Dora Ferreira da
Silva: em honra da poesia
Floriano Martins
A
obra poética de Dora Ferreira da Silva (1918) vinha já de muito
necessitada de uma difusão mais ampla, uma vez que a mesma
somente circulava em São Paulo, em livros como Menina seu
mundo (1976), Talhamar (1982), Retratos da origem
(1988), Poemas da estrangeira (1992) e Poemas em fuga
(1997).
Temos
finalmente a edição de sua Poesia reunida, que recolhe,
além dos livros mencionados, Andanças (1970), Uma via
de ver as coisas (1973) e Jardins (1979), além de
poemas traduzidos para o alemão pelo amigo e exegeta Vilém
Flusser que, ao estudo de sua poética, dedica capítulo do livro
Bodenlos: eine philosophische Autobiographie (Dullseldorf,
1992).
O nome de
Dora Ferreira da Silva é bastante conhecido graças à sua
incansável atividade tradutória, cujos exemplos de maior fôlego
constituem a Obra Completa de Carl Gustav Jung e a poesia
de Rainer Marie Rilke, mas onde se incluem traduções de San Juan
de la Cruz, Angelus Silesius e Saint-John Perse.
Contudo,
outra particularidade de seu envolvimento com a poesia a ser
mencionada é o fato de haver fundado e dirigido duas importantes
revistas: Diálogo, nos anos 50, ao lado do marido, o
filósofo Vicente Ferreira da Silva, e Cavalo Azul, nos
anos 80 - publicações já esquecidas, mas que representaram, em
seu tempo, um essencial repositório da criação e sua reflexão.
Um enorme
entusiasmo pela vida tem sido a característica principal de Dora
Ferreira da Silva. Em entrevista concedida a Gilberto Kujawski e
Hermes Nery, em 1989, sintetiza: “Nós é que damos sentido ao
tempo, e buscamos fazer o melhor nesta fração de tempo que é a
nossa vida aqui”, isto a partir de uma anotação de seu marido
que havia encontrado em um livro: “Entramos na história quando
ela já começou, e saímos antes de ela terminar”.
Corroboração imediata com uma leitura de sua poética sugerida
por Euryalo Cannabrava, quando ali destaca “a busca obstinada de
um rigor que, violentando todos os cânones da linguagem
prosaica, instaura sobre as suas ruínas a sintaxe lírica do
poema absoluto, sem condições restritivas”.
Abordagens
complementares: Cassiano Ricardo sublinhava a presença de um
misticismo, “tendendo sempre para o mistério”; Ivan Junqueira
salienta o convívio perfeito de ambientações “a um tempo cósmica
e celebratória” em suas imagens; tudo indo desaguar em uma
“expressão religiosa” percebida por Vilém Flusser.
É ele quem
nos dá sua melhor tradução, ao observar que em sua poética “o
símbolo não é mediação primeira entre o sujeito e coisa
concreta, mas entre o sujeito e o transcendente”, concluindo que
“o significado último do símbolo não é uma coisa no mundo vivo,
mas o que está do outro lado dos limites do mundo vivo”.
Simbolismo
e romantismo, tanto quanto a vertente enriquecida pelo
surrealismo, estes são acentos indispensáveis à compreensão da
poesia de Dora Ferreira da Silva, o mesmo valendo para muitos
poetas de sua geração, que é a mesma de Vinicius de Moraes,
Gerardo Mello Mourão e Manoel de Barros, onde merecem ainda ser
recuperadas as obras de Dantas Mota e Manuel Cavalcânti.
Nos versos
finais de um poema dedicado a Anaïs Nin reflete: “musa da
ventania amiga dos gélidos / consumiu-te o fogo em que ardias”,
sugerindo um entendimento de que devemos ser iluminados e não
queimados pelo fogo que nos conduz através da escuridão perene
que funda todas as coisas à nossa volta. Mergulho no risco, mas
não descompasso ante os deslizes eventuais.
Aí radica
a “lírica órfica” apontada por Ivan Junqueira ou a busca de um
“poema perfeito” que destaca Euryalo Cannabrava. Melhor dirá a
poeta ao evidenciar que “há todo um mito da noite, este
anoitecer que impregna em você, e anoitece junto com você, e
você sente-se em estado de graça por participar da noite no que
ela tem de poético e impregnante”. A noite aludida não é senão
nossa intimidade com o abismo, a revelação essencial da natureza
humana, a restauração do sagrado, um risco.
Todos
esses símbolos preciosos encontram-se na obra de Dora Ferreira
da Silva, cujo princípio poético aponta para uma meditação
constante sobre a condição humana, não sem compreendê-la como
indissociável da natureza como um todo. Não se trata de uma
solitária na tradição poética brasileira, desde que recuperemos
muitos nomes soterrados por intenção ou displicência.
Tratemos
de lê-la. A densidade de sua poética, não se diluindo ao plano
das consternações ou das máximas de efeito, impõe o recolhimento
natural à compreensão de toda grande poesia, cujo exemplo temos
em poemas como “Garças”, “Ciclo de Teseu” e “Retratos da alma”.
Dora Ferreira da Silva teve suficiente paciência para ser lida
pelos brasileiros somente aos 80 anos de idade. Que os
brasileiros saibam dignar-se diante de tamanha honra. |