Cartas de
Cruzeiro Seixas a Floriano Martins
Caro
poeta Floriano Martins
A
comunicação com o Surrealismo do Brasil infelizmente só me foi
possível quando, em 1967, Sérgio Lima organizou a exposição “A
Phala”. Mais tarde visitou-me Sara Ávila. Há muitos anos dirigia
eu a Galeria S. Mamede e digiri-me à Embaixada do Brasil no
intuito de conseguir uma exposição de Maria Martins, a quem tão
calorosamente se referiu Breton. Recebi 2 cartas entusiastas da
Senhora Embaixatriz, a que se seguiu o mais absoluto silêncio.
Para além destes contatos apenas posso referir a minha costela
brasileira, pois minha avó materna era natural do Pará. Assim
agradeço o teu contato, e a citação de minha autoria no pórtico
do teu livro. Tudo muito tocante, como é de esperar de coisas
que têm como raiz profunda a Poesia. Junto te envio o 2º volume
da minha poesia que acaba de sair. Para meu espanto, dizem-me a
Isabel Meyrelles e o editor que ainda há material para mais 3
volumes!
Quanto ao
questionário respondo por certo de forma excessiva, mas não sei
fazer de outra forma, e não é agora com a D. Morte sentada à
minha porta que me vou modificar.
Dizem-me
que há
gente nova
muito
interessada no Surrealismo. Não podia deixar de ser, mas se não
me procuram eu também não posso fazer mais do que os pressentir
apaixonadamente. Nunca fui muito convivente, e nunca me sobejou
TEMPO para o convívio de cafés, bares etc. etc. Tenho a certeza
de que haverá surrealismo ama nhã. Relato-te uma espécie de
anedota acontecida há algumas semanas numa das livrarias de
Lisboa. O proprietário informava-me de que há muita
gente nova
procurando
livros sobre o Surrealismo. Respondo-lhe que a mim raramente me
procuram, e ele contrapõe que, na verdade, não procuram
referências ao Cesariny ou a mim, mas sim ao Surrealismo…
Os
melhores votos e o abraço surrealista do
Artur
[25-X-2003]
Caro
Floriano
Respondo
tão rapidamente quanto possível à tua carta, pois na minha idade
já nada deve ser adiado. Agradeço que tenhas reduzido as tuas
propostas a uma antologia da minha poesia com o prefácio de tua
autoria. Sobre a minha poesia é pouco ou é quase nada o que se
tem escrito. Há por exemplo referências em cartas do Herberto
Hélder, mas ainda nenhum escritor ou ensaísta referiu os 2
volumes já editados pelo Valter Hugo Mãe.
Parece que
para que nos refiram aqui e agora é necessário entrar em
circuitos de elogio mútuo, para o que não me sinto vocacionado.
E além disto há os disparates sem pés nem cabeça, como a
estranha colagem do Rui Mário Gonçalves ao Fernando Azevedo ao
José-Augusto França ao António Pedro. Que falta faz um Almada
Negreiros, que diga que esses são os Dantas de hoje! Pode-se
classificar como ortodoxia o que se passa com o Cesariny que sem
critério aparente aparece e desaparece à boca de cena? Sobre mim
escreveu ele em 1963: “Pede-me Cruzeiro Seixas um texto que
circule na exposição, a terceira que vai fazer em África. Que
dizer-lhe ou dizer se não que ele é o Poeta, aquele que entre
nós melhor do que nós se conduziu ao combate, ao único combate
verdadeiro, o que luta sem fim pela inteligência do homem; e de
todos nós ele é quem mais encontrou o segredo de partir sempre,
arriscar tudo sempre, exigir sempre a forma mais pura, a
libertação mais dura da própria imaginação.” Ortodoxo não sou eu
ou não o quereria ser, mas muito me assusta que se volte ao
surrealismo como se fosse coisa morta, ou apenas coisa
histórica. E mais ainda assustador, se possível, que nele se
procurem chorudos lucros financeiros! Disso sempre fugi com a
minha pintura. Fiquei fixado num tempo em que tudo era
diferente. Mas o Brasil é uma grande tentação, e a ela
confessadamente me entrego. Lembro a existência de um Di
Cavalcanti na expo de Famalicão; foi-me dado pela Sara Afonso,
que foi mulher do Almada. O desenho tinha-lhe sido oferecido
pelo próprio Di Cavalcanti. Infelizmente é a única representação
do Brasil; ninguém me sabe dar notícia da Maria Martins, a quem
Breton se refere calorosamente.
Quanto a
esta minha coleção (ex-coleção), ela será dificilmente
compreendida para além desta sufocante fronteira, mas a verdade
é que aqui é ÚNICA, tendo sido feita por paixão, não por
dinheiro, que foi coisa que nunca tive. Em Portugal muito
raramente fazem coleções, e quando isso acontece, quando do
falecimento do colecionador a família apressa-se a dispersar
tudo. Desde há alguns anos as
pessoas
chamam coleção a 20 ou 50 obras que decoram as suas casas, e de
que esperam um feliz empate de capital…
Sugeri à
Fundação de Famalicão que a expo seja tornada itinerante, pois
não me parece suficiente um ou dois visitantes por dia; dizem-me
que sim, mas só acreditarei quando, segundo prometem, a expo
aparecer aqui em janeiro, na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Aqui tens
mais uma carta, certamente excessiva. Os melhores votos e o
abraço do
Cruzeiro
Seixas
P.S.:
Muito agradeço o
Rascunho,
que parece respirar satisfatoriamente.
[s/d.,
dezembro de 2003]
Caro
Floriano
Junto o
catálogo da exposição da minha coleção, que te dará uma idéia do
trabalho que representou a seleção das obras, e tudo o mais
necessário a esta realização. Por isso só hoje respondo à tua
carta de 17 de março, do que me desculpo. Além de tudo o mais
não é fácil estar a viver agora numa casa com as paredes nuas.
Mas esta exposição tinha que se fazer, pelo menos para provar
que não é necessário ser milionário para fazer uma coleção. Foi
apenas por paixão que fiz tudo o que fiz, tudo o que fiz na vida
– em paixão fui de fato milionário! Creio que a Rosa Alice
Branco fez o favor de estar presente nesta exposição, mas no
meio de tanta gente e de uma certa desorganização portuguesa,
era muito grande o
meu
cansaço e confusão.
Desculpa-me se o teu excesso de projetos me assusta. Sempre
preferi “engatar” a ser “engatado”. E julgo que devo o nome que
tenho principalmente à minha solidão; nunca fiz parte de
tertúlias, a não ser na ingenuidade dos vinte anos. Aprendi
muito – aprendi o que não queria aprender, e já não há nada a
fazer deste
frágil
bloco de cimento armado
que sou.
Contra mim mesmo, a minha denúncia e protesto.
Daqui a
alguns meses, ou daqui a um ano ou dois (na pior das hipóteses)
já cá não estarei, e então TUDO será possível. Desculpa-me se te
peço para reduzir para metade a tua tão generosa oferta. Creio
que no meu caso já está suficientemente provado que não se trata
de ortodoxia. A palavra que me corresponde possivelmente não
está no dicionário; desenhei e pintei e escrevi,
sem me
considerar pintor ou escritor.
Principalmente se trata de algo como uma necessidade
fisiológica, à falta de algo mais expressivo contra o dia a dia
que temos, e refiro-me a coisas velhas como a guerra da Etiópia,
a guerra de Espanha, a esperança na derrota no nazismo/fascismo,
a
permanente
crise,
sempre com milhões de vítimas… Vivo mergulhado no absurdo, e
parece-me agora tão absurda a atenção que me dão, como a que não
me dão.
Será isto
uma carta? As minhas desculpas e o forte abraço do
Cruzeiro
Seixas
[18 Maio
2004]
Caro
Floriano
Festejo a
tua atividade e paixão, pois muito me choca o desapaixonamento
cada vez mais e mais acentuado dos portugueses. “Aterrorizado e
tremente”, como dizia William Blake, dou todo o meu acordo à tua
imaginação. Tal projeto, há um ano me pareceria completamente
impossível. Ou será que coisas destas acontecem quando se está
já à beira da cova funda? Há mil títulos possíveis e esse de
Homenagem à Realidade
tem o meu
acordo. “Uma ferida que dança” é um texto do Edouard Jaguer que
é um velho amigo, e figura histórica entre os surrealistas como
entre os “Cobra”. Nos meus papéis reina o mais ativo dos
furacões e por isso nada foi fácil. A cronologia atualizada por
certo é excessiva; reduzi tanto quanto posso e sei, mas
evidentemente que tens toda a liberdade de reduzir ainda mais.
Também para qualquer outro seria relativamente fácil tudo isto,
mas para mim nada é fácil. Junto o 1° volume da Poesia e
aproveito para telefonar ao Hugo Mãe a reclamar a saída do 3º
volume. Também junto diversas fotografias. Ofereço-te estes
livros e catálogos, e se não envio mais é porque estão esgotados
ou a caminho disso. Isto que me propões parece mais um álbum do
que um simples livro! A tiragem é que parece pequena para um
país tão grande. Também envio o catálogo de uma exposição em
que, além do belo texto do Ernesto Sampaio encontrarás alguns
dos meus Desaforismos – e muitos outros existem à espera de sair
da incômoda gaveta onde amarelecem.
Quanto à
parte burocrática, isso é chinês para mim, mas toda a
documentação que me foi enviada foi reenviada devidamente
assinada.
Na
verdade, saí-me bem dos livros já publicados pela “Soctip” em
1989, pela Fundação de Famalicão em 2000, e
Viagem sem
Regresso,
edição “Tiragem Limitada” e
Local onde
o mar naufragou,
editado pela Galeria S. Bento em 2001.
Essa
questão de Artur do Cruzeiro Seixas ou somente Cruzeiro Seixas
é-me quase indiferente; foi a Isabel Meyrelles e o editor que
resolveram como entenderam. Para as exposições é desde sempre
usado o Cruzeiro Seixas, mas diz-me tu como te parece mais
acessível ao público brasileiro que desconheço. A minha escrita
é datada de Áfricas (a África continente negro e o continente
negro que sou), em sentida homenagem aos anos que ali vivi. Mas
as datas que figuram não correspondem nunca a qualquer exatidão,
tendo a intenção de confundir biógrafos e exegetas, e aos seus
processos acadêmicos.
E quanto à
pintura, nunca tive método. Quando começo a desenhar ou a pintar
muito raramente tenho uma idéia nítida. Esqueço ensinamentos e
teorias, não penso em coisas como desenho ou pintura, mas sim no
amor, na morte, nas pessoas que conheço e principalmente nas que
desconheço. O que desejaria presente era um reflexo do mundo
através de mim, era dar uma idéia do homem e da sociedade que
criou – e que o sufoca. Tenho feito ausências de Lisboa levado
por amigos ao norte para ser operado às cataratas; isso tem
recomplicado a tão frágil organização dos meus dias. Até agora
não sinto quaisquer melhoras, e é triste reconhecer que estou a
perder a independência que tanto prezo.
Perturbador foi também um telefonema do Cesariny, a pretexto de
me felicitar calorosamente pela poesia editada, isto depois de
uns 30 anos de distanciamento quase total. Creio que a
verdadeira razão deste telefonema é o peso dos 80 anos, que
precisam ser compartilhados. Nunca será demais constatar que do
surrealismo em português a D. Morte se empenhou em arrebatar
vinte e tal, por certo alguns dos melhores, como o António Maria
Lisboa, o Mario Henrique Leiria, o Júlio, o D’Assumpção, o
Areal, o António Dacosta, o António Quadros, o João Rodrigues, o
Mario Botas, o Jorge Vieira, o O’Neill etc. etc.etc.
Os
melhores votos e o abraço grato do
Artur
[17
outubro 2004] |