Sobre Cruz
e Souza
Lêdo
Ivo
Quer
por um imperativo de simplificação, quer pelo propósito de
proceder ao aprofundamento dos atos e circunstâncias, somos
sempre inclinados a conferir um sentido simbólico às cenas e
ocorrências que, ao emergir da rotina dos dias, se deixam cercar
por uma aura insólita. Dir-se-ia que o acontecimento inusual
promulga uma singularidade que nos leva à interpretação correta
e à leitura judiciosa. E, assim, ele nos aparece dotado de uma
verdade e até de uma fatalidade que nos tranquiliza e permite
que nos apliquemos às dissertações mais vastas ou imaginosas.
Na
história da literatura brasileira, nenhum acontecimento é mais
denso e rico dessa nota extraordinária em que um episódio parece
resumir e explicar toda uma jornada da existência,
outorgando-lhe uma verdade final, do que a morte de Cruz e
Sousa, há precisamente um século. Devastado pela tuberculose,
ele morre em Barbacena e seu corpo, envolvido num saco de
estopa, é trasladado para o Rio de Janeiro num vagão destinado
ao transporte de cavalos.
Os
temperamentos menos afeiçoados ao lado misterioso da vida não se
recusam a reconhecer uma espécie de coerência cruel que impera
em certas existências até o desfecho. No caso de Cruz e Sousa, é
como se a própria morte se tivesse incumbido de punir uma de
suas vítimas com uma humilhação derradeira, conferindo uma
visibilidade inexorável a uma maldição.
A condição
de negro puro o conduziu a uma notória marginalidade social, ora
ostensiva, ora mascarada pela tolerância dos convívios
inevitáveis. E, ao lado dessa separação, a qualidade de poeta
simbolista terá criado em torno dele fronteiras e hostilidades
mais intransponíveis ainda.
Quando da
criação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, um ano antes
da morte de Cruz e Sousa, o seu nome foi lembrado para ser um
dos seus integrantes. O fato de o poeta ser negro não haveria de
constituir obstáculo relevante para o seu ingresso na
instituição. O mulato escuro Machado de Assis imperava na
formação do novo cenáculo, respeitosamente rodeado de numerosos
e entusiásticos mestiços claros. E, a propósito de Machado de
Assis, vem a talho de foice relembrar que a majestade das
letras, o seleto convívio social e a amizade que o unia ao
aristocrático Joaquim Nabuco já o haviam praticamente
embranquecido – e de tal modo que, no seu atestado de óbito, ele
figura como pertencente à raça branca.
Também
entre os fundadores da Academia trafegava, com o invejável
desembaraço que ainda hoje confunde os seus biógrafos, o negro
José do Patrocínio – amigo e companheiro de Cruz e Sousa, e que
haveria de incumbir-se do sepultamento do poeta no Rio de
Janeiro, vencida a humilhante etapa ferroviária do vagão de
transporte de cavalos.
Foi o
Simbolismo, esse movimento poético tão emparedado como o próprio
poeta, que vedou a entrada de Cruz e Sousa na instituição que,
em seu nascedouro, se tornou a grande fortaleza do Realismo, do
Parnasianismo e do Naturalismo, sob a regência férrea de Machado
de Assis, Coelho Neto, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, e a
vigilância crítica de José Veríssimo. Nesse ambiente que
conferia à Arte um sentido quase religioso, e na qual os
condores românticos tinham sido substituídos pelos buriladores e
cinzeladores do verso e da prosa, não havia lugar para o branco
cisne simbolista – e muito menos para o insólito, incômodo,
indesejável e talvez inexplicável cisne negro.
A
incompreensão crítica que rodeou o Simbolismo brasileiro pode
ser aferida pela famosa crítica de José Veríssimo que figura na
6° série de seus Estudos de literatura brasileira.
Nela, o
insigne crítico sustenta que a poesia de Cruz e Sousa decorre de
sua condição de preto – e de “preto ignorante”, para repetir
aqui as suas duras palavras. Para José Veríssimo, todos os
versos do poeta de Broquéis “Têm a monotonia barulhenta
do tam-tam africano”. A sua música, que enfeitiça o leitor de
agora pelo seu mágico poder de envolvimento rítmico e verbal,
ele a atribui ao “dom da melodia, que é comum nos negros”. O
grande crítico e históriador literário chega mesmo a condenar
Cruz e Sousa pela sua “impossibilidade de exprimir o que acaso
sentiria – ou talvez não sentisse, não vendo na poesia senão uma
acumulação melodiosa de palavras”. E completa: “É o que explica
o seu processo, um verdadeiro cacoete, próprio dos primitivos,
das repetições enfáticas, substituindo expressões que lhe
faltam.” Assim, para o grande crítico do nosso Realismo, a
importância da poesia de Cruz e Sousa – desse “negro bom,
sentimental, ignorante, de uma esquisita sensibilidade” – não
passava de uma carinhosa invenção ou farsa de amigos, já que o
poeta não possuía, a seu ver, “nenhuma concepção teórica de sua
arte, nenhuma estética a comunicar, nem sequer, creio eu [isto
é, crê José Veríssimo], consciência de sua arte”.
Pessoalmente, prefiro o crítico que erra por convicção ao que
acerta por acaso. Por isso, entendo que, embora esquálida, a
crítica de Jose Veríssimo à poesia de Cruz e Sousa não deve ser
condenada ou rejeitada. Ela marca um momento histórico, e até um
momento estético; e este, magnificando uma doutrina, tende
sempre a menosprezar ou excluir a diferença.
A leitura
do universo poético de Cruz e Sousa, neste ano do centenário de
sua morte, aponta evidentemente para uma direção contrária
àquela que José Veríssimo tanto exaltou. Não a África dos
batuques e ritos ancestrais, mas a civilizada e refinada Europa
que produziu o Simbolismo e permitiu que um negro brasileiro,
com o seu gênio singular, transplantasse para a língua
portuguesa ritmos, imagens, analogias, metáforas, a sua festa de
assonâncias, aliterações, enumerações ordenadas e caóticas, e
toda uma retórica peregrina.
Os
processos e exemplos de expressão lírica verberados por José
Veríssimo e outros críticos do seu tempo não são africanismos, e
sim musicalidades e europeísmos requintados. Foi nela, nessa
Europa que associou o Símbolo à criação poética, que Cruz e
Sousa, leitor e admirador fervoroso dos parnasianos e
simbolistas franceses, e especialmente de Victor Hugo e
Baudelaire, hauriu a lição magistral que haveria de firmar e
afirmar a sua esplêndida marginalidade e genial diferença.
Em Cruz e
Sousa ocorreu, por caminho diferente, aventura estética
assemelhada à de Machado de Assis: a do embranquecimento pela
cultura buscada nas mais requintadas e prestigiosas fontes
ocidentais, com um extraordinário poder de assimilação do qual
resultou o aprimoramento pertinaz dos dons nativos, convertidos
em suprema arte literária e poética.
Lembro,
aliás, que essa operação, em que um talento ou um gênio nativos
se apoderam antropofagicamente dos alimentos espirituais da
Europa, transformando-os em pantagruélicos banquetes pessoais,
nem sempre inspira aceitação ou simpatia. Assim, o sertanejo
Graciliano Ramos costumava chamar Machado de Assis de “negro
metido a inglês”.
No trajeto
do reconhecimento de Cruz e Sousa como um
dos
maiores poetas produzidos pelo nosso pais, e pela nossa língua,
devemos ao ensaísta francês Roger Bastide uma consagradora
fixação hierárquica. Ele colocou o nosso poeta ao lado do alemão
Stefan George e do francês Stéphane Mallarmé, considerando-os os
três grandes expoentes universais do Simbolismo.
A fina
observação de Roger Bastide, exarada na década de 40, não foi
empalidecida pelo tempo; e ainda hoje ela deve ser preservada,
especialmente se levarmos em conta que a poesia é uma operação
linguística e etimológica, um encantamento produzido pelo
agenciamento das palavras e estruturação da linguagem.
Nesse
plano encantatório e musical, o nosso cisne negro não se
secundariza. As suas penas escuras são tão pulcras e augustas
como as dos preclaros cisnes brancos do outro lado do Atlântico.
Uma aura lhe circunda a poesia – e eu diria, mesmo, que ela é
profundamente europeizada, dotada de um clima de estrangeiridade
que às vezes alcança o paroxismo. O leitor e assimilador dos
clangores hugoanos está presente nos primeiros poemas, no
parnasianismo que haveria de sustentar a sua expressão
definitiva. E, ao lado de Victor Hugo, outras leituras e
assimilações, e até paródias e empréstimos inevitáveis,
atravessam e nutrem a sua arte poética, identificando-o como um
leitor reiterado de Baudelaire, tanto de seus versos como de
seus poemas em prosa, e até da teoria das correspondências. E
ele ostenta ainda a musicalidade embaladora de Verlaine e um
certo hieratismo ou marmorização do verso, procedimento haurido
decerto em Théophile Gautier.
Até mesmo
o funambulismo do hoje esquecido Banville encontra adequação na
poesia de Cruz e Sousa. E, finalmente, há a presença larga de
Mallarmé. Não apenas os faunos o perseguiram. Em sua vida, Cruz
e Sousa experimentou “le fouet d’un monarque rageur, Le Guignon”
(“o chicote de um monarca enraivecido, o Azar”).
Uma
formação estética harmoniosa rege a trajetória do negro Cruz e
Sousa, impondo-o como um dos poetas mais brancos de nossa
história, no tocante aos seus meios de expressão e aos seus
interesses e curiosidades culturais. Essa brancura, que se
assenta nos processos poemáticos e versificatórios, e em sua
auréola espiritual, não esconde, porém, as numerosas ilhas de
negritude, em que o poeta alude à sua raça, à sua classe, ao
amargurado e desamparado destino pessoal gerado pela sua cor
humilhada e até amaldiçoada.
Num de
seus sonetos, ele assim se exprime:
Neste
mundo tão trágico, tamanho,
Como eu
me sinto fundamente estranho
E o
amor e tudo para mim avaro…
Ah!
Como eu sinto compungidamente,
Por
entre tanto horror indiferente,
Um frio
sepulcral de desamparo.
Horror,
estranheza, indiferença, desamparo – esses sentimentos percorrem
toda a poesia de Cruz e Sousa, como o selo de sua condição. E,
no poema “As devotas”, ele alude
À raça
que se amortalha
No
horror que não se define…
A condição
pessoal se casa, visceralmente, ao estranhamento e marginalidade
que o Simbolismo outorgou aos seus sequazes. Todo o empório
estilístico da escola, inclusive a transição expressional em que
o Parnasianismo se endereça a uma nova estética, está em Cruz e
Sousa, como um legado fulgurante. Uma estranheza existencial
esplende na refinada arte poética dos sonetos de Faróis,
que parecem buscar uma perfeição além da perfeição.
Numa
vertigem imprecatória, o poeta protesta contra a sua ínfima
situação terrestre. Na catadupa rítmica dos refrões, repetições
e reiterações, a sua musicalidade arrasta uma soberba procissão
de imagens e visualidades. Poeta extremamente sensível à
transição e variação das horas e dos dias, Cruz e Sousa explora
o cromatismo das paisagens que esvaecem e se eterizam para
registrar essas mutações.
Desde os
primeiros poemas até os derradeiros, uma queixa interminável se
eleva rumo ao céu mudo, atrelada a um desfile de sinestesias
perturbadoras. As palavras, prismáticas, fulguram como joias da
melhor água. Dotado desses sortilégios sucessivos, o poema de
Cruz e Sousa se torna grávido de significados diversos ou
numerosos. São dicções de um território de difícil demarcação:
da noite que é dia, do dia que é noite, da tarde que é manhã.
A abolição
do cotidiano abre a porta para todas as misteriosidades e
impenetrabilidades, da mais chã à mais sideral. Em toda a poesia
em língua portuguesa, ninguém alcançou, como Cruz e Sousa, esse
poder de encantação que faz da poesia uma persistente alquimia
do verbo, dentro da mais ortodoxa lição rimbaudiana.
A sua
poesia não é apenas uma linguagem específica e pessoal dentro do
vasto território da língua comum. É uma linguagem dentro da
própria linguagem poética: uma lunaridade que confere clareza e
pulcritude à escura noite da alma e uma solaridade atropelada de
sombras e clamores. Numa fusão misteriosa, noite e dia ao mesmo
tempo clareiam e ensombrecem a atormentada marcha do poeta em
busca das brancuras cósmicas e espirituais dos mundos estelares
e das almas aflitas, e das brancuras das carnes femininas, que
povoam os seus sonhos de negro sensual. E ele celebra tanto as
“Brancuras imortais da Lua Nova” como as mãos e os seios e os
corpos brancos:
Ó Mãos
ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e
brancas, no esplendor dos seios.
Em outro
soneto, “As hóstias”, ele confere um sentido ao mesmo tempo
religioso e sensual à união com uma mulher branca:
Como
num templo, numa clara igreja,
Que o
sonho nupcial gozado seja,
Que eu
durma e sonhe nos teus níveos flancos.
Contigo
aos astros fúlgidos alado,
Que
sejam hóstias para o meu noivado
As
flores virgens dos teus seios brancos!
Note-se
que, nesse soneto, até a igreja é clara. Em sua poesia, Cruz e
Sousa utiliza, com frequência, vocábulos do glossário litúrgico
ou eclesial. É um dos procedimentos estilísticos mais contumazes
da escola simbolista, caracterizada pela luxuosidade da
linguagem e adoção de palavras raras, como se pode verificar em
Yeats, Mallarmé, Rubén Darío, Stefan George, J. K. Huysmans. O
festival de brancuras e luminosidades que domina a sua poesia –
uma brancura estilística de adepto fervoroso do Simbolismo, uma
brancura obsessional ancorada no mais fundo de sua psicologia e
de sua fisiologia de homem de cor – não o impede de cantar a
beleza negra.
Em muitos
dos seus poemas, a negra Gavita – com quem se casou em 1893 –
surge de forma ora ostensiva, ora alusiva ou metafórica; e o
poeta partilha com ela os seus sonhos e desgraças, endereça-lhe
a sua inquietação metafísica e os seus ambíguos anseios carnais,
protesta contra as misérias que os rodeiam e exprime as
nostalgias de uma vida mais alta e mais pura.
Gavita,
como se sabe, deu-lhe três filhos, que morreram tuberculosos. E
ela mesma morreu louca e tuberculosa, em 1901, o que acentua
ainda mais a veemência do guignon mallarmeano, do mau
olhado, do destino impiedoso que perseguiu Cruz e Sousa e sua
família.
O negror
da noite, dos corpos dos escravos nas senzalas, de certas
cabeleireiras, dos escuros vinhos embriagadores remete para os
temas em que o poeta mergulha na treva, nela reconhecendo a sua
pátria primitiva, a sua origem e a fatalidade do seu destino.
O encanto
ou enfeitiçamento verbal, essa magia da linguagem que se torna
clara à força de ser obscura e siblina, levou Cruz e Sousa a
criar, com o seu estranhamento, um território mágico em que o
homem proclama a sua solidão e emparedamento, a impossibilidade
de realizar uma comunicação ou uma comunhão com os seus
semelhantes e, num tom imprecatório, de dor e revolta, lamenta a
miséria de sua travessia terrestre, o seu emparedamento social e
existencial. O alto e raro lavor poético desse lamento
lancinante assegura ao poeta um lugar excelso na poesia
brasileira.
Nesse
páramo, ele se distingue pela sua estrangeiridade: cisne negro
entre as águias e sabiás do Romantismo, os canários do
Parnasianismo e os papagaios do Modernismo. Contudo, há um
regionalismo como que escondido ou disfarçado em Cruz e Sousa.
As suas névoas e brumas, que uma leitura inocente poderá
conduzir à conclusão de que ele transplantou para a nossa língua
o clima dos simbolistas franceses e belgas, como Verlaine e
Rodenbach, não destoam das névoas e brumas da cidade de Nossa
Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, onde ele nasceu, em
1861. No seu desamparo e deslumbramento cósmicos freme a
contemplação do vasto céu brasileiro. As suas ilhas
aparentemente imaginárias bem podem ser as de sua terra nativa,
esse estado de Santa Catarina que tão cedo e tão belamente soube
reconhecer o gênio poético de seu filho negro e filho de
escravos. E os pinheiros que se erguem airosamente em seus
versos poderão ser menos europeus do que se pensa, desde que
ornam as formosas paisagens catarinenses. Mesmo a obsessão de
mulheres brancas e louras não se distancia do ambiente natal, do
Brasil diferente colonizado por alemães e açorianos, poloneses e
italianos. Assim, a alienação geográfica de Cruz e Sousa pode
ser apenas o resultado de uma leitura parcial e preconcebida.
Paira em toda a sua obra poética uma fulguração tropical que é o
selo vistoso de sua natividade e brasilidade.
Um século
transcorreu desde o dia em que um trem, vindo de Barbacena,
trouxe o corpo de Cruz e Sousa, num saco de estopa, estendido
num vagão destinado ao transporte de cavalos. Nestes cem anos a
sua obra percorreu um itinerário consagrador,
Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A
mundos que se vão multiplicando,
A
portas de ouro que se vão abrindo!
O poeta
maldito se tornou um dos nossos clássicos mais eminentes.
Cruz e
Sousa é hoje um dos nossos poetas nacionais, ao lado de Castro
Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade. A sua voz é uma das mais altas
No
silêncio das noites estreladas.
Rendida a
essa condição gloriosa de Cruz e Sousa, e associando-se às
comemorações que assinalam o centenário de sua morte (1898), a
Academia Brasileira de Letras ora o festeja, reverente e
arrependida por não ter feito dele um dos nossos. |