Claudio Willer e a
circularidade da memória
Floriano Martins
Exegetas
de Jorge Luis Borges levarão a vida inteira a revelar novas
fontes de sua transfiguração poética, emblema de toda a obra -
repleta de significados - do argentino. Indago-me, no entanto,
se esta será a fórmula que nos conduz além de Borges, ou seja,
além do jardim de (seus) caminhos que se bifurcam. Já nos disse
Calvino que “para Borges a palavra escrita que conta é aquela
que tem um forte impacto sobre a imaginação”. Borges lidou
consabidamente com arquétipos, de maneira que a grande aventura
(desafio) ao lê-lo consiste justamente em livrar-se deles. Por
sua vez, em um de seus deliciosos poemas nos disse o italiano
Eugenio Montale que a memória raramente lembra-se de si mesma.
Anoto aqui que o imaginário popular sempre me soa como um
epos da memória a recolher seus fragmentos e desenrolar, a
partir dessa sutilíssima operação, uma outra ficção, uma outra
forma (igualmente esquiva) de se deixar perceber. Viver seria
então um ato de espionagem, onde sondamos a simultaneidade dos
gestos em busca de um argumento em defesa de nossa própria
dimensão cíclica. Contudo, nos dói que só o presente seja
interpretado como fato, que só o instante aja de maneira
irrevogável.
Estas são
anotações que me surgem na medida em que vou lendo o novo livro
de Claudio Willer, Volta (1996). Trata-se de uma
narrativa memorialista que não se confunde com a idéia de
transfiguração que Borges ou Montale imprimiram ao exercício da
memória. Cláudio Willer (1940) mergulha em seu passado como um
cúmplice fiel de sua memória, embora em um momento quase final
do livro procure afastar qualquer propósito meramente
autobiográfico de sua aventura. Antes pretende uma mescla de
“ensaio sobre o acaso objetivo e relatos de acontecimentos
reais”. Fusão quase feliz não fosse justamente seu ponto
inicial, a descrição dos conturbados acontecimentos que pautaram
a Feira de Poesia e Arte (São Paulo, 1976), evento arregimentado
por Augusto Peixoto, Oswaldo Pepe e o próprio Claudio Willer.
Diria que o trecho é mais um bom momento para se observar como a
contracultura costuma incorrer numa auto-exortação excessiva de
(suas) ações culturais, imprimindo ao detalhamento dos feitos um
timbre algo amateur. Certamente tem a ver com a maneira
pouco à vontade com que - ainda - nos sentimos diante da
história. Os anos 70/80 estiveram repletos de galpões da
contracultura, sobretudo em São Paulo. Fragmentos do Surrealismo
e da Beat Generation tresnoitavam o afã transgressor que regia
aquele momento. Pontos de luz, certamente. Iluminavam nossa
dupla miséria: desconhecíamos o que de fato tínhamos, ao mesmo
tempo em que nos deixávamos encantar pelas excentricidades
alheias. De muitas formas perdemos nossa noção de ser no mundo,
a definição de uma expressão comum que nos toque como
brasileiros ao mesmo tempo cidadãos do mundo. Saíamos de uma
exorcização e entrávamos em outra. Saíamos do curral do
verde-amarelismo e nos tornávamos dementes dominados pelas
névoas sedutoras de um fog importado. Só não podíamos possuir a
nós mesmos. Nunca pudemos. Melhor: jamais ousamos.
Porém o
livro de Claudio Willer está longe (muito) de confinar-se aos
porões desses equívocos mencionados - e só aqui referidos porque
matéria tangencial de sua narrativa. Na verdade os fatos
relatados ali não buscam senão uma ambientação de seu argumento
em torno das anotações insólitas, dos símbolos transfigurados,
dos episódios maravilhosos que pautam a vida de um poeta. Muito
além da Feira de Poesia e Arte e de uma ausente referência às
leituras geniais que Willer fez, no início dos anos 80, do poema
Uivo, de Allen Ginsberg (cuja tradução sua é exemplar), o
livro nos permite uma detalhada discussão em torno de inúmeros
eventos insólitos que nortearam a escritura de alguns livros de
André Breton, poeta aqui situado como exemplo cimeiro de sua
reflexão em torno do acaso-objetivo. Willer também se detém na
narrativa de aspectos curiosos que determinaram a existência de
livros de Robert Desnos e William Butler Yeats. Naturalmente vai
tecendo silhuetas incidentais no âmbito de sua própria aventura
poética. Páginas à frente nos damos conta de que o que é
aparente recordação funde-se em um rol precioso de uma ciência
das equivalências.
Assim é
que nos invade a leitura deste livro de Claudio Willer com um
caudal de desafios: remete-nos a Colin Wilson, Robert Graves,
Aleister Crowley etc. Embora não tenha mencionado o
surpreendente poeta que foi Crowley - em contraponto ao óbvio
ficcionista que mostrou-se ser Wilson -, traça em seu livro um
breve retrato desses três ingleses magníficos, ao lado da
enriquecedora presença de Yeats. Mais do que simples discorrer
sobre insólitos acontecimentos, busca argumentar a favor de uma
fascinante relação entre magos, poetas e videntes. Seria uma
espécie de tratado da transfiguração poética, inserindo-se o
autor entre as criaturas que evidenciam seu argumento, o que não
chega exatamente a falsear o fantástico da verídica ambientação.
Contudo, acaba situando o leitor diante de um símbolo que age
como uma incógnita: quem é Claudio Willer?
Seus
livros até aqui (sempre uma mescla de poesia e ensaio) -
Anotações para um apocalipse (1964), Dias circulares
(1976) e Jardins da provocação (1981) - não foram além
dos porões da vanguarda paulista. Se Volta é um livro de
estimulante leitura, por outro lado nos deixa curioso pela
poesia de seu autor, ou seja, creio que o leitor sentirá a falta
de um poeta que se apresente por trás de tantas fascinantes
analogias, sobretudo nas páginas em que são sugeridas certas
identificações entre o ocorrido com poetas como Eliot, Yeats,
Blake, Jarry e algumas experiências vividas pelo próprio Claudio
Willer". Talvez isto torne sua voz algo grandiloquente. Pensamos
então no quanto seria urgente uma reedição da poesia de Willer
(com o apuro necessário de sua correspondente difusão), embora
também se estenda a urgência à publicação entre nós da poesia de
alguns nomes inseridos em sua narrativa: Desnos, Jarry, Graves,
Crowley.
Claudio
Willer já nos traduziu Os cantos de Maldoror de
Lautréamont (Vertente. São Paulo. 1970), e uma antologia de
Antonin Artaud (L&PM. Porto Alegre. 1983). À parte a
indiscutível qualidade de suas traduções, lamenta-se que o
segundo livro tenha deixado de fora a poesia de Artaud. Bem
entendemos, contudo, que o chamado mercado editorial no Brasil
sofre constantemente desse tipo de falha estratégica. Não será
demais lembrar que os ensaios de Octavio Paz (México) e a ficção
de Enrique Molina (Argentina), Alvaro Mutis (Colômbia) e José
Lezama Lima (Cuba) chegaram até nós primeiro que a poesia deles
todos, mesmo que sejam essencialmente poetas. Independente a
tudo isto, há um ponto em Volta que faz um livro
frutificar como herança passível de uma meditação: irradia a si
mesmo através de sua verdade contagiante. Não importa que tenha
sido sonhado por gerações mergulhadas no tempo ou que reconheça
uma precisão que seja acerca do porvir. Define-o o múltiplo
tempo em que as ações ali narradas seguirão a se dar. Conclui
ele próprio - sem dúvida lembrando uma máxima comum aos místicos
espanhóis - que o livro não é senão o lugar de encontro de
alguém com sua própria experiência. Lugar da
influência/confluência do self e também da outridad,
vozes de reconhecimento. A circularidade dos dias já anunciada
em sua própria poesia. |