Floriano
Martins e as manifestações
surrealistas na América Latina
José
Castello
O
escritor cearense Floriano Martins tem-se destacado por um
trabalho inquieto como poeta, ensaísta, biógrafo, tradutor e
editor. Em suas mãos, os gêneros costumam se mesclar e
coexistir, e é isso o que ocorre mais uma vez neste O Começo
da Busca (Escrituras, 288 págs.), antologia crítica de
poetas latino-americanos marcados pela estética surrealista,
como Aldo Pellegrini, Enrique Molina, Octavio Paz e os
brasileiros Roberto Piva e Sérgio Lima, na qual se misturam
ensaios, poemas e entrevistas.
O
nascimento do Surrealismo pode ser datado em 1919, quando André
Breton e Philippe Soupault publicaram Os Campos Magnéticos,
considerada a primeira coletânea de “textos automáticos”. A
escrita automática, inspirada no “Eu é um outro” de Rimbaud e
ditada pelo inconsciente, foi seu método principal. André
Breton, o grande mentor, falava sempre em “nós” e, muito poucas
vezes, no “eu”. Ele encarava a poesia não como uma atividade
intelectual, submetida a regras e preceitos, mas como uma
aventura; apesar disso, foi, muitas vezes, duramente criticado
por sua postura rígida e seu gosto pelos sistemas. O Manifesto
Surrealista, primeira sistematização de idéias até então
dispersas, é de 1924. Teve adeptos entusiasmados e inimigos
impetuosos. O escritor romeno Tristan Tzara chegou a dizer: “Nós
sim éramos contra todos os sistemas e a favor do indivíduo.
Éramos contra até a ausência de sistema, desde que ela se
transformasse num princípio.” A polêmica nunca se esgotou.
Ainda que
discrepantes, as vozes de Breton e de Tzara ainda se confundem.
Num texto dos anos 90, o surrealista argentino Enrique Molina
diz que o surrealismo “não é um movimento estético, como outras
escolas de vanguarda, mas uma concepção total do homem e de suas
relações com o universo”. Um reino sem fronteiras, cujos
domínios ultrapassariam os da poesia. Quando desembarcou no
México, Breton declarou que chegava ao “país surrealista por
excelência”, frase que marca a introdução das idéias
surrealistas na América Hispânica. Desde então, como diz
Floriano Martins em seu ensaio introdutório, o surrealismo foi
vítima de “inúmeras confusões e atentados”. Até hoje, em
particular no Brasil, não recebe a consideração merecida.
O título
da antologia de Floriano Martins, O Começo da Busca, é um
empréstimo, invertido, do título de uma coletânea de ensaios
sobre o surrealismo, A Busca do Começo, publicada pelo
poeta mexicano Octávio Paz em 1974. Martins organizou este
livro, entre outras motivações, com o objetivo de desmentir a
idéia, bastante corrente, de que não houve surrealismo no
Brasil. A primeira manifestação surrealista na América do Sul se
deu em torno da revista Qué, publicada por Aldo
Pellegrini no ano de 1928. O movimento perdurou ao longo do
século, não se deixando vencer pelo tempo. Vinte anos depois,
surgiria, também em Buenos Aires, uma segunda revista, Ciclo.
A existência desse grupo, segundo Floriano Martins, desmente
“uma afirmação leviana de Octavio Paz, quando afirma que a
relação da poesia hispano-americana com as vanguardas européias
restringia-se à imitação”. Com Enrique Molina, a partir de 1952,
Pellegrini dirigiu uma terceira revista, A Partir de Cero.
Transcendência - A concepção poética dos surrealistas, de fato,
ultrapassa a noção de movimento datado. O argentino Aldo
Pellegrini a definiu assim: “A poesia nada mais é do que a
violenta necessidade de afirmar seu ser que impulsiona o homem.”
É, ainda segundo ele, tudo aquilo que “fecha a porta aos
imbecis”. Alargando ainda mais essa noção, Enrique Molina viu o
surrealismo não como uma escola literária, mas como “uma
concepção total do homem e do universo”. O movimento se espalhou
pelo Chile, com o grupo Mandrágora, de Bráulio Arenas; pelo
Peru, em torno das figuras de César Moro e Emilio Adolfo
Westphalen; e finalmente pelo Brasil. “Há um hábito da crítica
esclarecida em situar Murilo Mendes como exemplo isolado do
surrealismo no Brasil”, Martins recorda. Não se pode, contudo,
esquecer de nomes como Mário Pedrosa, Osório César e Flávio de
Carvalho. Em sua antologia, o surrealismo brasileiro está
representado por dois poetas contemporâneos, Roberto Piva e
Sérgio Lima.
Na parte
final do livro, há uma entrevista de Piva em que ele, lembrando
Lautréamont, recorda que, desde o surrealismo, a poesia passa a
ser feita por todos. “Não para todos, mas por todos, cada um à
sua maneira.” Esta ênfase na liberdade - que o dogmatismo de
Breton, em parte, destruiu - foi um dos motivos da lenta, mas
persistente disseminação do surrealismo na paisagem mais
dispersa da América Latina. O poeta Ángel Pariente chega a dizer
que “talvez os poetas americanos tenham sido mais audaciosos na
busca de uma linguagem poética”. Em sintonia com essa avaliação,
o brasileiro Sérgio Lima afirma, por sua vez, que a grande
novidade do surrealismo foi difundir a crença de que a arte não
tem uma função em si, que ela é apenas “um modo de expressão do
vital no homem”.
Apesar
dessa perspectiva universal, o surrealismo brasileiro, até hoje,
continua a ser desprezado. Um dos motivos, Martins cogita, seria
a crítica que os surrealistas sempre fizeram ao modernismo e ao
nacionalismo - que, a partir de 22, passam a dar as cartas no
cenário cultural brasileiro. Virada a página do século
modernista, talvez agora, enfim, se abra um espaço para uma
retomada menos preconceituosa das idéias disseminadas pelos
seguidores de André Breton. Nela, a antologia de Martins se
torna, desde já, uma peça-chave. |