Floriano
Martins e o mergulho em todas as águas
Rodrigo
Petronio
A verdade
é que todos querem ser Deus. E cada vez me parece que a grande
tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo.
Floriano
Martins
Se
a inteligência de um homem é proporcional à sua capacidade de
estabelecer recusas, ao conversar com o cearense Floriano
Martins tem-se a nítida sensação de estar diante de um homem
muito bem dotado dessa faculdade tão mal distribuída entre os
seres humanos, sobretudo entre os intelectuais. Autor do livro
de poemas Alma em Chamas, certamente um dos
acontecimentos poéticos das últimas décadas, e de uma obra
volumosa que abrange ensaios, crítica, tradução e entrevistas
com poetas, além de uma série de inéditos, Floriano é um dos
maiores conhecedores da poesia latino-americana moderna e
contemporânea entre nós, e vem fazendo pontes das mais
estimulantes entre essas literaturas e o Brasil. Mas, para nossa
surpresa, é uma voz solitária e praticamente isolada em sua
proposta. Pela importância e amplitude desse trabalho, veiculado
sobretudo nas revistas virtuais Agulha e Banda
Hispânica, das quais é editor, assusta sabermos que ele não
tenha maior repercussão. Também é de se estranhar que algumas
poéticas e estéticas como o Surrealismo, por exemplo, de grande
penetração no resto da América e do mundo, não tenha encontrado
acolhida em terras brasileiras. E Floriano, para reparar esse
lapso e historiar o desenvolvimento do movimento lançado por
Breton em Paris em 1921, publicou recentemente o livro O
Começo da Busca – História do Surrealismo na América Latina,
que traça um perfil histórico dessa estética, emulando e
invertendo o título de um livro onde Octavio Paz faz esforço
similar, La Búsqueda del Comienzo. Agora prepara o
segundo volume desse trabalho, que virá aprofundar, desenvolver
e complementar alguns aspectos do primeiro.
São
múltiplas as causas da negligência brasileira para com a cultura
de seus vizinhos e da nossa resistência a um tipo de
representação artística que ele crê das mais subversivas. E é
entrando nesses assuntos que a conversa esquenta, e Floriano só
falta soltar fogo pelas ventas. Um dos principais motivos dessa
barreira brasileira é o que ele chama de “falseamento da
história”. Segundo ele, todo corte brusco e abrupto na história
produz uma falsificação, pois apaga a multiplicidade do fenômeno
no momento em que ele estava ocorrendo. Assim, a eleição da
Semana de 22 como o ingresso do Brasil na modernidade, embora
seja um fator aparentemente irreversível, não dá conta da
diversidade dos fatos e equivale à “leitura do curso das águas
em uma lagoa”. Muita coisa se perdeu nesse processo, e a extensa
documentação sobre cantos populares colhida por Alberto
Nepomuceno, por exemplo, intelectual morto em 1920, anterior
portanto à Semana, e de quem Floriano escreveu uma biografia,
foi praticamente esquecida em proveito das pesquisas de Mario de
Andrade. Por outro lado, o Modernismo teria inaugurado um
“regime de exceção”, por meio do qual convalidou seu ideal de
modernidade e de nacionalismo imbuído do Futurismo de Marinetti,
e a partir do qual passou a criar os critérios eletivos para a
formação do cânone literário no Brasil, critérios esses nem
sempre de ordem estética, mas meramente ideológicos. E aqui
entra o Surrealismo, mais especificamente os argumentos que
Floriano desenvolve em o Começo da Busca, e a defesa de
duas diretrizes: uma reavaliação urgente do lugar que Murilo
Mendes e Jorge de Lima ocupam no cenário da literatura
brasileira, instigando a crítica a desvinculá-los de vez dos
estigmas limitadores da “poesia em Cristo”, e a recusa desses
dois poetas como sendo os únicos representantes do Surrealismo
no Brasil, aos quais Floriano soma os nomes de Roberto Piva,
Claudio Willer e Sergio Lima, entre outros.
Essas
faces se conciliam, no entanto. E ele faz um traçado oblíquo
onde procura demonstrar as lacunas do cânone literário
brasileiro, articulando-as à história do Surrealismo e a uma
série de poetas hispano-americanos desconhecidos por nós. Suas
reivindicações são duras, passam longe da fala amaneirada e
adiposa com a qual viemos nos acostumando nos últimos tempos no
âmbito do debate literário. Assim, ele começa julgando que mesmo
a trinca de ases que gozam de prestígio em língua portuguesa –
Paz, Neruda e Borges – deveria ser filtrada com maior
seletividade e analisada de forma mais conseqüente. Porque
Octavio Paz, que “sempre foi crítico da realidade que tinha à
sua volta”, com o tempo começou a deixar de sê-lo, e, como
poeta, acabou se “cristalizando bastante cedo”. Neruda pôs em
cena o seu ego monumental para a criação de suas obras
“cosmogônicas”, mas não conseguiu levar sua empreitada muito
adiante, e Borges, segundo Floriano, é um grande “fabulista”, um
homem dono de uma grande capacidade de fazer de si o centro do
mundo e de criar mundos possíveis, mas que, como poeta, faz
valer as palavras do crítico Gerardo Deniz, sendo muitas vezes
“previsível e enfadonho”.
Nesse
diapasão de leitura crítica, para Floriano, não só o nosso
desconhecimento da literatura hispânica é aviltante, como o que
conhecemos é muitas vezes referendado sem muito rigor e
absorvido de forma um tanto epidérmica. E um caso onde essa
distorção se dá de maneira mais aguda é no que diz respeito ao
cubano Lezama Lima, um dos seus autores prediletos, mas cujo
caráter algo “enciclopédico” de sua obra e sua reivindicação de
uma estética autóctone por intermédio da figura do Señor
Barroco, presente em um dos seus ensaios, acabaram sendo
apropriados pela estética Neobarroca de Severo Sarduy e pelo
Neobarroso do argentino Nestor Perlonguer, que fizeram uma
leitura distorcida do grande poeta, autor de Dador. E
nesse ponto Floriano parece dar as cartas da tradição poética
que realmente lhe interessa. Segundo ele, todos esses autores
tentaram, cada um à sua maneira, “ser Deus”. E que cada vez mais
lhe “parece que a grande tradição poética é consubstanciada por
quem se recusa a sê-lo” – arremata. É assim que trava o seu
pacto luciferino com o anti-cânone das letras hispânicas, ou
pelo menos com o lado menos óbvio do mapa dessa cultura, e fala
de suas predileções, como o poeta venezuelano José Antonio Ramos
Sucre, que “se matou por não suportar mais a presença de visões
que lhe assombravam a existência” e não vivia “em um plano
literário, mas sim na mesma dimensão excessiva de um Artaud”.
Faz uma menção especial aos poetas do Chile, cuja “vertente
múltipla encontra em Pablo de Rokha, Rosamel del Valle e
Humberto Díaz-Casanueva uma fonte de renovação que não
desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo com a
Europa”. Já no colombiano León de Greiff, “encontramos o mais
surpreendente caso de polifonia na tradição poética
latino-americana”, enquanto o guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón
“soube buscar na algazarra da modernidade uma voz que fosse a
soma de todas”. Floriano ainda repassa o nome do nicaragüense
Pablo Antonio Cuadra, que, assim como Lezama Lima e Octavio Paz,
foi um dos autores pioneiros nas leituras que têm como objetivo
uma definição cultural da América, e que “estabeleceu uma nova
relação com o mito”.
Claro que
essa dificuldade de penetração do Surrealismo no Brasil não se
deve apenas a um fator ocasional e à formação do cânone. Deita
raízes em uma longa tradição positivista, que se espraia em uma
série de esferas da vida social e intelectual e bloqueia
qualquer iniciativa de subversão de seus postulados. Para
Floriano, nossa história é marcada tanto pelo peso de teorias
cientificistas, no pior sentido desta palavra, quanto por certa
“chaga cristã”, que, por exemplo, obstou uma efetiva “explosão
do ser” nas obras de Murilo Mendes e Jorge de Lima, tornando-os
fraturados e divididos em suas consciências entre a aspiração a
uma liberdade total e os limites motivados pelo pecado e pela
negação católica, e, portanto, incapazes de levar às últimas
conseqüências a proposta Surrealista como ela de fato o foi em
outros países. Já o caráter cientificista das teorias positivas,
que encontrou ambiente fértil no Brasil, estimulou uma relação
cada vez mais imanente e estrutural com a linguagem poética, a
ponto mesmo de desvinculá-la da matéria vital que lhe origina e
transformá-la em um arranjo de signos, “apartada da realidade”.
Na ótica de Floriano são mais ou menos esses os ingredientes de
um novo falseamento da história, levado a cabo pelo
Concretismo. E mais uma vez, em 1956, com o Plano Piloto da
Poesia Concreta e tudo o que adveio daí, temos um recorte
“fabricado” da história e um novo “regime de exceção”. Se o
“afazer” poético se torna uma forma de “afasia”, e ao invés de
construirmos uma linguagem que plasme e transfigure todas as
dimensões do mundo e todas as camadas da realidade nós nos
isolamos nela como nefelibatas em suas torres de marfim, sob a
desculpa de só assim podermos conquistar aquela autonomia da
linguagem poética inaugurada pela arte moderna, então rompemos
todos os vínculos entre o pensamento e a ação, e todo o projeto
de criar uma arte inclusiva e de valor rigorosamente continental
vai pelos ares.
O
interessante é que Floriano, em um dos seus livros, Fogo nas
Cartas, defende a tese de que a poesia, mesmo sendo
“intransitiva”, é filha da “alteridade”. Sua visão é de que
poesia e política se complementam, assim como a reversibilidade
do imaginário e do real pode gerar novos horizontes, novos focos
de luz que podem incidir e transfigurar a face da realidade que
se nos apresenta. Assim, a chamada autonomia não é algo que se
esgota na linguagem, tomada em si mesma, composta a partir de
regras intrínsecas e em oposição ao mundo, nem algo que deve
servir de veículo ou instrumento de transformação desse mesmo
mundo, porque senão ela seria política sem ser poética, mas um
misto dos dois. E é nesses termos que ele se refere a alguns dos
poetas brasileiros como “autistas”: crêem que a autonomia nasce
de um “idioleto”, de uma fala exclusiva criada por eles mesmos
ou pela manipulação da linguagem em uma dicção especial e
especiosa que por ventura tenham encontrado. Pelo contrário,
Floriano diz que a autonomia do poeta só nasce no momento em que
ele “mergulha em todas as águas”, e sente sua voz a tal ponto
madura que pode com ela e nela plasmar e encarnar a realidade
que o circunda, não apenas descrevendo-a ou manipulando
técnicas, mas penetrando verticalmente o mistério Ser e o seu
devir.
Essas
considerações ganham uma dimensão muito ampla se pensarmos na
história de nossa mentalidade e nas estruturas hegemônicas do
pensamento no Brasil. Basta lembrar que boa parte da nossa
poesia e da nossa crítica literária atual flertou ou ainda hoje
mantém vínculos fortes com a vertente Estruturalista, com a
semiologia ou com as escolas mais recentes dos
desconstrucionistas, como a de Derrida, por exemplo, que pregam
um recorte poético sincrônico e atemporal, onde a poesia
pairasse incólume, livre das contingências e cristalizada sob a
forma de um puro enunciado discursivo. É claro que de novo isso
não tem nada, e já está na antiguidade: o velho filósofo grego
Crates, da escola cética, também propôs que a verdade era
inacessível, porque tudo era fruto de artimanhas da linguagem.
Com a diferença que Crates, de posse dessa mazela existencial,
foi viver com os cães, dormir em um barril, ter seu corpo
forrado de pústulas e se alimentar exclusivamente de tremoços,
revelando no mínimo mais coerência e honestidade intelectual do
que os nossos novos céticos, que usam toga universitária e falam
francês.
Por outro
lado, há uma outra tradição intelectual brasileira que procura
dar fundamentos ontológicos à história, e é movida por uma busca
romântica frenética de Nacionalidade e da essência nacional que
nos constitui, busca essa que, malgrado ser frenética e muitas
vezes proceder por meios tão equivocados quanto o mérito
intelectual daqueles que a exercem, até que poderia ser de bom
talante, caso não desprezasse os meios em benefício dos fins. Em
resumo, no meio-fio entre essas duas correntes do pensamento,
somos marcados por uma história intelectual cuja chaga, para
além de cristã, parece vir coroada pelo dilema infinito e pela
disputa maniqueísta entre duas forças que funcionam como a mesma
simetria de um céu e um inferno: Forma versus Conteúdo. Haja
vista que mesmo as variantes desses termos partem deles, ora
invertendo seus postulados ora os embaralhando, sem contudo dar
um passo sequer além da pobreza dessa descrição de mundo. E
penso aqui na Antropofagia de Oswald de Andrade, que pretendeu
eleger a “forma brasileira” de ser, e no Concretismo, que “fez
da forma um conteúdo”, como um caranguejo que se crê
revolucionário por ter decidido andar para frente. O fato é que,
para qualquer pessoa inteligente, ambas não passam de um
purgatório, e o que esperamos é uma redenção, não um
aprofundamento de nossa própria esquizofrenia.
O
“mergulho em todas as águas” de que nos fala Floriano Martins é
providencial e significativo. Aliado à perspectiva continental
de sua visagem literária e ao caráter libertário do Surrealismo,
sinaliza que ainda há muita água para correr pelo rio de
Heráclito, muitas barragens a serem estouradas e muitas lagoas
onde os sapos de ontem, sempre os mesmos, ainda coaxam, a serem
arrebentadas pela fúria de seu devir que há de explodir em um
futuro próximo, segundo carta de Pierre Naville que Floriano
Martins cita. Quem sabe assim a dualidade do bem e do mal seja
superada e possamos enfim auscultar a unidade parmenídica do Ser
essencial que configura e anima todos os seres, sejam eles
movidos pelo fogo, pela água ou por qualquer outro quinto
elemento que esteja além da matéria, que desconhecemos e que
provavelmente nunca viremos a conhecer. |