Diálogo com
Claudio Willer
Floriano Martins
FM
Passaram-se muitos anos até que o seu nome viesse a ocupar uma
posição de melhor destaque em nossa poesia. A sua atividade como
tradutor teria sido determinante desse fato?
CW
Não. A parte de tradutor, não. O que me beneficiou, ampliou um
pouco o meu público foi a minha participação, a partir de 1976,
como animador cultural. Aquela Feira de Poesia e Arte que a
gente fez, várias leituras de poesia que eu organizei. Enfim, o
fato de eu aparecer em público. E aparecer, porque nos anos 60 a
gente já agitava bastante. O começo dos anos 60 era uma época de
muita animação cultural. Inclusive eu acho engraçada toda essa
história de autor independente, poeta marginal, quer dizer, esse
tipo de coisa estava sendo feita por volta de ’60, muito
intensamente. Tinha muita exposição mural de poesia, lançamentos
de livros de autor, alguma venda direta de livros, de mão-a-mão,
muito debate, leituras. Houve um ciclo de leituras que foi feito
no Teatro de Arena, que tinha todo o pessoal da ativa naquela
época. Tinha eu, o Roberto Piva, o Lindolf Bell. Em termos de
mobilização de público para leituras, eu acho que dificilmente
qualquer manifestação pós-75 até hoje tenha conseguido alcançar
o mesmo público que o Lindolf Bell conseguiu na época.
Evidentemente que uma proposta diferente daquela do pessoal de
linha alternativa, mas de qualquer forma esse tipo de relação do
poeta com o público já existia. Eu acredito que o motivo
principal pelo qual ela foi descontinuada foi realmente a
questão política, pós-68. 64 não conseguiu incomodar a gente,
como não éramos diretamente militantes, quer dizer, incomodou
menos, porém o que incomodou mesmo foi 68. Aí a coisa ficou
feia. Eu dava aulas na USP e só casualmente não fui demitido. E
havia mesmo um risco em se fazer certas manifestações.
FM
De qualquer forma essa ampliação de seu público continua a ser
uma coisa localizada em São Paulo.
CW
Sim, em São Paulo. E, mesmo em São Paulo, ainda uma coisa muito
restrita. O livro Jardins das provocação (1981) não
vendeu muito, quer dizer, teria vendido se eu o tivesse vendido.
Esgotou, tenho poucos exemplares, mas eu também não tinha pressa
com esse livro. Logo depois de seu lançamento foi quando eu
comecei a atuar mais na UBE. E dediquei mais tempo a esse parte
institucional, que eu acho muito importante, sempre achei, do
que à divulgação de meu livro. Então ele está rolando, continua
em livrarias, continua vendendo, mas eu acredito que ele circula
apenas em São Paulo, um pouquinho no Rio, e só.
FM
Essa maior participação institucional não chega a atrapalhar a
vida do poeta?
CW
Eu acho que atrapalha tremendamente. Toma tempo e principalmente
aluga a cabeça da gente. Tanto a nível de divulgação de obra,
quer dizer, eu tinha todo um círculo que poderia ter ficado
percorrendo, mas foi quando a gente fez o comitê de escritores
que formou uma chapa para reabrir a diretoria da UBE, e me tomou
um tempo que eu teria dedicado a esse tipo de divulgação
pessoal. E, em termos de divulgação literária, eu acredito que
interfira.
FM
Você me disse que inicialmente escrevia muito influenciado pelo
Jorge de Lima. Como você travou conhecimento com a obra dele?
Teria sido através do Roberto Piva?
CW
Não propriamente pelo Piva. Era uma turma de poetas que era o
pessoal que começou a sair na coleção “Novíssimos”, organizada
pelo Massao Ohno, em ’60. Além do Piva, tinha o Lindolf Bell,
que depois se desligou, o Eduardo Alves da Costa, e outros que
se dedicaram a outras coisas, que não continuaram como poetas.
Agora, o diálogo era muito importante. O que mais ajuda a
produção, a criação, eu acho que é o diálogo, você ter contato
com pessoas interessadas nisto. No nosso caso, havia uma
integridade, uma unidade entre cultura e vida, entre literatura
e vida. A gente era capaz de passar uma tarde na casa do Vicente
Ferreira da Silva e da Dora Ferreira da Silva, a gente tinha uma
espécie de ciclo de leituras de Heidegger, então a gente chegava
lá, pegava um capítulo de Heidegger, lia e discutia. O Vicente
era especialista em Heidegger. Então lá pelas tantas a gente
saía por aí, no mesmo pique, a gente estava umas duas horas
depois todo mundo de pileque e fazendo loucuras em São Paulo.
Nós fazíamos os mais variados tipos de bagunça. Podia ser uma
festa, ou o mais variado tipo de reunião e, ao mesmo tempo, ter
também a presença do texto, do referencial poético. Ou então a
gente se encontrar, ficar bebendo e alguém ler a “Ode Marítima”
toda. Isso aí eu percebi que era uma característica nossa.
Agora, nesse círculo de 1960 circulava o Jorge de Lima, como
referência. Aliás, de literatura de língua portuguesa, o que de
mais importantes que nós tínhamos, era o Fernando Pessoa e o
Jorge de Lima. Havia outros, naturalmente, Murilo Mendes,
Drummond, Vinicius.
FM
Desse tempo para cá, o que mudou em sua vida?
CW
Meu estilo de vida é o mesmo. O que mudou foi a realidade
social. São Paulo do começo dos anos 60 era uma cidade muito
careta. O que aconteceu comigo é o seguinte: eu sempre tive uma
cabeça política, mas não política partidária. Em termos de
ideologia política, a de que eu estaria mais próximo seria o
anarquismo. Meu primeiro ato de freqüência de participação
política foi freqüentar aquele círculo anarquista, no Braz, que
tinha na época. Então na hora que abriu o mínimo que fosse eu
comecei a atuar politicamente. Evidente que você promover uma
leitura de poesia, principalmente num período de censura como em
76, numa leitura em que você chega a dizer certas coisas,
naturalmente que é um a to político. Uma coisa de incentivar
mais gente a se manifestar, a falar, a se expressar. E dentro
dessa ótica política eu senti (sempre senti) que o passo
seguinte seria atuar numa entidade de classe. Naquele tempo,
quando censuraram o livro do Ignácio de Loyola Brandão - o
romance Zero -, eu liguei para ele e perguntei se a UBE
tinha se manifestado. Ele disse que não. Então eu comuniquei a
ele que estava à disposição se algum grupo de escritores
resolvesse fazer um movimento para renovar a UBE. Quer dizer, eu
acho uma coisa indispensável. Eu acho que a gente tem que atuar
nessa faixa também, porque a gente tem que tentar criar
condições mínimas para o exercício da atividade da gente,
condições mínimas pra liberdade de expressão e imprensa.
FM
Segundo Jorge Luis Borges, a literatura é a narrativa da perda
da realidade, a imaginação posta no lugar de uma
impossibilidade. Que formas de apropriação da realidade você
utiliza em seu processo de criação?
CW
Eu acho que uma forma delirante. Eu acho que uma tentativa, não
consciente, nota bem, a maior parte dos textos que escrevi foi
muito espontaneamente e poderia ser entendido por uma escrita
inconsciente ou ligada a conteúdos inconscientes, certamente com
muita coisa da pré-consciente, certo? Então não é um projeto,
assim tipo eu vou apreender a realidade, dessa ou dessa forma.
Agora, indiscutivelmente a gente capta a realidade como
totalidade, ou tenta captar os dois pólos da realidade, que na
verdade são um só: o objetivo e o subjetivo. A inspiração
poética estaria na verdade na zona de contradição do confronto
entre o indivíduo e o mundo, entre a subjetividade e o que lhe é
externo. Então é isso aí que a gente capta. Novamente não é bem
uma realidade enquanto dado exterior, enquanto coisa, como faz a
ciência, mas sim enquanto relação sua com algo que lhe é
externo. Já quanto à frase do Borges, o Bataille diz o mesmo, de
outra forma, quando ele diz que a literatura está sempre
destinada ao fracasso, porque ela aspira a uma união impossível,
quer dizer, no fundo ela aspira à consecução do desejo, o que é
impossível porque o desejo é maior que o seu objeto, assim como
o imaginário é maior do que o mundo. Na verdade, é isto que o
Borges está dizendo. Também o Barthes pensava assim.
FM
Segundo Antonio Callado, a função da arte é incitar o homem à
permanente escalada de si mesmo. Que papel deveria desempenhar o
poeta em nosso tempo?
CW
Para mim, a função da poesia é inquietar, é mexer com a cabeça
das pessoas. Metaforicamente eu digo que o que eu quero com a
poesia é deixar todo mundo louco. Eu acho que isto está bastante
próximo do que Callado queria dizer nesta citação. Inquietar uma
pessoa é um estágio para levar a pessoa a se superar, a se
modificar, que é o sentida da frase dele. A poesia muda a
consciência, muda a percepção, a partir do momento em que
balança os parâmetros da pessoa, seus referenciais. Agora, se a
poesia brasileira está fazendo isto ou não, isto não é um
problema de omissão, isto é um problema de qualidade, quer
dizer, o problema da poesia brasileira é que a produção poética
contemporânea brasileira é fraca. A verdade é essa. Você compara
o que se escreve hoje no Brasil com o que se escreve em
Portugal, infelizmente a poesia brasileira é cerebral, tem dois
vícios: a linha da pesquisa formalista (que tem coisas
interessantíssimas, mas é cerebral demais, muita coisa de
intelectual de gabinete) e a linha da poesia engajada, de uma
preocupação social que infelizmente cai no texto discursivo,
pobre em criação de linguagem, em inovação. O que acontece é
isto. Agora, do lado do marginal, a safra marginal, também
acontece uma poesia pobre, redundante, tem certos momentos
poéticos que se perderam, quer dizer, poucos poetas brasileiros
têm imagens poéticas, que é uma coisa fundamental. A poesia se
fundamenta em duas coisas: ritmo e imagem. O ritmo,
eventualmente se encontra. Já a imagem é mais difícil. A poesia
brasileira faz parte da tradição literária brasileira que é
preciosista. De modo geral, o Brasil sofre do vício da
literatura preciosista e desligada da sua realidade social,
sofre do vício do beletrismo, que no fim dos anos 50 começou a
reaparecer sob forma de vanguardismo, quer dizer, vanguardismo
beletrista, não um vanguardismo de rebelião, de contestação e
ruptura. Houve o seguinte: as revoluções literárias no Brasil
que não aconteceram, que ameaçaram acontecer mas não
aconteceram. Um exemplo na pesia marginal: ela começou a mexer
com uma prosódia baseada na fala popular, na fala do malandro, o
que seria um belo projeto literário se se tivesse levado isto em
frente. Veja a obra do Chacal, tem poemas excelentes dentro
dessa linguagem. Só que ele mesmo parou com isto. Este é só um
exemplo. Podem ser dados muitos outros. Há no Brasil uma falta
de consciência do poeta com aquilo que ele está mexendo, e um
vício brasileiro de não saber se ler a si mesmo. O Brasil não
sabe ler seus próprios poetas. Evidentemente o problema da
poesia faz parte de um problema geral de má qualidade da
discussão cultural e da recepção cultural. O Brasil marginalizou
seus valores literários.
FM
A chamada literatura marginal teria servido apenas para
“sancionar e sacramentar” - usando terminologia sua - os valores
de nossa sociedade e o seu “aparato repressivo”, ou teria outra
conotação?
CW
Se você pega o livro da Heloísa Buarque de Hollanda, o
Impressões de viagem, o enfoque dela é contrário, ela cita o
Walter Benjamin, para mostrar que é um tipo de poesia que
questiona a sociedade, quer dizer, o poeta marginal estaria numa
relação contraditória, negando a sociedade em que vivemos.
Agora, evidentemente se precisa ver até que ponto essa produção
poética chega a fazer isto. Eu acho a abordagem dela unilateral,
acho que há um grave risco, que não é só dela, que é o de
segmentar a história da literatura brasileira, aquela coisa de
compartimentar, ou seja, uma poesia é concreta, outra é
praxista, outra é engajada, outra marginal. Fica então
seccionando e segmentando arbitrariamente um negócio que na
verdade é de continuidade. Agora, em princípio, haveria, pelos
menos em tese, alguns valores poéticos, porque, nota bem, a boa
poesia, a poesia pra valer, ela vai questionar o mundo, a
sociedade. Isso é natural. Então, na medida em que haja bons
poetas, isso acontece. A questão neste momento não é avaliar a
poesia marginal em bloco, e sim discutir valores poéticos que
podem ou não se aplicar a poetas considerados representativos da
poesia marginal. Veja bem: na Europa, por exemplo, um autor é
considerado sério depois que publica seu quinto livro. Aqui há
um excesso de euforia pelo novo, quer dizer, um cara escreve um
negócio diferente, e vira um inovador. Agora, tem que ver o que
ele faz depois em cima desse negócio diferente, se ele tem
fôlego para continuar essa proposta. Para mim, então, a questão
“marginal” é uma questão em aberto. Quanto a nomes, é realmente
muito cedo para se falar em nomes, porque o que houve foi uma
coisa do tipo a Heloísa Buarque começar a divulgar a turma dela
de poetas, aí o Moacyr Félix constituiu a turma dele, quer
dizer, eu acho que isto não beneficia a poesia dos autores, ou
seja, uma revelação precoce que pode levar a equívocos.
Inclusive a uma rotulação inadequada do poeta, tipo uma coisa
aparecer como expoente de uma neomarginália (o que não tem nada
a ver), e a outra como expoente de um neopopulismo, e de repente
não ser mais nada disso.
FM
No Brasil, que é uma espécie de mestre de má leitura das
vanguardas, o que nós temos de genuinamente brasileiro em se
tratando de vanguarda literária?
CW
Indiscutivelmente o Modernismo de 22. Vanguarda no sentido de
movimento de vanguarda foi somente 22. Tivemos autores
vanguardistas. Em certo sentido Sousândrade é vanguardista.
FM
Mesmo com as afirmações de Blaise Cendrars de que o movimento de
22 não teria sido uma vanguarda genuinamente brasileira…
CW
Isto é muito discutível. Agora, o ponto onde eu queria chegar é
que a vanguarda de 22 acontece mesmo é em 28. 22 foi um
movimento de ruptura muito vago, somando uma série de propostas
as mais diversas. Agora, 28 é o ano da Antropofagia e o ano de
Macunaíma. Aí, sim, aí estamos realmente falando de
propostas consistentes de vanguarda. Se você pega a poesia do
Mário de Andrade, da fase de 22, como Paulicéia desvairada,
é muito engraçado, não? É meio irreal, quer dizer, São Paulo é
uma cidadezinha provinciana, que não tinha nada a ver. Tinha o
aspecto de renovação formal, escrever em verso livre,
coloquialmente, informalmente, mas a língua brasileira, ela se
transforma muito rapidamente, gírias, signos que têm a vida
muito curta, daí o coloquial do Modernismo hoje se encontrar
anacrônico, é mais antigo do que o vernáculo, do que o falar,
digamos assim, mais castiço, mais literário. A fala popular e o
coloquial envelheceram mais. Isto é um dado importante, porque o
pessoal quando começar a traduzir, por exemplo, a geração
Beat, usando uma fala juvenil mais atual, periga isto ficar
obsoleto daqui a dez anos, assim como a gíria juvenil dos anos
60 no Brasil está inteiramente obsoleta. É interessante essa
dinâmica brasileira, tem a ver com a dinâmica da sociedade
brasileira como um todo. Tudo se transforma numa rapidez
incrível. É só pensar que em 22 São Paulo tinha por volta de 200
mil habitantes, em 54 tinha um milhão e meio, e agora tem doze
milhões.
FM
Essa dinâmica, poderíamos chamá-la de pluralismo ou
fragmentação?
CW
Fragmentação, sem dúvida. O Brasil é um país plural, o que é um
grande desafio para a cabeça das pessoas. O Brasil é isto: o
choque de realidades diferentes. Certa vez eu estava em Gramado,
passando férias, e por acaso estava com uns tios meus da
Alemanha. Eles logo ficaram perplexos, porque aquilo lá é uma
Alemanha que não existe mais, assim como você vai no Braz, em
certas cantinas e pega uma Itália que hoje em dia não existe
mais na Itália. Agora, em Gramado eles circulam falando alemão
normalmente, sem nenhum problema. Só falavam alemão, em pleno
Brasil. Também há esse tipo de vida metropolitana aberrante de
São Paulo e Rio. Então esse pessoal que está discutindo cultura
brasileira, o que eu acho que tem de profundamente autoritário é
que eles querem determinar um padrão para tudo isto. Qual seria
a cultura brasileira a ser preservada, a ser defendida? Quer
dizer, a cultura brasileira é esse montante de coisas,
eventualmente conflitantes entre si, e que inclui a recepção de
cultura estrangeira. O Brasil sempre foi um importador cultural,
só que sempre como reaproveitador dessa importação. Nesse ponto,
a noção de antropofagia do Oswald de Andrade é impecável. Esse
tipo de idealização meio xenófoba que está aparecendo, de querer
fechar fronteiras culturais, é a coisa pior que aconteceu: o
neopopulismo, uma ameaça de volta ao “cepecismo”, que é
necessariamente autoritário porque povo e cultura popular é o
povo e a cultura popular da cabeça deles, da elite cultural do
momento. Agora, por causa disso tudo, São Paulo está um local
humanamente rico, excelente para se morar, porque as pessoas se
sentem instigadas pelas dificuldades, daí dialogarem mais, quer
dizer, São Paulo está rico humanamente por causa da diversidade
e do caos, e de tudo o que eles suscitam. Há mais contato,
inclusive bem mais, ao que me parece, do que no Rio. |