Fernando
Alves dos Santos: lembrança e homenagem
Perfecto E. Cuadrado
A
história do Surrealismo em Portugal é ainda um território aberto
à descoberta e às surpresas, um território parcialmente
inexplorado onde podemos encontrar, junto a alguns protagonistas
já universalmente conhecidos outros que estão pedindo ainda uma
urgente reavaliação ou recuperação e alguns quase que uma
verdadeira ressurreição em parte por ter ficado à sombra dos
“vultos maiores” mas também por se terem afastado do mundo
literário ou artístico (ou pelo menos da face mais pública e
espectacular desse mundo), como foi o caso de um Risques Pereira
ou o do poeta que aqui e agora celebramos publicando a sua obra
poética: Fernando Alves dos Santos (Lisboa,1928-Albufeira 1993),
de quem pouca coisa ficou a se saber nas histórias excepto a sua
dedicação preferente à actividade teatral e a sua participação
nalguns dos episódios da aventura surrealista nos seus primeiros
momentos de afirmação e intervenção polémica e nalguma das
exposições que posteriormente tentariam recuperar momentos ou
aspectos particulares daquela intervenção mais com um propósito
de renovada provocação do que com os objectivos e os métodos do
historiador e do arqueólogo. Sabemos assim que:
1) Assinou
a “Declaração” enviada ao Diário de Lisboa, em carta
assinada por António Maria Lisboa em resposta a uma carta de
António Pedro ao mismo jornal (9-5-49), dentro da polémica
suscitada pelas intervenções no JUBA. A “Declaração” era
assinada também por: António Maria Lisboa, Mário Cesariny de
Vasconcelos, Henrique Risques Pereira, Pedro Oom, Carlos Eurico
da Costa e A. do Cruzeiro Seixas (Vid. Mário Cesariny: A
Intervenção Surrealista . Lisboa: Ulisseia, 1966, pág. 128;
reed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, pp. 129-130).
2)
Participou na 1ª Exposição dos Surrealistas. Sala de projecção
da “Pathé Baby”, Lisboa, 18 Junho-2 Julho 1949 com “Poemas e uma
mala”.
3) Assinou
o panfleto colectivo Do Capítulo da Probidade (Lisboa,
Dezembro de 1951) junto a Mário Cesariny de Vasconcelos, Mário
Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira,
Carlos Eurico da Costa e Artur do Cruzeiro Seixas [Panfleto em
resposta às afirmações/acusações de Alexandre O’Neill no seu
livro Tempo de Fantasmas. Lisboa, Cadernos de Poesia
. Fascículo onze. Segunda série. Novembro de 1951].
4)
Participou na exposição O Cadáver Esquisito Sua Exaltação
Seguida de Pinturas Colectivas. Galeria Ottolini. Jornal do
Gato. Lisboa, Fevereiro de 1975, com o cadáver esquisito
realizado em 1949 com António Maria Lisboa que no Catálogo da
exposição vem indicado com o título “Manifesto” mas que no
próprio desenho tem em baixo, antes das assinaturas, a frase “A
descoberta incessante dessa grande taça que habita o Mundo
Contrário”, título com que já aparece no Catálogo da exposição
“Três Poetas do Surrealismo”, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981.
Ora bem,
para além dessas colaborações em actividades colectivas,
Fernando Alves dos Santos deixou-nos uma obra poética de que
foram publicados dois livros (Diário Flagrante. Lisboa,
1954, e Textos Poéticos. Lisboa, 1957) e alguns poemas
dispersos por antologias, catálogos e revistas, ficando inéditos
vários outros poemas e um livro – De Palavra em Palavra –
que estava pronto para a sua publicação em 1988.
Da
actitude da crítica para com a obra de Fernando Alves dos Santos
queixava-se Mário Cesariny comentando que “a crítica, geralmente
bastante erecta, não quis ter a maçada de tropeçar no primeiro
livro de poemas, saído em 1953, do autor da ‘Mala do Viajante’”,
[1] e voltava ao assunto anos depois falando do autor como
“poeta de dois pequenos livros em alto voo planado, ainda hoje
invisível aos olhos da crítica”. [2]
Provavelmente a única excepção – mas esta fora de Portugal e
passada já mais de uma década da publicação das obras – a essa
atitude geral de silêncio da crítica foi a de Antonio Tabucchi,
quem havia de recolher na sua pioneira antologia da poesia
surrealista portuguesa alguns dos poemas do autor do Diário
Flagrante apontando ali que “la sua poesia si distingue per
una forza lirica ed evocatrice percorsa da una sottile vena
d’ironia”. [3]
No
primeiro livro, o Diário Flagrante, destaca a presença do
amor que da sentido a uma existência marcada pela experiência da
solidão e do silêncio na atmosfera muitas vezes asfixiante duma
paisagem carregada de signos de negatividade, nocturnidade,
vaguedade, deserto e exílio – a noite, o outono, a neblina, a
charneca (com Florbela invocada qualificando o substantivo:
“charneca florbela”) –, um sentido traduzido em termos
românticos de convulsão na presença do sublime na natureza, nas
ideias ou nas sensações:
Obrigado meu amor, obrigado
Pelo
medo da tua
morte,
pela
paisagem rara de humanidade,
pelos
longínquos sopros do silêncio: – OBRIGADO.
Pela
bela agonia do que existe,
pelo
esplendoroso mar que sinto a transbordar nas trevas,
pelos
relâmpagos gerados no horizonte,
pelas
minhas longas mãos em torno do teu leito,
pela
espuma que projecto nas estrelas,
OBRIGADO MEU AMOR, OBRIGADO.
E, na
esteira do estado de tensão romântica entre a realidade e o
desejo, o sonho como espaço ideal de liberação frente ao espaço
quotidiano e real e simbólico da cidade e como caminho para o
vôo do poeta à procura dum além luminoso que pode ser simples
miragem no deserto ou armadilha que o sol prepara ao novo ícaro.
Voar,
fugir, sonhar, procurar uma realidade poética onde respirar e
viver: a viagem, essa obsessão do poeta moderno, que sempre
esteve presente no imaginário do autor (lembre-se a mala com que
ficou representado na 1ª Exposição dos Surrealistas), percorre
como tema recurrente (às vezes através das alusões a um
emblemático comboio) os poemas do seu segundo livro, Textos
Poéticos, presidindo a belíssima narração lírica “As cidades
e o meu nome” onde a imagem do homo viator aparece ligada
à da construcção duma cidade feita para tornar possível a
experiência do amour fou que por sua vez permite à
personagem a descoberta e a experiência da própria identidade,
do “nome”, talvez aquele “nome” que Cesariny reclamava no seu
conhecido poema “A Antonin Artaud” como promessa e privilégio
duma “idade em que serão esquecidos por// completo//os grandes
nomes opacos que hoje damos às coisas”.
No livro
que ficou inédito (apesar dos esforços de Mário Cesariny para o
publicar) e que agora incorporamos a esta edição, a realidade
quotidiana vai emergendo das brumas do sonho para se concretizar
mostrando os seus perfis mais duros, as referências a essa
realidade (física, política, moral) são cada vez mais concretas
e identificáveis, e a luta pela sua transformação (reabilitação)
mais prendida à prosa do dia-a-dia e por isso mais
insatisfactória e mais cruel. Mas apesar das armadilhas e das
resistências da realidade real, o Poeta conseguiu chegar a esta
estação final da sua “itinerância” agarrado à sua mala mítica
onde sempre guardara a brúxula – o Amor – para não se perder na
Cidade que Verhaeren alcunhou lúcidamente de “tentacular” e o
instrumento – a Palavra – para perpetuar com as mais fulgurantes
imagens a sua condena e para desenhar a esperança resumida
poética e proféticamente no “haverá// um acordar” de Mário
Cesariny.
NOTAS
1. Mário
Cesariny: A Intervenção Surrealista. Lisboa: Ulisseia,
1966, pp. 203-206 (na reed. da Assírio & Alvim, 1997, pp.
202-205).
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