Cruzeiro
Seixas: clarezas sobre o surrealismo em Portugal
Floriano Martins
FM
Por onde começas: pelo verso ou pela plástica?
CS
Pelo verso, pois não sei outro caminho.
FM
Escreveu Fernando Matos Oliveira: “Em Breton, como em Cesariny,
o Surrealismo é uma ética. Ao passar à escrita, esta se traduz
historicamente numa estética e num estilo”. Seria possível dizer
o mesmo em relação ao Cruzeiro Seixas?
CS
Mesmo que o desejasse dificilmente a minha obra teria a ver com
uma estética, sendo como sou muito pouco dotado de habilidade
manual, de memória visual e de técnica, e sendo ainda
completamente desorganizado, muito raramente há a submissão a um
projeto. A folha de papel ou a tela foram para mim sempre um
fato inesperado.
FM
Tua obra plástica não se baseia em uma dissolução de formas, mas
antes em uma instauração de novas formas. Está correto o
Rui-Mário Gonçalves quando diz que não vê nela a presença de
“corpos desfeitos, mas refeitos”. Para refazê-los, no entanto,
como tu convives com os corpos existentes, as formas canônicas?
CS
Estou muito longe da genialidade, e assim parece-me excessivo
ver no que faço “novas formas”. A minha obra é apenas um
testemunho ou um depoimento, que só por ínvios caminhos terá a
ver com a obra de arte. A minha convivência com os corpos foi
feita intensamente no amor, mas um corpo para mim nunca foi
somente um corpo, mas um lugar de conjunção de todos os
infinitos.
FM
Tendo em conta um erotismo muito presente em tua obra
(impressiona-me uma tela como
Estudo de
uma palavra),
é quando menos curioso observar que o grupo em torno de Breton
era muito ingênuo em relação ao tema. Mas não o era Artaud,
banido do grupo. Pensando justamente em Artaud, de que maneira
em Cruzeiro Seixas “o sonho devora o sonho” (Artaud)?
CS
O sonho só existe para ser devorado, ou intensamente possuído.
FM
Há uma imagem em um poema teu que me é muito fascinante:
“palavras roídas de ferrugem”. De que maneira a poesia deixou-se
oxidar pelo tempo?
CS
Não há nada que o tempo não oxide e enferruje. Contra isso nos
cabe lutar amando loucamente, libertando as palavras da sua
escravatura.
FM
Risques Pereira chegou ao grupo de vocês indicado pelo António
Maria Lisboa, mas antes havia estado ao lado de António Pedro em
outro grupo. Risques declarou certa vez que as dissidências
entre os dois grupos eram meramente de ordem pessoal. Contudo,
se lemos as cartas de António Maria Lisboa, percebemos o quanto
lhe preocupava questões tanto éticas como estéticas. E dava um
acento especial aos riscos da ortodoxia. Como avaliar esta
situação hoje? E até que ponto o Surrealismo em Portugal teria
sucumbido à ortodoxia?
CS
O Risques Pereira pertenceu desde
sempre a “Os
Surrealistas”. Julgo que de entre nós o único que passou pelo
grupo por demais acadêmico do Antonio Pedro foi o Cesariny, até
constatar que o Surrealismo ali era principalmente uma estética.
Não me vejo a fazer a história do Surrealismo em português, mas
julgo que não “sucumbo à ortodoxia”, mas se de alguma forma
sucumbo isso se deu por não ter o Cesariny querido, podido ou
sabido prolongar o espírito da exposição de 1949. Verdade que,
quando se começaram a pressentir certos desencontros eu me
retirei para África, onde permaneci numa outra aventura,
apaixonante, cerca de 14 anos; e o Mário Henrique Leiria
percorreu o mundo, regressando apenas em 1980 para morrer; e
ainda pior, faleceu o António Maria Lisboa em 1953, apenas com
25 anos. Na fotografia
oficial que circula estamos presentes oito; pois
hoje, estranhamente, só restamos o Cesariny e eu!! Parece haver
quem agora prefira por a hipótese de que o Surrealismo em
português se tornou “individual”, mas isto não é inteiramente
verdade; um certo apagamento, uma certa exitação, um certo
mal-estar aconteceram, e por certo advieram da ausência de uma
figura de proa que unisse, e não dispersasse.
FM
Um outro aspecto a ser considerado, tomando por base uma
observação do brasileiro Carlos Felipe Moisés, é que “o
Surrealismo em Portugal, desde o início, se vê isolado e
marginalizado, acuado pela esquerda e pela direita, condenado a
ser movimento de resistência em duas frentes simultâneas”. Antes
de ser
condenação,
esta era uma condição do Surrealismo, uma de suas mais
consistentes afirmações, malgrado a adesão do grupo francês ao
Partido Comunista. De que maneira as ideologias eram tratadas
então?
CS
Julgo que essa luta seria o que de mais estimulante nos poderia
ser ofertado aqui, pois nunca acreditei em
vitórias indiscutíveis.
As vitórias são um fim, e o que sempre me apaixonou foi o ato de
caminhar. Baseado na experiência do Grupo de Breton, afastei-me
tanto quanto possível dos políticos, acreditando que antes de
construir a sociedade é necessário construir o homem. Será pela
didática que isso poderá acontecer. Assim julgo que, ao fazer um
quadro ou um poema, é didática que se está a fazer. Nesse
sentido sonho ainda com diversas exposições (sejam elas
surrealistas ou apenas do Surrealismo), percorrendo o mundo, mas
estou por demais só, e já não sinto as necessárias forças para
essa enormíssima luta. Por exemplo, há muito alimento o sonho de
uma exposição do Surrealismo brasileiro que nos visitasse,
enquanto uma outra do Surrealismo daqui se deslocaria ao
Brasil...
FM
Disse o mexicano Octavio Paz que o século 20 seria lembrado
muito mais como o século do Surrealismo do que do Marxismo. Até
que ponto estaria correto em tal afirmação?
CS
Todas as idéias são necessárias ao homem; o Marxismo e o
Comunismo são hoje por certo injustamente confundidos com o
stalinismo. O Surrealismo é evidentemente uma minoria, mas que
parece neste momento bem viva, em todos os recantos do mundo.
FM
Graças ao espanhol Perfecto Cuadrado e ao inglês C. B. Morris há
uma certa recuperação, ao menos em plano histórico, das
atividades surrealistas em Portugal e na Espanha. Nos dois
casos, o assunto tem sido tratado por estrangeiros, o que remete
a uma curiosidade: de que maneira o surrealismo é visto pela
crítica em cada país de atuação. No caso português, como reage
ainda hoje a crítica ao assunto?
CS
Depois do 25 de abril quase se extinguiu a crítica em Portugal;
e além disso toda uma geração tomou como seu princípio que o
mundo teria começado nos anos 60! E ainda, além disso, deu-se
uma surpreendente supremacia do dinheiro, em personagens os mais
inesperados; nessa obstinação alguns se perdem. E há a
circunstância de se tratar de um pequeno país, com uma difícil
posição geográfica. E a tudo isto há que acrescentar uma certa
maneira de ser dos portugueses, que desde sempre preferiram
sonhar a realizar. As dificuldades têm-se avolumado, chegando-se
por vezes a um difícil entendimento de português para português.
Tenho 83 anos, mas cada vez o mistério me parece mais denso. Sei
que já não vou ver como vai ser possível sair deste beco, mas
lembro-me de ter escrito algures que,
no último momento por certo
se vão lembrar do Surrealismo. Não aspiro à
presciência, mas sim à sensibilidade, e àquilo que tem sido uma
muito dura experiência da vida. Sei que no homem mais
desesperado uma centelha de esperança sempre persiste.
FM
De que maneira poetas e artistas como Luís Miguel Nava e Mário
Botas significam um desdobramento do Surrealismo em Portugal?
Quais outros nomes poderiam aqui ser lembrado?
CS
Tanto com o Mário Botas como com o Luís Miguel Nava se
estabeleceu comigo uma certa proximidade. Alguns trabalhos em
comum (“cadavres-Exquis” e pinturas coletivas) o atestam no caso
do Mário Botas. E de uma longa carta do Luís Miguel Nava
transcrevo: “as suas palavras parecem tocar o essencial não lhe
sei dizer de quê, mas o essencial
tout court, (...)
creio que na linha do que o Artur refere quando diz que ao verbo
‘evoluir' sempre contrapõe ‘aprofundar', sendo assim remetidos
para um outro grau de realidade, um outro estado, onde a
verticalidade da consciência se sobrepõe à horizontalidade dos
percursos”. Creio que tanto um como o outro não tiveram
relacionamento aprofundado com o Cesariny. O Mário Botas acabou
escrevendo referências destruidoras do Surrealismo daqui, por
certo perturbado pela tragédia da sua doença e da sua morte
prematura, que inflectiram o seu caminho. Não referes o Raúl
Perez, que me parece ser, como pintor, autor de uma muito
notável obra, que seria merecedora de reconhecimento para além
desta tão apertada fronteira. Também me parecem dignos de uma
palavra, mesmo que por demais apressada, os talvez não mais de
dez desenhos de Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), que
mereceriam reconhecimento universal. Quem pára é porque já
morreu. Tentemos nós morrer em pleno vôo. |