Donizete Galvão, poesia e
originalidade
Floriano Martins
1.
A
originalidade de um poeta está intrinsecamente vinculada à sua
capacidade de rebelar-se contra o convencionalismo técnico e o
emprego comum e abusivo de certos temas. Os embates em torno de
certas sigilosas proibições, a exemplo da distinção de uma
linguagem poética em relação à linguagem prosaica, bem como o
recurso a fontes diversas de influência, estímulo ou inspiração
(orações, drogas artificiais ou a escritura automática, e as
abusivas discussões acerca de sua aceitabilidade), entre outras,
caracterizam-se como elementos dimensionadores, nas distintas
épocas em que atuaram, do conceito de originalidade. Em tal
sentido o surgimento do verso branco constitui inigualável
conquista.
Embora
sendo aspecto indispensável na definição de uma obra poética,
não se pode nunca esquecer que seus excessos conduzem a uma
bizarria deplorável. Obcecado por uma falsa idéia de
originalidade, é comum o poeta destruir a si mesmo, afastando-se
de uma constante reveladora da memória verdadeira, do outro em
si, da identidade comum a todos os homens. Também igual obsessão
converte o discurso poético em retórica, transformando o poeta
em mero articulador de enredos (no uso conseqüente dos novelos
técnicos), a exemplo do ficcionista em nosso mundo
contemporâneo. Não se trata de situar a originalidade como uma
dissonância, mas sim de lembrar que seu verdadeiro sentido
reside mais em uma atitude de despojamento do que propriamente
de deliberação engenhosa.
A
colocação acima fatalmente nos leva a um clássico erro de
análise acerca das relações entre espontaneidade e construção,
aspecto bastante recorrente em um universo de deturpações tão
comum quanto o que tem regido sobretudo o curso mais recente da
poesia brasileira. Exemplo disto é a utilização do verbete rigor
como sendo propriedade privada do dicionário concretista. A
obsessiva inclinação construtivista do Concretismo certamente
levou a crítica a supor - e a alimentar com tal equívoco os
novos espíritos poéticos em formação - que o rigor somente seria
possível a partir da ação de tal escola, ou o que seria ainda
pior: do vínculo dos novos poetas à mesma.
Na
perseguição desesperada de originalidade podemos citar um outro
equívoco na história recente de nossa poesia, embora de
proporções menos danosas, visto que só fez mal a si mesma, que
foi a denominada “poesia marginal”. Neste sentido, nunca estará
demais mencionar a lucidez com que observa Ivan Junqueira que
esta geração “se marginalizou ao comungar uma poética que - com
raras exceções - jamais levou a parte alguma e que, em certo
sentido, nasceu morta”. O certo é que nossos marginais dos anos
70 mais pareciam um bando de hippies desafinados do que
propriamente um acontecimento na esfera poética. Insistindo em
fazer a diferença, só conseguiram ser banais. Os poucos
estudiosos que se detiveram no assunto referem-se a uma dicção
mesclada como característica principal dessa geração - tentando
dar a ela uma conotação histórica e com isto gerar teses e novos
afluentes de um mesmo equívoco -, esquecendo-se que em tal
contexto já se articulava a conhecida Beat Generation, nos
Estados Unidos, e que dali provinham as fórmulas que aqui
causaram espanto e falso sentido de originalidade. Acrescente-se
ainda que os marginais brasileiros não possuíam nenhuma intenção
programática.
Aceito o
fato de que o fundamental de nossa poesia aconteceu sempre à
margem das correntes literárias, ou seja, de que seus nomes
verdadeiramente fundamentais encontram-se alheios a ditames
escolásticos ou geracionais, quero aqui mencionar um poeta em
particular, aproveitando a ocasião do lançamento de seu terceiro
livro, Do silêncio da pedra (1996). Refiro-me ao mineiro
Donizete Galvão (1955), que antes já havia se destacado pelo
prêmio que recebeu da APCA (Associação Paulista de Críticos de
Arte) quando de sua estréia com Azul Navalha (1988),
também indicado para o prêmio Jabuti do mesmo ano. Entre um e
outro publicou As faces do rio (1990). Galvão é um
exemplo coerente daquilo que Robert Graves defendia como
característica principal de um grande poeta, no sentido de sua
concepção como um autor original, ou seja, a definição de uma
simplicidade a partir da ação poética em si. Desta maneira,
seguindo a lúcida observação de Graves, não deve o poeta
dirigir-se ao rei, ao chefe da congregação poética ou ao povo. O
objeto de nosso encontro com a poesia é a soma de todas as
confluências e influências. Nenhum poeta se faz alheio a este
sentido natural de originalidade.
A poesia
de Donizete Galvão, singularíssima em um universo antipoético
standardizado como tem se mostrado a poesia brasileira nas
últimas décadas, traz uma vez mais à cena a noção de um caos
individual, terra inóspita onde o homem faz a diferença, onde a
dor de um será unicamente a sua própria dor e não o emblema
vazio de uma dor geral explorada pela mídia. Toda a sua poesia é
o lugar desta diferença, embate com as forças destrutivas de seu
próprio tempo para que o homem liberte-se do estigmatizante
delito do esquecimento de si mesmo, que não se transforme em uma
pedra silenciosa. Neste sentido de busca, ressalta cenas
individuais, refere-se a obras que lhe influíram, conversa com
aspectos cotidianos da vida urbana etc. Tudo ali põe em
discussão a matéria precaríssima do social como generalização
banal de atitudes do ser humano.
Por outro
lado, a poesia de Donizete Galvão também se esmera na
consolidação de uma linguagem poética que não seja movida pelas
exigências editoriais ou as padronizações convenientes a um
enquadramento histórico nas proporções em que a história se faz
conhecer entre nós. Como ele próprio diz, “os editores, com as
raras exceções dos apaixonados pela poesia, fogem dos autores
como se estes tivessem sarna”. Neste seu terceiro livro, Do
silêncio da pedra, observa Paulo Vizioli, logo no prefácio,
a título de uma obviedade beirando a banalidade, como ele
próprio faz questão de frisar, que o poeta “não só tem o que
dizer, mas que também sabe como dizê-lo”. Lembra Vizioli que
“não são muitos os poetas que merecem o elogio dessa
banalidade”. Está tão correto nesta sua aparentemente óbvia
declaração que nos leva a acrescentar, na trilha de parágrafos
anteriores, que atingimos um grau tamanho de mediocridade
conceitual que temo não ser mais possível a compreensão de algo
que fira o patamar mediano de nossas insalubres realizações.
Um artigo
normalmente pede que falemos do autor em questão, que citemos
seus versos, que elogiemos seu traçado no chamado ranking
poético, coisas do gênero. Quando penso na poesia de Donizete
Galvão - em seu rumor órfico, no sentido vertical, de um
verdadeiro desafio que exige esta poesia à sua revelação, ao
mesmo tempo em que se apresenta em estruturas simples, despojada
de um aparato técnico viciado mais no verniz dos malabares do
que no salto em si, alheia absoluta a um universo elíptico das
últimas apresentações circenses da poesia brasileira -, penso
sobretudo no despojamento desses vícios tão comuns a nossos
erros estilísticos, penso em um poeta que não tenha sido
degenerado por sua cultura, um poeta que não tenha sido limitado
por sua compreensão de abrangência do expressivo, um poeta que
não tenha sido obstaculizado pelos instrumentos precários da
concepção poética que deflagra seu tempo.
Ao
publicar o volume de estréia, Azul navalha, a ele
referi-me como um inventário da agonia - partilha de abismos
contra o limite factual de nossas ruínas pessoais, as ruínas
essenciais da história da humanidade - e um elogio da catástrofe
urbana que nos limita e define. Observação similar lhe fez Paulo
Octaviano, ao prologar o livro seguinte, As faces do rio,
mencionando ali a evidência de um “acerto de contas com o
passado”, salientando que o poeta “devora os despojos dos seus
mortos, como verdadeiro antropófago da memória daqueles que a
correnteza levou”. E uma vez mais encontramos igual definição,
desta feita assinada por Paulo Vizioli, na apresentação deste
livro mais recente, Do silêncio da pedra: “Até a
linguagem da água nasce dos seus embates com o leito de rochas.
E é esse o processo que esta poesia reproduz, ao recorrer à
realidade para dar voz à mesma realidade. Ela trabalha a pedra.
E a pedra trabalhada - a pedra lisa - se transmuda em arte, em
algo muito acima da transitoriedade e do sofrimento.”
Portanto,
a rigorosa estrutura que reconhecemos na poesia de Donizete
Galvão define-se sobretudo como uma disciplina da expressão
poética, uma disciplina do dizer, aliada à suprema aventura da
perplexidade, do fulgor das descobertas. O próprio poeta nos
lembra, em entrevista que lhe fiz: “Para mim, a escrita tem
sempre um elemento de perplexidade, espanto e mistério. Claro,
há uma técnica que se ergue e é consumida ao terminar o poema.
Mas a cada vez que escrevo não penso que domino o instrumento
como o artesão. No caso do artesão, ele fica melhor com os anos.
Com a poesia, nem sempre acontece. Bons poetas cometem poemas
horríveis no fim da vida. É claro que há essa artesania na
poesia, mas não acredito que a técnica se apure com a repetição
(como o Pintor na época das guildas). O equilíbrio difícil é
combinar as duas coisas. Muitas vezes a poesia (excessiva ou
como pura técnica) mata a poesia. Enfim, tudo se resume diante
da humildade do poeta diante de um poder maior, o da língua.”
Entendo a
poesia de Donizete Galvão como o exemplo maior que se pode ter
hoje de uma dupla observação: de um lado a recusa de seu verso
em participar da argamassa estilística ditada por seu próprio
tempo, seja pelo teor obsessivo de uma busca da originalidade ou
pelo engatado oportunismo editorial em torno desta questão; de
outro, sua convicção de que os poetas devem sobreviver a todo
tipo de abuso. Não erra em sua arte poética, ciente da voltagem
da parábola que encerra a passagem do homem pela terra. Reata a
poesia a suas origens, ao religare original. Não é o
poeta das Minas Gerais ou mesmo o exilado em São Paulo. Sua
relação com a poesia é a mesma do homem consigo mesmo. Uma
relação órfica, que busca a originalidade do ser, a
originalidade da pedra.
2.
Algo de
extremamente meritório na passagem do tempo: a confirmação de
uma voz poética. Fala-se de espaço exíguo na imprensa para a
poesia e estou inclinado a acrescentar aqui um problema ainda
mais grave: a distorção sistemática dos valores poéticos, uma
entronização forçada de epígonos de toda sorte e um
corporativismo atuante que impede todo e qualquer
comprometimento com a verdade dos fatos, anulando assim a mínima
réstia de indignação possível.
Em recente
entrevista ao jornal O Globo, José Paulo Paes menciona
Donizete Galvão entre alguns, segundo ele, importantes poetas
atuais. Paes incluiu recentemente em seu livro Os perigos da
poesia (1997) um digno estudo sobre a poética de Donizete
Galvão. No entanto, o renomado crítico, seja neste seu livro ou
na referida entrevista, cita ainda outros poetas de menor
importância, o que me parece comprometer o entendimento que o
pobre leitor possa vir a ter acerca do panorama atual de nossa
literatura. Neste mesmo sentido, um outro caso recente veio da
pena de Wilson Martins, ao destacar em entrevista dois nomes na
poesia cearense: Soares Feitosa e Adriano Espínola,
nivelando-os. Se por um lado acerta ao perceber uma nova
articulação do epos na poesia de Adriano Espínola, por
outro se deixa confundir com as ramagens parnasianas necrosadas
- mera pieguice circense - de uma figura de retórica como é o
caso de Feitosa.
Ao que
parece, retomemos, pior que o espaço exíguo destinado à poesia
na imprensa é sua má utilização, que nos tem dado a impressão de
sequer haver poesia. Além do que vivemos sob expectativa do
surgimento quase diário de uma grande expressão poética.
Proliferam livros de toda espécie. Surgem nomes do nada.
Afilhados de toda ordem. Dão entrevistas, montam oficinas
literárias, redigem teses etc. A poesia suporta essa reles
evidência. Feliz mesmo fica somente no tempo certo, quando
confirma-se uma voz e define-se um diferencial.
Acaba de
ser lançado A carne e o tempo (1997), poemas de Donizete
Galvão. Ali o poeta mineiro encontra-se uma vez mais à vontade
para seguir em seu precioso derrame lírico. A carne e o tempo
é seu quarto livro publicado e confirma sobretudo uma
concentração de sentido, uma visão crítica acirrada acerca de
seu próprio tempo, escrita tecida a partir de uma refinada
ironia, verdadeira mina de idéias poéticas lapidadas com o vigor
necessário para que o rigor perpetue. Como ele próprio diz logo
no início do livro, “a carne come sua própria fome”. Eis como a
grande poesia se realiza: devorando a si mesma.
A poética
de Donizete Galvão afina-se pelo diapasão da mandala. Remonta
sempre a si mesma, à ambiência de sua memória poética, de forma
concêntrica e meditativa. Seu frescor liga-se à necessidade de
sentido. Nele, a evocação da memória não circula sem a sutileza
do recorte irônico. Há ali uma severa concentração da matéria
orgânica de que é feita. Prova disto é o poema “Golem”, que diz:
“Ficar só não é bom. / Para espantar o tédio, / convém criar um
homem / que encene em sua carne / o espetáculo da queda.” Essa
jóia lírica é uma lição sublime a todos os encurtadores de
versos de nossa fanfarra dominical.
Qual o
objeto da meditação de Donizete Galvão neste seu novo livro?
Aparentemente os efeitos corrosivos do tempo sobre a carne,
embora seja mais ampla sua investigação, abrangendo os sutis
engastes e desgastes da memória. Assim é que, com absoluto
domínio de seus meios, o autor nos entrega alguns poemas
perfeitos, tais como “Segunda meditação da carne”, “Parque de
ídolos”, “Círculo”, “Domínio da noite” e “Quarteto em K”.
Não basta,
contudo, essa leitura à poesia de Donizete Galvão. Requer mais.
A forma como nomeia a memória de seus interiores: sua infância,
idas e vindas em relação ao passado. O diálogo animado pelas
imagens: uma poética que desliza em granulações de imagens de
seu tempo. Os recortes da memória: afeita a uma polifonia sem,
no entanto, despir-se da essencialidade transfiguradora de uma
visão estética do mundo. Em poema dedicado à adorável filósofa
espanhola María Zambrano, deixa claro: “língua solta não
apresenta serventia”.
Ao
finalizar um poema intitulado “Círculo”, Donizete Galvão como
que definiu sua própria intencionalidade estética: “A Deusa
devora a todos / porque quer o Corpo / e sua usina de desejos.”
Não é outro o domínio de toda grande poesia. Na verdade, os 51
poemas de A carne e o tempo não fazem senão confirmar que
um grande poeta não surge a qualquer momento. Acabemos com nossa
ansiedade mundana pela quantidade. Concentremos portanto um
pouco nossa dispersa atenção nos versos precisos e preciosos de
Donizete Galvão. A poesia brasileira passará melhor com eles. |