Eduardo Guerra Carneiro: da janela à rua
Nicolau Saião
A
notícia tinha a chancela da Agência Lusa e eu li-a entre o pasmo
e a tristeza: aparecera morto, junto de sua casa no Bairro Alto,
o poeta (e jornalista) Eduardo Guerra Carneiro, autor de
diversos interessantes livros como sejam “É assim que se faz a
História” e “Isto anda tudo ligado”. De acordo com a agência
noticiosa, tudo leva a crer que teria caído da janela de sua
casa, num desses acidentes em que a geografia humana de Lisboa é
fértil. Chamado a comentar o acidente, se é que de um simples
acidente se tratou, Baptista Bastos referiu sem meias tintas:
“Foi o país que o matou. Este país que trata tão mal os poetas e
os prosadores” e que permite acrescento eu que existam muitas
situações de grandes dificuldades no sector dos trabalhadores do
espírito: intelectuais, jornalistas, etc., enquanto certos
senhores engordam cada vez mais seus pecúlios mediante
habilidosas e ágeis estratégias.
Não tenho mais elementos para aquilatar desta morte infausta aos
61 anos. Mas senti um arrepio no corpo e na alma. Ademais, há
muito tempo que o nome do ilustre autor de “O revólver do
repórter” não me ocorria nas voltas do pensamento.
Nos meus tempos de tertúlias pelos mentideros da capital,
via-o por vezes de raspão: aos serões do Café Monte Carlo ou
junto aos locais das redacções de jornais, lá pela Rua da Rosa
ou perto da “Barateira” que eu muito frequentava. Sabia-o autor
de textos poéticos acutilantes, roçando o surrealismo e o
neo-romantismo. E era tudo. Lera-lhe depois os versos, ao calhar
dos minutos, já na província onde me recolhera por mor da vida
vidinha de profissionalismos para granjear o pão da boca –
distantes que iam indo já os meus tempos de aventura boémia
quanto baste nos rincões lisboetas onde os poetas ombreavam alta
noite com actores de teatro (e actrizes), gente dos jornais,
cantores e pintores, uns em busca do sonho que os salvasse ou os
perdesse, outros por mesteres mais pedagógicos: a escrita, a
edição, a encenação, a maravilha dos tempos dispersos em
revoadas de imaginação partilhada.
Não sei porquê, vieram-me à memória nomes de outros mortos antes
de tempo: Gonçalo Duarte, João Rodrigues, António Maria Lisboa.
Gente que na pintura e na escrita deixou seu nome assinalado e
que se foi prematuramente, vividos que tinham sido os tempos
fugazes como as rosas de Malherbe.
É de todos conhecido que, em geral, este país trata mal os seus
artistas, os seus homens de espírito – salvas as naturais e
reduzidas excepções. Enquanto bastas vezes perde tempo a
contemplar políticos e pensadores de três ao vintém com uma
lábia do tamanho da légua da Póvoa, deixando-se ir
frequentemente nos seus tentames de velejadores de ruins
escunas. Será por isso que ao pé da Europa (a tenaz e
caballerosa Espanha, a sagaz França, a operosa Inglaterra,
etc.) fazemos um tão diminuto relevo?
Bem vistas as coisas e meditadas com certo cuidado, o poeta
agora falecido tinha razão: é que isto de facto anda tudo ligado
e, infelizmente, também é assim que se faz a história – a
história de um país e de uma sociedade ainda às três pancadas… |