Castro
Alves, hoje e sempre
Lêdo
Ivo
O
mais belo instante da poesia brasileira é aquele em que, em
novembro de 1869, Antônio de Castro Alves, na viagem que do Rio
de Janeiro o devolveu para sempre à sua Bahia natal, se debruça
na amurada do navio para contemplar o oceano e vê as espumas
flutuantes.
Esse
momento de silêncio e reflexão do poeta que amava as imensidões
e os infinitos não se limitará a sugerir-lhe o invejável título
do livro de poemas que ele traz em sua bagagem. É e será um
instante epifânico. Enquanto o navio, partido da Baía de
Guanabara, rasga as águas do mar, e os sulcos de espuma se
sucedem, formando brancos desenhos caprichosos e fugazes, o
poeta atinge o mais alto momento de si mesmo, aquele em que os
minutos que passam e a breve existência inteira se unem e se
completam, numa aliança final.
A vida
veloz de Castro Alves sobrevoa, como um pássaro marinho, a
multidão das espumas flutuantes. Poeta do mar, como Camões,
Castro Alves reconhece na ação perpétua do oceano o movimento da
vida, dos seres que amam e odeiam, da sombra e da luz, que se
alternam na majestade do universo. É o movimento da sua própria
vida, feita de permanência e mudança, ambição e ilusão. Os olhos
voltados para as águas, ele é si mesmo e os outros que habitam
em sua lira numerosa. A tarde cortada pela proa do navio é ao
mesmo tempo a claridade e a noite. E aquela viagem, que ele
pressente ser a final, faz-se partida e chegada. E, no ar
marinho, o poeta respira o sal do porto derradeiro, que o
aguarda.
As ondas
que se chocam contra o costado do navio lembram a Castro Alves
os aplausos que o cumularam no Teatro Santa Isabel, no Recife, e
na Faculdade de Direito de São Paulo. É o mesmo rumor indistinto
a rodear a sua lira clangorosa, a serviço dos escravos e da
liberdade, já que, romântico até a medula, ele tem o sentimento
da revolta literária e política. O porvir se engasta em seu
instante. O movimento comicial das ondas e dos homens se muda
repentinamente num sussurro, e é como se ele ainda estivesse num
leito ditoso e proibido, junto à nudez e aos cabelos
desnastrados de uma de suas amadas infiéis. Tudo – a consagração
literária e poética, os altos juízos críticos que o
reverenciaram no umbral da mocidade, as turbulências de sua
ardente vida sentimental, as viagens que o levavam a novos céus
e à respiração de novos ares, como se ele fosse um jovem condor
em busca de um inencontrável ninho no mais azulado píncaro –,
tudo traduz inconstância e mobilidade.
E agora
ele está ali, contemplando as espumas que se fazem, se desfazem
e se refazem no tumulto do mar fiel e inconstante: o mar que
muda sempre, como a alma das mulheres e a vontade dos homens.
O navio
que o transporta lhe evoca, pela força da travessia, “O navio
negreiro”, em que ele, no voo ambicioso e desmedido, atingira o
ponto mais alto da poesia brasileira. Ninguém voara mais alto do
que ele nesse voo majestoso em pleno mar, quando toda uma
nacionalidade falara pela sua voz inflamada, em suas vozes
d’África e também da América, numa lição de indignação humana e
magistral aula de arte poética. A sua imaginação conhecia o
caminho das pedras e dos corais, que era a arte de fazer poemas,
ora arrastada por um turbilhão oratório e hiperbólico, ora
limitada ao sussurro de uma meiga confidência.
O poema “O
navio negreiro” haverá de ficar na poesia de nossa língua como
“Le bateau Ivre”, de Rimbaud. É a magia inexplicável do mistério
da arte poética.
Victor
Hugo lhe revelara o universo das apóstrofes e antíteses, das
imagens pujantes, das prosopopeias, da diversidade rítmica e dos
choques vocabulares, que fazem do poema um objeto verbal cercado
de uma aura e de uma magia. E ainda o levara a descortinar o
valor e a surpresa das menções bíblicas ou mitológicas e da
sucessão das civilizações, que, na História, se desvanecem como
as brisas. Castro Alves bebe nessa fonte desmesurada com uma
sede de beduíno, cometendo a paráfrase afortunada ou procedendo
a intertextualizações atrevidas que convizinham com a
apropriação censurável. Mas, na travessia linguística dessa
lição suprema, o selo da originalidade pessoal fulgura como um
sol. Os seus propalados defeitos se fazem qualidades e até
lições, e as negligências e estridências haverão de ganhar, com
o tempo, um sabor clássico.
Uma nova
língua poética alvoreja em seus poemas, que ostentam uma
ductilidade, uma doçura, uma sedução antes inexistentes ou
apenas afloradas; e o mesmo se haverá de dizer de sua firmeza e
rijeza e concretude, em versos que são como as lascas dos
penhascos. E a gramática romântica, pejada de licenças e
transgressões, impera desembaraçadamente em sua poesia,
consagrando a diferenciação, que é um dos fundamentos da nossa
nacionalidade.
O navio
que costeia a Serra dos Órgãos leva um Rimbaud tropical e a sua
alquimia do verbo. Ele em breve irá silenciar-se, sem
necessidade de uma temporada na África – mesmo porque, em sua
aventura, ele já havia trazido a África para nós, ao narrar em
seu poema a saga horrenda dos navios negreiros e o sofrimento
dos escravos. E a sua Bahia nativa é a Roma negra.
Ao longe,
na linha do horizonte, recortam-se, contra o céu azul e contra
as nuvens, as matas e as montanhas que ele foi um dos primeiros
a cantar sem que nas folhas dos ledos arvoredos estivesse
espargido o orvalho arcádico. Junto às praias esvaídas pela
distância e às areias brancas como os seios de Eugênia Câmara,
estendem-se os cajueiros e canaviais, cantam as juritis,
escondem-se as onças. No convés do navio, Castro Alves busca as
referências terrestres do horizonte; e mais uma vez sente e sabe
que a poesia é uma arte de ver, uma operação iluminadora. Com os
seus olhos gulosos, o poeta vê e escuta – e, trazidas pela brisa
marinha, gaivotas se aninham em seu olhar. Ali está a sua
pátria, longe e perto; e o salteia a convicção da visibilidade
poética que ele deu a tudo o que o cerca: às serranias, às matas
e aos pássaros, às borboletas, ao feitiço escondido ou ostensivo
das mulheres e ao vaivém ininterrupto do mar, ao sopro do vento,
às nuvens, à alma brasileira guardada nas casas e nas igrejas,
ao clamor das praças e aos gestos de solidão e desamparo.
O navio
avança no mar sucessivo. As espumas flutuam. O que há de mais
mutável na superfície das águas ostenta a fortuna de uma
permanência. Ao acompanhar o fazer-se e desfazer-se das espumas
flutuantes, acode a Castro Alves a reflexão de que nem tudo o
que passa passa. O que passa também permanece. O céu guarda o
relâmpago. O céu guarda o voo do pássaro.
“– Uma
esteira de espuma… – flores perdidas na indiferença do oceano. –
Um punhado de versos… – espumas flutuantes no dorso fero da
vida!…” Nessa reflexão do seu livro de estreia, há uma nota de
amargura que contrasta com tantas palavras juncadas de esperança
e confiança. O poeta tem apenas 22 anos. A tuberculose e o
acidente de caça que o levou a amputar o pé lhe marcam o corpo
combalido. Mas é em seu espírito que se levanta a onda maior de
tristeza e desconsolação. E, na esteira de espuma, ele assiste
ao fluir de sua vida: a infância no lar instruído; a educação
rigorosa no Colégio Abílio; os primeiros recitais, que
prenunciaram o seu gênio poético; a amizade polêmica com Tobias
Barreto; a descoberta seminal do Romantismo e a leitura de
Victor Hugo e Musset, Byron e Lamartine, Chateaubriand e
Espronceda; o suicídio de seu irmão José Antônio; a passagem
tumultuosa pela Faculdade de Direito do Recife; a campanha
abolicionista, ao lado de Rui Barbosa; o seu amor por Eugênia
Câmara e a consagração no Teatro Santa Isabel; as representações
do seu drama Gonzaga; as visitas a Machado de Assis e
José de Alencar, no Rio de Janeiro; a ida a São Paulo, com o fim
de prosseguir nos estudos jurídicos.
As ondas
desdobradas lhe devolvem a sua própria voz ardente, que recitou
a “Ode ao Dois de Julho”, “Pedro Ivo” e “O navio negreiro” –
essa voz única e insubstituível, em que, interpretando o
sentimento da nacionalidade e identificando-se para sempre como
o poeta da Abolição da Escravatura e do sonho da República, ele
se traslada da história da poesia e da cultura para habitar o
imaginário popular e panteão mítico e cívico. Mas agora, nesse
instante de viagem, só a solidão o rodeia, como se no navio que
vai devolvê-lo à sua Bahia só ele existisse, e ele estivesse
viajando num brigue fantasma, sem tripulantes e sem passageiros,
e cumulado apenas pelo seu eu excessivo e transbordante; pelo
seu eu romântico por excelência, nutrido por uma escola poética
que foi, antes de tudo, uma nova visão do mundo, uma
redescoberta do homem e de sua escondida personalidade.
O
Romantismo é uma escola de pressentimentos e antecipações. Os
seus poetas sabem quais são os pseudônimos da morte. Minado pela
tuberculose e cercado pelo exemplo e destino dos seus
companheiros que, em existências breves e gloriosas, parecem
saltar dos berços para os túmulos – como Álvares de Azevedo e
Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Laurindo Rabelo –, Castro
Alves lê nas espumas flutuantes a dupla lição da efemeridade da
vida pessoal e da permanência da arte poética.
Nesse cair
da tarde de novembro de 1869, Castro Alves, “encostado à borda
do navio”, contempla “o vasto incêndio do crepúsculo”. Mas, ao
celebrar o espetáculo da noite que desce, o poeta nos transmite
o sentimento de um amanhecer.
Peço vênia
aos austeros e vigilantes membros desta gloriosa Academia, que
tão galhardamente cultivam os valores do purismo vernacular,
para que me permitam encastoar nesta minha canhestra evocação de
Castro Alves uma palavra que ainda não mereceu asilo no nosso
Vocabulário ortográfico da língua portuguesa.
Matinalidade é a palavra que, ausente dos dicionários, me ocorre
para caracterizar o Castro Alves de ontem, de hoje e de sempre.
O tempo não logra corromper o frescor de sua poesia: o seu
persistente cheiro de jasmim; o seu inarredável cheiro de
maresia.
A sua
poesia, lírica ou épica, quer seja a voz coletiva de um povo em
seu amanhecimento político e social, quer seja a voz pessoal do
amante suspiroso, tem sempre um ar matinal. E esse ar da manhã
ocorre mesmo quando ele celebra os nossos céus estrelados e faz
deles, por uma radiosa imposição cosmológica, os céus do mundo e
do tempo. E a aurora se esconde nos lençóis que cobrem os corpos
cálidos e desnudos de suas amantes.
Neste
umbral de um novo milênio, Castro Alves nos ensina que a nossa
criação poética é um longo amanhecer. |