar frio e ameaçador que lhe passam à volta, uma vez
que
nós não
choramos só por nossa conta
/
mas é
por nossa conta que choramos
(“Gajo
porreiro”). [2]
A
nascente no meio das areias
Não
dissimulemos nem mesmo para sermos simpáticos para com os que
eventualmente nos lerem com maviosa ingenuidade: o poeta, ainda
que tenha de se tapar um pouco enquanto cidadão de
cloak and
dagger
(que o é e
de que maneira!), não é, de facto,
um
cavalheiro amável.
[3] Nele se agitam todos os fulgores e as negridões dos tempos
e, se ele for simplesmente honesto para com a espécie (leia-se:
se for tão simplesmente um escritor à altura da sua própria
figura) não terá mais do que não rasurar o mundo que vai
descobrindo, que vai inventando à medida que capta o som das
palavras, o sabor da letra de forma. Na poesia de Garcia de
Castro sente-se passar uma forte brisa que corre por vezes o
risco de escandalizar os ditos “homens de bem” conjunturais
citadinos, ou seja, os figurantes de uma sociedade que na
“província magna” (“Tarro – café restaurante”) forja estatutos e
depende muito de instituições sociais, políticas e religiosas
cujo peso – apesar de estarmos já para além da meia dúzia de
anos do século XXI – é tão marcado como nos tempos do
salazarismo que muitos apenas travestiram para usos de
pós-democracia, mas que são da mesma talha e do mesmo traço
grosso. Aqui
dentro
de portas,
onde os pequenos ritmos das conveniências são firmemente
acalentados por uma burguesia tão relapsa como nos anos 1950/80
mas donde vão extravasando os ecos de escândalos e farândolas
que todos conhecem na perfeição.
A poética
de CGC é percorrida por um erotismo e uma liberdade conceptual
que como se dissimula em discretas tiradas, cujo poder apelativo
se multiplica precisamente por isso. Sensual e amante dos
prazeres da vida, apreciador assumido dos “frutos terrenos”
assim como dos espirituais que os antecedem ou se lhes seguem. O
autor de
Rato do
campo
acolhe,
salubremente, nos seus poemas esses ritmos que certificam o
homem como um ser equilibrado e mesmo verdadeiramente
civilizado. Nada tendo a ver com preconceitos ou beatices, tem
nele, contudo, a pessoa para além do simplesmente material.
Sendo um epicurista, é-o porque essa é também uma das faces do
sagrado, um sagrado “re-ligado”, mas não “passa-culpas” ou
mesureiro. E que se revela e expande no que escreve.
A
subida da montanha
Na poesia
de CGC assume-se plenamente a nostalgia, a tristeza da “vida
breve”, o que nos é dado em marcações e em ritmos mediante as
frases, por vezes sincopadas, que tomam o leitor como
interlocutor inteligente, familiar como se fosse um amigo ou um
vizinho. No fundo um cúmplice ou pelo menos um confidente
privilegiado das deambulações do autor. Esse autor que vai
passeando connosco por uma rua conhecida ou, abancados a uma
mesa de café ou de restaurante, vai degustando connosco uma
agradável bebida ou uma retemperadora iguaria enquanto nos conta
histórias, nos desfia reflexões, cifra momentos, pensamentos
apenas advertidos de iluminações fortuitas que apanhou enquanto
a vida transcorria.
Sinto em
muitos trechos de Castro, por debaixo de níveis diferentes de
leitura propiciados pelo quebrar do discurso, pelo jeito de mão
nas frases dispostas como em uma sinfonia peculiar, um quente
halo de alegria, de maravilhamento por esta coisa surpreendente
que é viver, ter podido viver com tudo o que foi por vezes
amargura mas também poderoso contentamento e, ainda por cima,
ter podido ir comunicando aos seus pares de caminhada e aos seus
semelhantes, mesmo que muitos estivessem distantes ou
distraídos, o universo poético que achou. Tenho visto neste
poeta, enquanto pessoa na polis e na existência, um ser
comparticipativo, empenhado na clarificação do mundo e das suas
criaturas, essas que o habitam sem que o tivessem pedido e que
frequentemente não acham em si armas miraculosas para a rota
adequada.
A sua
escrita – que por vezes conscientemente incursiona por versos
que só em aparência são uma pura sequência do realismo caldeado
por outras experiências, nomeadamente o senso de humor
surrealista e o lirismo da melhor cepa lusitana – perpassa-se da
certeza de que, se é duro e complexo viver, mesmo com o auxílio
da religiosidade que não rejeita porque vivencialmente salubre,
há sempre razões para não desistir de, após a subida da montanha
onde se sentiram as fomes, os frios e os calores devastadores
dos sertões e do deserto, se encontrar o rincão onde correm as
fontes e onde a luz é seguro penhor dos melhores momentos que
nos esperaram no país enfim achado.
NOTAS
1. Leia-se
o livro
E se eu
gostasse muito de morrer,
de Rui Cardoso Martins, dado a lume no presente ano por uma
editora portuguesa, além de periódicos avulsos contemporâneos
(neles, muitos e esclarecedores textos de Ruy Ventura) e ficará
feita a constatação.
2. Sendo
familiar daquele que foi um dos mais conceituados comerciantes
locais, além de professor com assinalável currículo, isso não o
impediu de, em certa altura, ter sido, de maneira insistente e
ameaçadora, enxovalhado pessoalmente e pelo telefone.
3. Título
de um livro de K. R. G. Browne. |