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COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Cruzeiro Seixas | (1920)

Cruzeiro Seixas: A porta do mistério

 

Floriano Martins

 

Em uma carta enviada a Cruzeiro Seixas, em 1966, lhe escreveu dizendo Laurens Vancrevel que “cada um dos teus poemas é uma mandrágora, cada palavra é uma esfinge”. E entrelaça-se nesta observação o mítico com certa condição afrodisíaca da poética de Cruzeiro Seixas, no que ela tem de intensa capacidade de lidar com as forças mais íntimas, revelando-lhe sua vitalidade original. Mescla, portanto, enigma e erotismo, signos que lhe definem tanto poética quanto plasticamente, uma vez que o amálgama é tão vigoroso que, a exemplo do que se passa também com o chileno Ludwig Zeller, por momentos se confunde qual mundo nos habita, se o poema ou o desenho, a collage, a pintura.

Este momento de perplexidade alude a um sentido de eternidade que sugere ser nossa única maneira real de estar no mundo. Através dele, Cruzeiro Seixas desperta-nos para o convívio com o maravilhoso que constitui a existência humana. E o faz por estalos cortantes da metamorfose que aplica às suas imagens, que não são propriamente deformações ou distorções, mas antes uma ousada oferta ou vislumbre de formas dentro de formas, um bailado de interioridades que se revelam transfigurando memória e hábitos conceituais. E estão ali, no acertado entendimento de Ernesto Sampaio, “como metáforas dos seus sonhos, obsessões, cóleras, temores e desejos, espécie de espelho mágico, alternadamente fasto e nefasto, que desfigura e transfigura as imagens”.

A obra de Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920) está ligada intrinsecamente ao Surrealismo, a esta “vida de imaginação”, a este “certo poder de repulsa e de obstinação” a que se reporta Mario Cesariny em seu Final de um manifesto, de 1949. Não cabe aqui historiar as convulsões intermináveis e valiosas do Surrealismo português, mas apenas destacar a presença constante de Cruzeiro Seixas em seus desdobramentos mais viscerais, mesmo tendo em conta a larga ausência, de 1952 a 1964, que equivale aos anos vividos na África, precisamente em Angola.

A este respeito, não se pode deixar de mencionar um entendimento das viagens como pontos de fuga, ou seja, a idéia de que alguns surrealistas portugueses teriam buscado no exterior um refúgio para si, confirmando certa impossibilidade do Surrealismo se dar em Portugal. Qual realidade é propícia à arte? E com quantos recursos conta um artista para acentuar este abismo entre arte e realidade? A geografia da fuga está situada além, ulteriormente. As viagens de Cruzeiro Seixas para a África, de António Maria Lisboa para a França, de Fernando Lemos para o Brasil, por exemplo, não implicam necessariamente em fugas, exceto no sentido de denúncia de uma sociedade insustentável. Trata-se mais de uma subversão do que propriamente de subterfúgio.  Cruzeiro Seixas tem sido sempre, isto sim, um grande viajante dentro de si mesmo, com percepções singulares em torno do Surrealismo e das oscilações de humor da sociedade portuguesa. Ao final desta antologia, encontraremos alguns aspectos pontuais em termos de sua atuação no Surrealismo, bem como seu admirável sentido de humor e compromisso diante do que faz refletido nas cartas a mim dirigidas e que acompanharam o processo de configuração deste volume. Mas, essencialmente, o que teremos são seus poemas e desenhos.

Estando diante dos poemas e pensando em termos de tradição lírica brasileira, que sempre repudiou o Surrealismo em quaisquer instâncias, requer lembrar que somos visitados por um tipo de poesia que, a exemplo de René Char, considera-se “um entendimento com o inesperado”. É todo um mundo de descobrimento se contrapondo ao vício da invenção de nossa lírica. Caberia aqui lembrar Malcolm de Chazal, ao dizer que “não faço literatura: o que faço é contar a vida”. Este mergulho em um abismo onde se pretende descobrir a idade do homem, sua confissão vivente, é o que mais vem à tona na leitura de Cruzeiro Seixas. Sua viagem requer o risco da descoberta e não da anulação. Não se frustrará, portanto, com o que lhe revelem tempo e espaço.

Trata-se de uma poética de provocação de si mesma, de desafiar-se ao chafurdar no lodaçal da própria existência, desafiar-se a mostrar onde se ocultam o mistério e o erotismo que anunciam as imagens que saltam magicamente de seus versos, por exemplo. Como ele mesmo diz, sua aflição nada “tem a ver com a lógica exigida pelo poema”. Daí que subverta por completo qualquer leitura tópica que acaso se busque em sua poesia.

A dicção de Cruzeiro Seixas possui tal singularidade que beira o excêntrico em termos de lírica portuguesa. Mas é fato que sua obra plástica ofertou-se melhor a público do que sua poesia, sendo inúmeras as exposições de que participou – individuais e coletivas –, bem como as primorosas edições de catálogos, o que lhe deu imenso reconhecimento nesta área, superior à obra poética, promovida esparsamente ao longo dos anos, embora felizmente agora em plena recuperação com a publicação da poesia completa, que conta, até o momento, com três largos volumes.

Este grande poeta do maravilhoso, que soube tocar provocativamente os abismos mais suspeitos e desejáveis de nossa existência, é um possuidor possuído de tal riqueza de imagens que apenas nos convida a nos entregarmos a elas, que esqueçamos tudo, toda a demarcação de costumes, e percebamos por fim a magia que podemos sacar de nós mesmos, esta realidade nua que enganosamente vemos demasiado vestida, e que se mostra em seu traje de ação na poética de Cruzeiro Seixas, instância em que mistério e erotismo se apresentam invariavelmente conjugados e em cujo mergulho no mergulho na solidão é de ordem ascética.

Tem sido um homem intrinsecamente apaixonado pelo Surrealismo, por todos aqueles aspectos essenciais do Surrealismo que lhe iluminam a vida e permitem que respire livremente seu espírito, compreensão de uma revolta inerente e sedução de um mundo que se liberte de amarras de toda ordem. Jamais escreveu um único verso em outra direção. Trata-se de uma dessas figuras míticas, um tipo de mago pertinaz. Uma imagem que naturalmente rejeita, por mais que entenda seu alcance.

E agora entrá-lo no Brasil, onde um Murilo Mendes, por raro exemplo, não é exposto senão como modismo ou capricho, é risco da mesma ordem de quando se publicou aqui René Char – na belíssima tradução de Contador Borges –, o de passar de todo despercebido pela crítica. Mas qual risco não impera em uma sociedade como a nossa, onde se programa até o último suspiro e tudo em nome de uma contingência carnavalesca onde nada se controla? A idéia que se tinha de fuga em Portugal cai por terra pensando no desastre cultural brasileiro evidenciado por todos nós. Tal circunstância, no entanto, não impede o surgimento de grandes expressões artísticas, de uma margem ou outra do Atlântico. Cruzeiro Seixas é das máximas expressões poéticas de Portugal chegadas até nós.

[Prefácio do livro Homenagem à realidade, de Cruzeiro Seixas. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2005.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

     1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
    2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
     3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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