A obscena madame
Hilda Hilst
Floriano Martins
Quando
em 1990 Hilda Hilst publicou O caderno rosa de Lori Lamby,
apressou-se a imprensa em julgar seu abandono da “literatura
séria” em troca do “riso demolidor do erotismo”. A incoerência
de tal julgamento bem poderia despertar risos, ao mesmo tempo em
que refletia uma idéia vulgar acerca do erotismo na literatura.
O erotismo não é a outra ponta da “literatura séria”, tratemos
logo de situar.
Com dois
livros publicados pela francesa Gallimard - Contes
sarcastiques (1994) e a recém-lançada tradução de La
obscène Madame D (1997) -, não se ouve mais dizer de Hilda
Hilst que apenas “explora o filão da pornografia”. Sua aventura
lúbrica tornou-se “literatura séria”. Todos os dias nos
deparamos com atitudes idênticas no cenário da cultura
brasileira.
Estando
toda a atenção em torno de seu nome desviada por esse jogo de
incoerências, deixamos passar despercebidos dois aspectos
fundamentais: a grandeza de sua poesia e a renovação de ar nos
pulmões de nosso conceito de narrativa. Até o momento publicou
Hilda Hilst dezoito livros de poesia e onze de prosa poética
(definição que me parece a mais adequada). Vale acrescentar uma
curiosidade: possui inédita uma obra teatral composta por oito
títulos, textos escritos entre 1967 e 1969, embora as peças
tenham sido montadas por grupos amadores.
Outro
desfoque: a estranheza a que ela faz juz, quase um protocolo, a
exemplo de outros nomes - Roberto Piva e Orides Fontela -, em
parte provocada por seu retiro à chamada Casa do Sol, sua
residência em Campinas desde 1967. No fundo, achaques de uma
cultura que mal se mantém de pé. Os bastidores acima de tudo.
Outros já viveram a glória plena de sua estranheza, a exemplo de
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan.
O risco
que se corre, limitando-nos aqui ao plano literário, é dar
crédito ao que não importa. O prejuízo maior: não importar-se
com o que verdadeiramente merece crédito. No caso de Hilda Hilst
observa-se menos aquele equívoco do que este. A singularíssima
obra poética que vem tecendo desde a estréia com Presságio
(1950) caracteriza-se por um confessionalismo desbragado,
despudorado, rigoroso com seus excessos. Despe-se por inteira a
persona de sua poética, despojando-se de toda máscara. Também
como linguagem, desfaz-se de todo ornato.
Quanto à
prosa poética, não se alteram propriamente as características
acima referidas. Ao contrário, são acrescidas de duas outras
particularidades, uma temática e outra estilística. O rigor
mortis cultivado na poesia amplia-se em uma visão igualmente
singular de uma metafísica do erotismo. E dilata-se também a
escritura em busca de uma abrangência maior, apropriando-se de
configurações comuns ao teatro, à poesia e à narrativa. Em Hilda
Hilst a decantada fusão de gêneros não se restringe ao âmbito da
moda. Não se trata de pós-modernidade, e sim de um rigor
estilístico, de uma tácita abrangência de meios de expressão.
Tudo isto
perdemos, deslumbrados que sempre estivemos com os bastidores,
os efeitos de cena e todo tipo de falsas evidências. A revista
Amiga ainda é o grande ícone de nossa cultura. O leitor
brasileiro é desavergonhadamente tratado como cobaia de indução
de marketing editorial. Clara estratégia nazista. Tentamos acaso
formar uma raça pura de leitores de Machado de Assis e Vinícius
de Morais? De uma forma ou de outra acabamos de volta ao futebol
e ao carnaval.
Diante de
tudo isto, nos mostra agora Hilda Hilst o que se perdeu de sua
leitura nos últimos anos. Chega às livrarias de todo o país o
livro Estar sendo. ter sido (1997), prosa poética bem ao
exemplo de A obscena senhora D (1982) e Rútilo nada
(1993). Aventura confessional mesclada ao despojamento sintático
e à dissolução dos gêneros. O livro possui uma estrutura
simplificada: em uma pequena aldeia litorânea reencontram-se
dois irmãos, limitando-se o diálogo às reminiscências trágicas
de um deles, Vittorio, escritor sexagenário traído e largado
pela esposa, levando consigo, para o reencontro com o irmão,
Matias, o único filho e a firme decisão de ali aguardar o
encontro com a morte.
A idéia
não faz o livro. Vittorio toma as páginas a recordar suas
excentricidades eróticas, seu malabarismo lúbrico. Nada se
compara aos poemas escritos por Vittorio, em parte mostrados no
livro. Um leitor moralista pode dizer que suas lembranças não
soam como instáveis ou contraditórias, que antes deflagram o
revés da máscara com que se mostrou o medíocre protagonista.
Acima de toda moral - o que há mesmo acima de toda moral? -,
entendemos o mundo de Vittorio muito próximo do nosso.
Identificação com base na frustração. Toda vida passada a limpo
é um exercício de reconhecimento do desejo interdito.
Grande
fôlego de Hilda Hilst: antes de aceitar a si mesmo o homem não é
nada. Não contrapõe, antes alia as distorções. Não se trata
unicamente de matéria verbal. Mesmo seus artifícios barrocos,
seus fleumas eróticos, sua estranheza contumaz. Tudo em Hilda
Hilst é uma recusa do encontro disfarçada justamente pela
ansiedade do encontro. Em toda sua obra o rigor mortis é
antes de tudo um desejo. Assim a dupla face de Eros. Enigma
construído com base na sugestão. E o disfarce alquímico e
metafísico de suas personas, sempre a mesma.
Este novo
livro de Hilda Hilst é importante em dois aspectos: de um lado
põe em discussão uma estilística, de outro revela uma vez mais a
incapacidade do mercado editorial brasileiro perceber suas
verdadeiras pérolas. Seu livro sai não por uma consagrada
editora e sim por uma casa editorial estreante. Mérito tomado de
aplausos. A discussão estilística: trata-se de um livro cifrado,
definido pela recolha de short stories e não por sua
trama intrínseca. Diz-se dele o que não é: o argumento
fragmentado. Quis ser o que não foi: um livro à espera de Deus,
toda a memória tomada por prevaricações. Limiar moral, na certa.
Desgraçadamente mal resolvido.
Não
confundamos, no entanto, a estranheza de Hilda Hilst com seus
exercícios literários. Submersa em si mesma, dará em tudo. Na
embriaguez mística, no inferninho metafísico, na agonia
parnasiana. Toca e refaz. Sabe quando o menos é mais, quando a
linguagem se renova ou quando apenas busca um carimbo de
“passável”. Hilda será sempre uma grande tarefa para os
corredores de nossa crítica literária. |