P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Cruzeiro Seixas | (1920)

Cartas de Cruzeiro Seixas a Floriano Martins

 

Caro poeta Floriano Martins

A comunicação com o Surrealismo do Brasil infelizmente só me foi possível quando, em 1967, Sérgio Lima organizou a exposição “A Phala”. Mais tarde visitou-me Sara Ávila. Há muitos anos dirigia eu a Galeria S. Mamede e digiri-me à Embaixada do Brasil no intuito de conseguir uma exposição de Maria Martins, a quem tão calorosamente se referiu Breton. Recebi 2 cartas entusiastas da Senhora Embaixatriz, a que se seguiu o mais absoluto silêncio. Para além destes contatos apenas posso referir a minha costela brasileira, pois minha avó materna era natural do Pará. Assim agradeço o teu contato, e a citação de minha autoria no pórtico do teu livro. Tudo muito tocante, como é de esperar de coisas que têm como raiz profunda a Poesia. Junto te envio o 2º volume da minha poesia que acaba de sair. Para meu espanto, dizem-me a Isabel Meyrelles e o editor que ainda há material para mais 3 volumes!

Quanto ao questionário respondo por certo de forma excessiva, mas não sei fazer de outra forma, e não é agora com a D. Morte sentada à minha porta que me vou modificar.

Dizem-me que há gente nova muito interessada no Surrealismo. Não podia deixar de ser, mas se não me procuram eu também não posso fazer mais do que os pressentir apaixonadamente. Nunca fui muito convivente, e nunca me sobejou TEMPO para o convívio de cafés, bares etc. etc. Tenho a certeza de que haverá surrealismo ama nhã. Relato-te uma espécie de anedota acontecida há algumas semanas numa das livrarias de Lisboa. O proprietário informava-me de que há muita gente nova procurando livros sobre o Surrealismo. Respondo-lhe que a mim raramente me procuram, e ele contrapõe que, na verdade, não procuram referências ao Cesariny ou a mim, mas sim ao Surrealismo…

Os melhores votos e o abraço surrealista do

Artur

[25-X-2003]

 

Caro Floriano

Respondo tão rapidamente quanto possível à tua carta, pois na minha idade já nada deve ser adiado. Agradeço que tenhas reduzido as tuas propostas a uma antologia da minha poesia com o prefácio de tua autoria. Sobre a minha poesia é pouco ou é quase nada o que se tem escrito. Há por exemplo referências em cartas do Herberto Hélder, mas ainda nenhum escritor ou ensaísta referiu os 2 volumes já editados pelo Valter Hugo Mãe.

Parece que para que nos refiram aqui e agora é necessário entrar em circuitos de elogio mútuo, para o que não me sinto vocacionado. E além disto há os disparates sem pés nem cabeça, como a estranha colagem do Rui Mário Gonçalves ao Fernando Azevedo ao José-Augusto França ao António Pedro. Que falta faz um Almada Negreiros, que diga que esses são os Dantas de hoje! Pode-se classificar como ortodoxia o que se passa com o Cesariny que sem critério aparente aparece e desaparece à boca de cena? Sobre mim escreveu ele em 1963: “Pede-me Cruzeiro Seixas um texto que circule na exposição, a terceira que vai fazer em África. Que dizer-lhe ou dizer se não que ele é o Poeta, aquele que entre nós melhor do que nós se conduziu ao combate, ao único combate verdadeiro, o que luta sem fim pela inteligência do homem; e de todos nós ele é quem mais encontrou o segredo de partir sempre, arriscar tudo sempre, exigir sempre a forma mais pura, a libertação mais dura da própria imaginação.” Ortodoxo não sou eu ou não o quereria ser, mas muito me assusta que se volte ao surrealismo como se fosse coisa morta, ou apenas coisa histórica. E mais ainda assustador, se possível, que nele se procurem chorudos lucros financeiros! Disso sempre fugi com a minha pintura. Fiquei fixado num tempo em que tudo era diferente. Mas o Brasil é uma grande tentação, e a ela confessadamente me entrego. Lembro a existência de um Di Cavalcanti na expo de Famalicão; foi-me dado pela Sara Afonso, que foi mulher do Almada. O desenho tinha-lhe sido oferecido pelo próprio Di Cavalcanti. Infelizmente é a única representação do Brasil; ninguém me sabe dar notícia da Maria Martins, a quem Breton se refere calorosamente.

Quanto a esta minha coleção (ex-coleção), ela será dificilmente compreendida para além desta sufocante fronteira, mas a verdade é que aqui é ÚNICA, tendo sido feita por paixão, não por dinheiro, que foi coisa que nunca tive. Em Portugal muito raramente fazem coleções, e quando isso acontece, quando do falecimento do colecionador a família apressa-se a dispersar tudo. Desde há alguns anos as

pessoas chamam coleção a 20 ou 50 obras que decoram as suas casas, e de que esperam um feliz empate de capital…

Sugeri à Fundação de Famalicão que a expo seja tornada itinerante, pois não me parece suficiente um ou dois visitantes por dia; dizem-me que sim, mas só acreditarei quando, segundo prometem, a expo aparecer aqui em janeiro, na Sociedade Nacional de Belas Artes.

Aqui tens mais uma carta, certamente excessiva. Os melhores votos e o abraço do

Cruzeiro Seixas

P.S.: Muito agradeço o Rascunho, que parece respirar satisfatoriamente.

[s/d., dezembro de 2003]

 

Caro Floriano

Junto o catálogo da exposição da minha coleção, que te dará uma idéia do trabalho que representou a seleção das obras, e tudo o mais necessário a esta realização. Por isso só hoje respondo à tua carta de 17 de março, do que me desculpo. Além de tudo o mais não é fácil estar a viver agora numa casa com as paredes nuas. Mas esta exposição tinha que se fazer, pelo menos para provar que não é necessário ser milionário para fazer uma coleção. Foi apenas por paixão que fiz tudo o que fiz, tudo o que fiz na vida – em paixão fui de fato milionário! Creio que a Rosa Alice Branco fez o favor de estar presente nesta exposição, mas no meio de tanta gente e de uma certa desorganização portuguesa, era muito grande o

meu cansaço e confusão.

Desculpa-me se o teu excesso de projetos me assusta. Sempre preferi “engatar” a ser “engatado”. E julgo que devo o nome que tenho principalmente à minha solidão; nunca fiz parte de tertúlias, a não ser na ingenuidade dos vinte anos. Aprendi muito – aprendi o que não queria aprender, e já não há nada a fazer deste frágil bloco de cimento armado que sou. Contra mim mesmo, a minha denúncia e protesto.

Daqui a alguns meses, ou daqui a um ano ou dois (na pior das hipóteses) já cá não estarei, e então TUDO será possível. Desculpa-me se te peço para reduzir para metade a tua tão generosa oferta. Creio que no meu caso já está suficientemente provado que não se trata de ortodoxia. A palavra que me corresponde possivelmente não está no dicionário; desenhei e pintei e escrevi, sem me considerar pintor ou escritor. Principalmente se trata de algo como uma necessidade fisiológica, à falta de algo mais expressivo contra o dia a dia que temos, e refiro-me a coisas velhas como a guerra da Etiópia, a guerra de Espanha, a esperança na derrota no nazismo/fascismo, a permanente crise, sempre com milhões de vítimas… Vivo mergulhado no absurdo, e parece-me agora tão absurda a atenção que me dão, como a que não me dão.

Será isto uma carta? As minhas desculpas e o forte abraço do

Cruzeiro Seixas

[18 Maio 2004]

 

Caro Floriano

Festejo a tua atividade e paixão, pois muito me choca o desapaixonamento cada vez mais e mais acentuado dos portugueses. “Aterrorizado e tremente”, como dizia William Blake, dou todo o meu acordo à tua imaginação. Tal projeto, há um ano me pareceria completamente impossível. Ou será que coisas destas acontecem quando se está já à beira da cova funda? Há mil títulos possíveis e esse de Homenagem à Realidade tem o meu acordo. “Uma ferida que dança” é um texto do Edouard Jaguer que é um velho amigo, e figura histórica entre os surrealistas como entre os “Cobra”. Nos meus papéis reina o mais ativo dos furacões e por isso nada foi fácil. A cronologia atualizada por certo é excessiva; reduzi tanto quanto posso e sei, mas evidentemente que tens toda a liberdade de reduzir ainda mais. Também para qualquer outro seria relativamente fácil tudo isto, mas para mim nada é fácil. Junto o 1° volume da Poesia e aproveito para telefonar ao Hugo Mãe a reclamar a saída do 3º volume. Também junto diversas fotografias. Ofereço-te estes livros e catálogos, e se não envio mais é porque estão esgotados ou a caminho disso. Isto que me propões parece mais um álbum do que um simples livro! A tiragem é que parece pequena para um país tão grande. Também envio o catálogo de uma exposição em que, além do belo texto do Ernesto Sampaio encontrarás alguns dos meus Desaforismos – e muitos outros existem à espera de sair da incômoda gaveta onde amarelecem.

Quanto à parte burocrática, isso é chinês para mim, mas toda a documentação que me foi enviada foi reenviada devidamente assinada.

Na verdade, saí-me bem dos livros já publicados pela “Soctip” em 1989, pela Fundação de Famalicão em 2000, e Viagem sem Regresso, edição “Tiragem Limitada” e Local onde o mar naufragou, editado pela Galeria S. Bento em 2001.

Essa questão de Artur do Cruzeiro Seixas ou somente Cruzeiro Seixas é-me quase indiferente; foi a Isabel Meyrelles e o editor que resolveram como entenderam. Para as exposições é desde sempre usado o Cruzeiro Seixas, mas diz-me tu como te parece mais acessível ao público brasileiro que desconheço. A minha escrita é datada de Áfricas (a África continente negro e o continente negro que sou), em sentida homenagem aos anos que ali vivi. Mas as datas que figuram não correspondem nunca a qualquer exatidão, tendo a intenção de confundir biógrafos e exegetas, e aos seus processos acadêmicos.

E quanto à pintura, nunca tive método. Quando começo a desenhar ou a pintar muito raramente tenho uma idéia nítida. Esqueço ensinamentos e teorias, não penso em coisas como desenho ou pintura, mas sim no amor, na morte, nas pessoas que conheço e principalmente nas que desconheço. O que desejaria presente era um reflexo do mundo através de mim, era dar uma idéia do homem e da sociedade que criou – e que o sufoca. Tenho feito ausências de Lisboa levado por amigos ao norte para ser operado às cataratas; isso tem recomplicado a tão frágil organização dos meus dias. Até agora não sinto quaisquer melhoras, e é triste reconhecer que estou a perder a independência que tanto prezo.

Perturbador foi também um telefonema do Cesariny, a pretexto de me felicitar calorosamente pela poesia editada, isto depois de uns 30 anos de distanciamento quase total. Creio que a verdadeira razão deste telefonema é o peso dos 80 anos, que precisam ser compartilhados. Nunca será demais constatar que do surrealismo em português a D. Morte se empenhou em arrebatar vinte e tal, por certo alguns dos melhores, como o António Maria Lisboa, o Mario Henrique Leiria, o Júlio, o D’Assumpção, o Areal, o António Dacosta, o António Quadros, o João Rodrigues, o Mario Botas, o Jorge Vieira, o O’Neill etc. etc.etc.

Os melhores votos e o abraço grato do

Artur

[17 outubro 2004]

[Cartas de acompanhamento à preparação do livro Homenagem à realidade, de Cruzeiro Seixas. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2005.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

     1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
    2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
     3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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Ficha Técnica

Projeto Editorial Banda Lusófona
Janeiro de 2010 | Fortaleza, Ceará - Brasil
Coordenação geral & concepção gráfica: Floriano Martins.
Direção geral do Jornal de Poesia: Soares Feitosa.
Projetos associados: Revista La Otra (México) | Ediciones Andrómeda (Costa Rica) | Revista Blanco Móvil (México) | Triplov (Portugal).
Cumplicidade expressa: Alfonso Peña, Eduardo Mosches, Gladys Mendía, José Ángel Leyva, Maria Estela Guedes, Soares Feitosa e Socorro Nunes.
Contatos:
Floriano Martins bandahispanica@gmail.com | floriano.agulha@gmail.com.
Soares Feitosa: soaresfeitosa@secrel.com.br | soaresfeitosa@uol.com.br.
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