Castro
Alves – No meio do mar
Lêdo
Ivo
’Stamos
em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.
Quem,
no pórtico deste majestoso poema de Castro Alves que é “O navio
negreiro”, está em pleno mar? Todos nós. Um mar ao mesmo tempo
real e imaginário invade o local da leitura e rodeia o leitor
com a sua evidência e imensidão. A capacidade que tem Castro
Alves de envolver o leitor, arrastá-lo em vertiginosa torrente
lírica, embalá-lo musicalmente como se ele estivesse boiando
entre as ondas, surge e se impõe nesse poema desde a aférese
inicial. Com efeito, a ablação do primeiro fonema confere ao
verso um ritmo mais apressado, uma velocidade de navio que corta
as águas e sulca as ondas. Nós, leitores, nos sentimos no meio
do mar:
’Stamos
em pleno mar… Do firmamento
Os
astros saltam como espumas de ouro…
O mar
em troca acende as ardentias
–
Constelações de líquido tesouro.
É um mar
noturno. É um céu tropical. O poeta que festeja as matas
brasileiras se utiliza de uma imagem terrestre, e o luar voa
entre as vagas como uma dourada borboleta; e a comparação tem
algo de lúdico e matinal que contrasta com a presença da noite.
Esta abarca oceano e firmamento, convertendo as estrelas em
“espumas de ouro” e as fosforescências marítimas em
constelações. A magia verbal de Castro Alves esplende, acesa,
como um farol, na escuridão da noite, que é a soma de dois
infinitos:
Qual
dos dois é o céu? Qual o oceano?
Estabelecido o cenário de uma imensidade somada, Castro Alves
introduz o personagem do poema:
’Stamos
em pleno mar… Abrindo as velas
Ao
quente arfar das virações marinhas.
Veleiro
brigue corre à flor dos mares
Como
roçam na vaga as andorinhas.
Observe-se
a comparação do veleiro a uma andorinha, numa remissão
afortunada, incumbida de legitimar a imagem inicial. Na terceira
estrofe, as interrogações se sucedem:
Donde
vem?… Onde vai?… Das naus errantes
Quem
sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste
Saara os corcéis o pó levantam.
Galopam, voam, mas não deixam traço.
O processo
comparativo alcança a sua tensão mais alta nos versos em que o
oceano se estende como um deserto e os navios são corcéis. A
identificação do navio se arrima, também, num contraste. A
invocação à brisa, ao rumor das vagas, aos marinheiros “Tostados
pelo sol dos quatro mundos!” estabelece um clima estonteante e
até apoteótico que será desmentido no desenvolvimento do poema.
Para identificar esse barco ligeiro e fugidio, Castro Alves
reclama o auxílio formidável:
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que
dormes das nuvens entre as gazes,
Sacode
as penas, Leviatã no espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas…
Nesse
poema, dividido em seis blocos, aos decassílabos do bloco
inicial sucedem os septassílabos do segundo. A redondilha maior,
ritmo seminal de nossa língua poética, assegura a esse trecho de
“O navio negreiro” não apenas um ritmo, mas uma atmosfera
embaladora:
Ama a
cadência do verso
Que
lhes ensina o velho mar!
profere o
poeta, como se o mar imenso coubesse na moldura lacônica de uma
redondilha e não necessitasse, para ser expresso em todo o seu
esplendor, de versos mais largos e ambiciosos, como o
decassílabo ou o alexandrino. Esse segundo bloco é uma espécie
de ilha langorosa. Nele, várias nacionalidades são invocadas: e
esse desfile, do inglês, do italiano, do francês e dos gregos,
aponta para uma das características fundamentais de Castro
Alves. O exotismo ou cosmopolitismo é um dos componentes mais
visíveis do Romantismo; e não deixa de ser singular que, em sua
geração, só Castro Alves tenha enveredado por essa vertente
universalista. Ao longo de sua obra, sobejam as referências a
outras terras, a outros países, a outras civilizações, o que, se
de um lado atesta a voracidade com que ele se abeberava em
Victor Hugo, especialmente em La légende des siècles, por
outro realça o seu poder pessoal para recolher em sua poesia a
largueza e a diversidade do mundo.
Observe-se
que é a um albatroz, sobrinho de um dos albatrozes que pairam no
vasto céu poético de Victor Hugo, e primo germano do albatroz
baudelairiano, que o poeta recorre no terceiro bloco para
identificar o brigue sorrateiro:
Desce
do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce
mais, inda mais… não pode o olhar humano
Como o
teu mergulhar no brigue voador.
Mas que
vejo eu ali… que quadro de amarguras!
Que
cena funeral!… Que tétricas figuras!…
Que
cena infame e vil!… Meu Deus! meu Deus! que horror!
O verso de
doze silabas, o alexandrino portentoso, substitui a redondilha,
numa estrofe de seis versos que é a abertura do espetáculo de
horror a ser apresentado. A mudança indica que a estrutura do
poema repousa na variedade de seus movimentos – cada um
correspondendo a um instante musical, a um episódio temático e
melódico que, iniciado com a descrição da imensidade marinha,
avança para a cena de horror concentrada num navio negreiro,
numa realidade comparada a um sonho dantesco.
No quarto
bloco, cada dístico em decassílabo é amenizado pela alternância
de um verso de seis silabas – e o descanso rítmico mais aviva o
desfile horrendo. A figuração do deserto como um “oceano de pó”
remete à imagem anterior em que o oceano é comparado a um Saara.
Jamais, em
toda a poesia brasileira, a voz da indignação clamou tão alto
como no quinto bloco de “O navio negreiro”, quando Castro Alves
encaminha a sua imprecação ao “Senhor Deus dos desgraçados”.
Dessa vez,
a redondilha usada não é um remanso, uma langorosa enseada
rítmica, senão uma catadupa de interrogações e exclamações
candentes.
A
invocação à bandeira nacional nesse último bloco, em que a
censura desmedida se alça à condição de triunfo, confere ao
poema uma feição sinfônica. É a culminação de um crescendo, a
abertura de um estuário rítmico e metafórico que recolhe todas
as virtudes impetuosas do gênio lírico e épico de Castro Alves.
É “O navio
negreiro” um poema fosforescente. Nele se alteram as cambiâncias
de luz e escuridão, sol e noite; e a riqueza da imagística
marinha não deixa dúvida sobre as fontes em que o poeta se
abeberou, somando ao seu gênio nativo uma enriquecedora lição
preclara. O grande poema de Victor Hugo “Plein mer”, de La
légende des siècles, é, a meu ver, a fonte enorme em que
Castro Alves se nutriu seminalmente. Note-se o primeiro verso:
’Stamos
em pleno mar… Doudo no espaço
Em Victor
Hugo temos a visão do Leviatã, a grande e fantástica nau
apodrecida. E o metafórico Castro Alves, ao invocar o albatroz,
chama-lhe Leviatã do espaço, o clima da aparição insólita que
suscita perguntas e imprecações é o mesmo, e igual a profusão de
analogias e metáforas torrenciais. E é exatamente a impregnação
hugoana que diferencia Castro Alves dos seus comparsas da
revolução romântica, dos quais se distancia pelo incomparável
ímpeto épico, pela alegria, que o afasta da tristeza e
taciturnidade. Quando clama e deplora, jamais é lamuriento. Se
chora, é com os olhos enxutos. Se se queixa, é com uma voz
altiva e desafiadora que ecoa em futuro e esperança. O salto
vertiginoso que dá, do íntimo e subjetivo ao político e social,
inexiste em seus companheiros. Assim Castro Alves vai do leito
amoroso para a praça, e da praça volta para a cama cálida dos
seus amores e desamores, na qual expande a sua sensualidade de
tuberculoso. É um entrar e sair desembaraçado. O sentimento do
mundo e da História não se contenta com a visão do horizonte
abarcado num olhar ou remígio de águia ou de albatroz,
ultrapassa o que um condor pode ver das alturas. Corresponde
também a uma aspiração de mudança. Il faut changer la vie –
clamava o Rimbaud que escreveu esse “Bateau ivre”, tão
largamente haurido no poema “Pleine mer”, de Victor Hugo. O seu
antiescravismo e a convicção republicana fazem de muitos de seus
poemas verdadeiros cânticos de cidadania, em desenvolta visão
política engrandecida pela presença da utopia e da imaginaridade
do porvir.
’Stamos
em pleno mar…
Quem está
em pleno mar? Todos nós, os que o leram e ouviram na dicção
inaugural e os que ora participam da leitura inextinguível.
Engastado no verbo plural está o poeta com o seu eu pleno e
abrangente, o seu eu de vozes múltiplas que nos convida, a nós
que somos os outros, para a descoberta e reflexão do mundo.
A fundação
do Romantismo correspondeu ao descobrimento e à exploração da
personalidade intransferível, de um eu que vai desde o desejo de
apreensão total do mundo e da realidade até a proclamação da
recusa social e da proscrição, das partilhas e identificações
mais generosas até o enclausuramento que funda solidões. Nesse
eu que ora se retrai e ora se expande, engasta-se ainda o eu
intertextual: o eu das imitações e paródias, dos empréstimos e
paráfrases, das incursões proveitosas ou rapinantes a outras
terras e eus, até dos plágios escandalosos. O Romantismo muito
espigou em searas alheias, e a sua bibliografia, plantada no
princípio da originalidade e singularidade, é um imenso armazém
de apropriações que nada fica a dever ao princípio da imitação
seguido pelos clássicos. Os românticos roubam até o vento. O
simoun que dardeja como um chicote em “Vozes d’África”,
Castro Alves foi buscá-lo decerto no poema “Plein ciel”, de
Victor Hugo, o qual, em outras ocasiões, lhe forneceu o
voluptuoso orientalismo que orna tantas de suas poesias.
Mas estas
e outras incontáveis incursões de Castro Alves no universo da
leitura, da Bíblia a Byron e Lamartine, de Heine a
Espronceda, hão de indicar, nesse poeta de sensibilidade à flor
da pele, que a criação poética é, fundamentalmente, um problema
de cultura. Castro Alves foi um poeta culto – e eu diria, mesmo,
extremamente culto e bem informado sobre a grande revolução
romântica que se operava no seu tempo. E, como os românticos de
primeira linha, foi um primoroso e exigente artista do verso e
do poema.
Estamos em
pleno mar. Diante de nós passa o navio dos sem-terra, dos
sem-teto, dos miseráveis e excluídos.
Hoje, como
ontem, estamos em pleno mar, à espera de Castro Alves. |