Diálogo
com Contador Borges
Floriano Martins
FM
É já uma tradição da poesia brasileira o abismo entre vida e
obra, o que acaba resultando em uma perda da credibilidade nos
dois componentes de uma mesma instância. Como surge o poeta
Contador Borges e de que maneira convives com essa ruptura.
CB
Essa é uma das maiores falácias da literatura. Em parte porque
quem escreve, necessariamente, o faz de dentro do universo das
palavras, que num certo sentido dá mesmo a impressão de correr
paralelo à vida, como se estivéssemos ouvindo o tempo todo um
coração pulsar fora do corpo. Como se sabe, vivemos numa
dimensão simbólica (esta, aliás, deveria estar incluída entre as
outras dimensões). O símbolo está no cerne da vida. Através dele
podemos sentir como a vida funciona, como ela gera seus
prodígios. Do contrário, como se daria um milagre? Como seria
possível o êxtase, o erotismo? Assim, fica difícil conceber a
vida fora do símbolo, dentro das infinitas possibilidades de
trato com esse material demasiado humano que as pessoas têm
conforme suas diferentes formas de percepção. Posto isso, falar
de literatura é necessariamente falar de vida, fazer poesia é um
modo especial de exprimir a vida. A escrita é um fluxo vital que
deriva de nossa experiência de vida. Eu diria até: a literatura
é um de nossos fluxos vitais, um fluxo muito singular, não há
dúvida, por ser híbrido, promíscuo. Nesse sentido, a poesia é um
monstro de feição janusiana, lembrando que Jano, na mitologia,
deus de duas faces, era o deus da passagem. A poesia é a nossa
passagem para a vida, é uma porta aberta na dureza das coisas.
Ela vive de sua ambivalência, metade luz, metade sombra, metade
natureza, metade artifício, metade gente, metade coisa… vive na
medida em que possibilita o trânsito de um lado a outro. Acho
que o que escrevo busca de certa forma reforçar isso.
Intuitivamente, no início; e, de uns tempos para cá, de modo
mais consciente.
FM
Dentro dessa perspectiva iluminada por tuas palavras como
situarias a afirmação de Antonio Medina Rodrigues, em comentário
a teu Angelolatria (1997), de que "a forma é o
futuro da poesia"?
CB
Entendo que a partir do momento em que a poesia alça vôo para
além das ideologias, dos modismos, das escolas, ela se
compromete com uma certa moralidade que lhe é imanente. É a
forma assumindo seus próprios valores até as últimas
conseqüências. Como diz Medina, belamente, “a forma é o que faz
a consumação da vida continuar sendo vida”. O futuro da poesia,
creio, é esse momento a todo instante e em toda parte no qual
sua força se revela a toda prova produzindo singularidades. O
singular, como na natureza, assume várias qualidades, podendo
ser frágil, violento, sutil, grandioso… Qualquer que seja sua
orientação ele será sempre um acontecimento vital na linguagem.
Na poesia, o singular é o eterno trânsito entre a vida e a
morte.
FM
Estás de acordo com René Char quando diz que "a poesia se
incorpora ao tempo e o absorve"? O que nos permite distinguir a
absorção do tempo entre um poeta e outro?
CB
A poesia, de certo modo, faz o tempo dobrar os joelhos. O tempo
nos atravessa como uma estaca, mas também nos arrasta em seu
rolo compressor. Se somos feitos de tempo como diz Octavio Paz,
na esteira de Ser e tempo, de Heidegger a poesia é
uma forma de diálogo com o tempo, uma forma de pensá-lo e até
distendê-lo como matéria. Creio que quando escrevemos (ou lemos)
afetamos nossa relação com o tempo. Você pode até olhar o
relógio e dizer… Já? Mas o tempo de imersão num livro requer
outra forma de medição. O tempo se desdobra numa página, se
esconde numa dobra, se detém numa descrição de cena, num
detalhe, como a parte feminina de um corpo reluzente em “Uns
braços” de Machado de Assis. A propósito, no poema À une
passante, de Baudelaire, quanto tempo leva a mulher para
sair de cena? Eu perguntaria: será que ela realmente sai
de cena, a cena imaginária do poema? O poeta descreve uma paixão
súbita, fulgurante. Nesse ponto, nada é mais efêmero, ainda que
intenso. Mas por mais que você leia o poema esperando que ela vá
embora, que ela desapareça da sua frente, ela está sempre lá,
nas entrelinhas do texto. A arte de escrever um poema também
poderia ser descrita como um corpo-a-corpo com o tempo. Às vezes
ele corre contra, às vezes a favor. E quando finalmente corre a
favor, o que resulta, o poema, é em si mesmo uma vitória contra
o tempo. O poema é o tempo que sobrevive a si mesmo. Quanto à
segunda parte de sua questão, penso que a absorção do tempo numa
determinada poesia, se isso é possível, depende da relação do
poeta com sua escrita. Há poetas que exibem poemas grávidos de
tempo, como René Char ou Jorge de Lima, e outros que parecem
fugir do tempo ou evitá-lo, como Oswald de Andrade. Mas
brevidade e/ou concisão não correspondem necessariamente à pouca
concentração temporal. Muitas vezes uma eternidade pode estar
contida num verso como este de Manoel de Barros: “Eu sou o medo
da lucidez”. Ou nestes de Salvatore Quasimodo: “Nessuna cosa
muore/ che in me non viva”. Assim poderíamos, quem sabe, se
gostamos das especulações, estabelecer um critério para os
poemas e sua absorção de tempo. Quanto mais fulgurante é um
poema, maior deve ser sua carga temporal. Uma carga temporal,
acredito, sujeita a raios e trovoadas.
FM
E onde nasce então o poeta Contador Borges? Há uma genealogia a
ser considerada ou acaso rejeitas a identificação de pistas?
CB
Não rejeito, não. Acho muito interessante vasculhar o chão
histórico das pegadas, Identificar linhas, afinidades,
filiações. A rigor ninguém está livre disso. Picasso dizia que
tirava dos outros tudo aquilo que lhe interessava, e que só
tinha horror de copiar a si mesmo. Li uma entrevista
do José
Kozer em que ele diz quase a mesma coisa. Ou seja: o pessoal só
nasce da intimidade com o alheio, terra ancestral do Outro.
Todos os que de algum modo escrevem o fazem a partir de
cruzamentos com outros autores, e, muitas vezes, impulsionados
por eles. Há provavelmente uma matéria escura feita de traços de
nossos fantasmas literários por trás de tudo o que escrevemos.
Uma obra resulta de um processo de decantação dessa mistura
efervescente, cujos elementos nem sempre podem ser
identificados. Como se forja a sonoridade de um poeta? Será ele
ao fim das contas dono de sua voz? A voz está para os
poetas como a pele para o corpo. Poderíamos dizer que esta voz
vai se tornando própria na medida em que o poeta vai apagando as
marcas à sua volta, sem necessariamente esconder suas origens.
Se a vocação de fato se confirma, haverá um momento em que esta
voz terá de exprimir a singularidade do poeta. A voz é a forma
que sua poesia adquire. Isto sem levar em conta que esta mesma
voz pode ainda se modificar com o tempo, e até ser renegada.
Então haverá outra, ou mais de uma, como no caso de Fernando
Pessoa. A base química que produz a voz também se altera com o
tempo. Outros reagentes interferem, mas fundamentalmente a
substância é a mesma. Assim, a obra de um autor resulta de uma
operação de “diferença” obtida não somente a partir do que leu,
mas também a partir do modo como este material refluiu em sua
vivência concreta. Acho que temos a tendência de ler para
reforçar nossas afinidades. Estamos sempre em busca de
“assonâncias familiares”. É como se déssemos continuidade ao
trabalho de certos autores, à nossa maneira, é claro, e
representássemos mais um eco nessa “concha maior” formada pelos
autores de nossa predileção. Escrever é seguir de perto o halo
de nossos fantasmas. Para onde vão? Para onde vamos? Eis o curso
da literatura. O segredo do rio parece estar nas margens. A
poesia que busco é um ideal nebuloso que se forma entre as
linhas, mas que aos poucos vai sumindo de vista. Acho que o
poeta Contador Borges nasce dessa insuficiência, entre a linha
insinuante e a que esvanece.
FM
Acho que apagas bem as pistas (risos). Estava revendo tuas
traduções de René Char e os ensaios sobre Georges Bataille que
publicamos na Agulha, o que me recordou que Bataille, em
seu Método de meditação, parte justamente de uma epígrafe
de Char: "se o homem não fechasse soberanamente os olhos,
acabaria por não ver o que valesse a pena ser visto". O que crês
que valha a pena ser visto?
CB
Esta frase é mesmo ótima, reluzente em sua ambivalência. Para
ver realmente o que vale a pena é necessário um afastamento em
relação ao sentido utilitário das coisas. Não é desse movimento
que nasce a arte? É a arte, a poesia, que nos ensina a ver
melhor. É o sentido imanente de “fechar soberanamente os olhos”.
Esse olhar que se fecha em sua escuridão luminosa fazendo
“respirar” a visão, retirando-a de sua função normativa. Para
mim, vale a pena ser visto justamente aquilo que se esconde, que
não se presta ao olhar e aos usos utilitários da visão. O vão
entre os raios de uma roda são mais importantes que os próprios
raios como diz o poema de Lao Tse. O que faz o vaso de barro
vaso é o vazio que tem dentro, etc. O que interessa, nesse
sentido, é uma aproximação com o invisível, entrar em seu
horizonte de eventos, se posso tomar emprestado este termo da
física contemporânea. “Natureza ama esconder-se” já dizia o
célebre aforisma de Heráclito.
FM
Em um ensaio sobre Surrealismo chamas a atenção para um aspecto
a ser ressaltado nas idéias defendidas por Breton & amigos, a de
que "a literatura e a arte podem conservar em si mesmas um
permanente desejo de revolução". Contudo, a escrita automática
acabou se tornando uma espécie de cavalo de batalha para toda
rejeição ao Surrealismo. A argentina Olga Orozco refere-se à sua
identificação com "a valorização do onírico, a emoção exaltada
da liberdade, a justiça e o amor", em seguida destacando: "mas
nunca fiz automatismo nem poemas subconscientes". Até que ponto
se mesclam, neste caso, falha de interpretação e preconceito?
CB
Muito dessa crítica e/ou preconceito se deve ao fato de que a
“tal revolução” não vingou, tornando conseqüentemente o
surrealismo um movimento datado. No entanto, o que a meu ver é
definitivo nesta fórmula é que ela resume a função da literatura
e das artes naquilo que considero essencial: a sinalização de um
horizonte, de um rasgo de possibilidades imanentes ao homem, à
cultura, à civilização. Se a escrita automática não resulta em
todos os casos (ou definitivamente) das comportas abertas do
sonho, do inconsciente, ao menos reforçou na literatura a idéia
de que uma certa margem é sempre necessária à criação. As
margens são tão necessárias à arte quanto os guetos às minorias
discriminadas. Mas só na medida em que aos poucos serão
abandonados para a livre vazão de seus fluxos, pois estas
margens serão fatalmente incorporadas à cultura, às instituições
e tornar-se-ão inoperantes. Cabe à arte instalar novas margens,
pois é lá que sopram os ventos da utopia que impulsionam a
existência e a vida. A arte, provavelmente, não tem o poder de
transformar o mundo, mas pode materializar esteticamente esta
possibilidade e difundir este ideal ao eco das gerações. Como
diz René Char, “quem não vem ao mundo para perturbar não merece
respeito nem paciência”. Provocar sim, incomodar e ousar além
dos limites, acomodar-se jamais.
FM
Vamos agora a Bataille e a intrínseca relação que traça entre
mal e literatura. Consideras acaso a tragédia - “memória do
infortúnio”, como lhe chama o venezuelano José Antonio Ramos
Sucre - uma arte superior? Segundo Ramos Sucre, “o mal introduz
a surpresa, a inovação neste mundo rotineiro”, observando ainda
que, sem ele, “chegaríamos à uniformidade, sucumbiríamos na
idiotice”. Como relacionar esse entendimento do mal como o pai
de toda beleza com a angelolatria que propões em teu
livro homônimo?
CB
Pois é, a literatura, como diz Bataille “é essencial ou não é
nada”. E ser essencial é fatalmente apelar às profundezas do
homem, para além (ou aquém) de todo lirismo. O “mal” é essa
dimensão que a civilização procurou varrer para debaixo do
tapete em nome de um bem moral arquitetado em seu nome, isto é,
em nome da ocultação dos poderes do homem. A poesia é a
liberação de outros gastos excessivos análogos ao erotismo, ao
riso, à morte. A poesia, segundo Bataille, leva ao mesmo ponto
que o erotismo, ou seja: libera a “parte maldita” do homem, a
sua verdade mais íntima. Nesse sentido, a grande poesia é a da
negação. Uma poesia violenta como a de Rimbaud, por exemplo. É
preciso violentar a língua para que ela reaprenda a exprimir
docemente o sentido do homem. Essa violência é necessária,
porque ela visa o sublime. O sublime é onde o homem estaria se
não fosse o homem.
FM
Diz um poema teu: “A pele desta sombra / tem o peso de uma chama
/ alegre e lúcida / em sinal de fúria”. Traças uma surpreendente
aliança entre alegria e lucidez, que sugere uma outra, entre
ciência e imaginário. Talvez seja verdade que as máscaras acabam
protegendo o rosto vazio do autor. Como convives com essas
alusões ou zonas de tensão?
CB
Convivo muito bem. A poesia é uma arte de agenciamentos. Pode-se
dizer que o romance é naturalmente o gênero de maior pluralidade
discursiva, o texto dialógico, etc. A poesia, entretanto, apela
a outros discursos e seu temas de maneira mais íntima, como
“música de câmara” que é. Acho que levar a “sonda” da poesia,
seu “olhar invertido” de anamorfose para outros territórios é
produtivo não apenas para a poesia como também para eles. O que
seria da ciência sem as metáforas poéticas? Um físico certa vez
disse que a matéria escura que preenche a maior parte do cosmo é
como uma multidão de senhores invisíveis de smoking dançando com
as belas damas brilhantes, as estrelas. Isto não é poesia? Da
mesma forma, a poesia faz a “ciência” das coisas, isto é, faz as
coisas falarem. Com a poesia, as coisas falam, as coisas sentem,
e, assim fazendo, deixam de ser coisas. Tornam-se simplesmente
(nobremente) seres de linguagem. A poesia, diz o filósofo
Heidegger, é a casa do ser.
FM
Em teu novo livro chama a atenção a presença valiosa do poema em
prosa, com raros antecedentes em nossa tradição poética. O que
te levou a esse gênero de exceção?
CB
O poema em prosa é a prova contundente de que a poesia não
depende de seu tradicional gênero histórico de natureza
versificada. Ela está além dos gêneros, ou melhor, entre
os gêneros, uma vez que seu empenho todo é dar conta dessa
“outra voz” de que fala Octavio Paz, a enunciação que o poeta
amealha no embate interno da língua. A poesia, sim, se serve dos
gêneros (prosa ou verso) para debelar-se. Ela não se reduz,
portanto, a um gênero exclusivo, na medida em que um fluxo, um
líquido não depende necessariamente de um único meio condutor,
mas se espalha em várias direções e formas. O que é fantástico
no poema em prosa, a meu ver, é que ele é uma espécie de
exercício de “poesia nua”, se você quiser, uma poesia despida de
seus tradicionais “calções de banho”, o verso ou a linha curta.
Isso faz do mergulho um acontecimento estranho, onde o olhar
parece perder-se num emaranhado que aos poucos vai fazendo
sentido, revelando seus segredos de meandro, seus claro-escuros
instigantes, a pura ambivalência. O poema em prosa é um texto
plural, feito de enxertos de várias modalidades discursivas,
todas ali, jogando um papel novo no palco da fabulação poética.
O poema em prosa potencializa a poesia, é a liberdade da poesia.
Acho que fui levado a ele pela leitura dos franceses, sobretudo,
Char e Michaux, e também dos surrealistas. Foi uma grande
satisfação para mim constatar depois que havia poetas
brasileiros fazendo isso, como Claudio Willer e Roberto Piva,
dois exímios praticantes desta arte. Hoje em dia vejo que este
“gênero de exceção” encontrou novos cultores entre nós como
Jorge Lucio de Campos, Juliano Garcia Pessanha, Carpinejar (uma
verdadeira usina de metáforas) e você mesmo, é claro, com este
livro que gosto muito, Cinzas do sol. |