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J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Isabel Meyrelles | (1929)

Isabel Meyrelles: Obrigado por vossa atenção

 

Floriano Martins

 

Desde o princípio, a poesia de Isabel Meyrelles (Matosinhos, 1929) sugere – independentemente de seu vínculo direto ou indireto com o Surrealismo – dois caminhos: uma muito peculiar trilha elegíaca e um namoro discreto com ludismo e imaginário popular, aqueles jogos sutis e tão fascinantes que despertam a leitura de poemas de Jacques Prévert, por exemplo. Em seu livro dedicado ao Surrealismo, Maria de Fátima Marinho anota que não se verifica nesta poesia, em suas primeiras produções, “uma influência surrealista muito nítida”, em seguida realçando: “curiosamente, é num livro muito mais recente, de 1976, que Isabel Meyrelles apresenta mais elementos surrealistas”. [1] A ensaísta refere-se a Le livre du tigre, o quarto livro da poeta que antes já havia publicado Emvoz baixa (1951), Palavras nocturnas (1954), e O rosto deserto (1966). As metáforas transfiguradas vão surgindo aos poucos em sua poesia, é verdade, porém já as encontramos desde o primeiro livro, e a seu lado também se vão configurando e adensando outras características do surrealismo: o humor e a exaltação lírica.

Em um livro como O rosto deserto, existem inúmeros laços com o Surrealismo, em que o acento lírico fia uma colcha fulgurante de imagens sutis e refinadas. O mundo fabuloso de Isabel Meyrelles está mais afeito às adivinhações populares, cantigas provençais, contos de marinheiros, e a todo este universo recolhido dava-lhe matizes que se aproximavam daquele “entendimento com o inesperado” que evocava René Char. Não se trata aqui, de todo, apenas de mistério, mas antes de um jogo entre o misterioso e o ilusório, entre o vivido e o imaginado. Uma ligação que Isabel faz muito bem amparada pelo fulgor lírico pela presença de um humor requintado. Tudo isto lhe garante a afinidade com o Surrealismo, mas, sobretudo, define uma poética bastante própria e jamais submissa aos reclames ortodoxos de parte alguma, oriundos das matrizes surrealistas francesas ou de seu cataclismo português, sem se perder no jogo suicida de quantos exijam, de tais ligações, que engendrem um personagem mais real que toda a realeza surrealista. Seu fluir poético, portanto, é naturalmente surrealista, desde sua primeira imagem.

Isabel Meyrelles muda-se para Paris em 1950, aos 21 anos de idade, onde reside até hoje. O francês é uma língua íntima e essencial para ela, que se tornaria tradutora de autores portugueses e brasileiros. Traduz obras de Herberto Sales, Jorge Amado, José Régio e Mário Cesariny de Vasconcelos. Sua paixão intensa pela ficção científica e pelo fantástico a leva a especializar-se no assunto e, em 1976, publica, em Lisboa, uma antologia intitulada O sexo na moderna ficção científica. No ano seguinte, organiza duas exposições em Portugal, dedicadas ao tema da criação artística na ficção científica. Dentre todos os surrealistas portugueses, sua identificação maior foi com Cruzeiro Seixas, com quem realizou exposições (1984 e 1996), tendo sido responsável pela compilação da obra poética deste imenso artista. [2] Da intensa afinidade com Cruzeiro Seixas resulta uma séria de esculturas de Isabel, criadas a partir dos desenhos de seu amigo.

Ao escrever sobre as esculturas de Isabel Meyrelles, disse Françoise Py que, apesar de seus motivos oníricos, elas resultam em objetos que são configurados por um rigor clássico. [3] Mas não deve mesmo haver contradição entre tais elementos. Idéias audaciosas ou discrepantes podem se perder, aso não encontrem um corpo com violência formal idêntica à de sua gema sonhada. É possível até mesmo falar em um rigor automático ou em um rigor onírico. O que há de mais autêntico nessa escultora-poeta, que não teme o confronto com essas contradições, é a maneira como recorta as diversas texturas do mundo à sua volta e lhes dá uma deslumbrante conotação fabular. Não é que tudo ali seja fábula, mas antes, que o fabuloso está presente em todos os momentos evocados por sua obra, poesia e escultura. Em todo momento nos lembra: o imaginário é parte de nossa vida. Vem daí, decerto, que se valha, na poesia, da cumplicidade com tigres e espelhos, sobretudo em O livro do tigre e O mensageiro dos sonhos. Apóia-se no bestiário fantástico que já desenvolve plenamente em suas esculturas e no desdobramento de imagens, no jogo lúdico que os espelhos permitem. Por ali passam Blake, Borges, Carroll, mas também as canções de amigo, o livro da criação, as declinações desconcertantes da memória… Nenhum labirinto é digno de seu nome, se não traz em suas entranhas um minotauro.

E não se pense que é possível adentrar este mundo prodigioso de Isabel Meyrelles sem a cumplicidade do humor, em seu caso um humor engenhoso, finíssimo, com imagens que evocam “uma máscara que tem um ar tão verdadeiro / que toda a gente se engana” ou “prisioneiros de uma gaiola aberta”. Humor que se alimenta de uma mesma fonte de paradoxos, porém sem se resumir a simples pilhéria ou tirada jocosa. Um humor que não se limita a arruinar um plantel de conveniências sociais, mas sim que se mostra como um abismo ante os dilemas da resignação. É um ousado ponto de partida, quase de todo impalpável, que nos põe em contato com o que há de mais verdadeiro em nós e que, por abandono de nossa força de vontade, tornamos impossível. Há aqui aquele entendimento do riso, que defendia Georges Bataille, o que me lembra uma passagem de Le coupable [4]  que bem poderíamos encontrar em um poema de Isabel: “o homem é sempre uma danaide esgotada”.

É naturalmente aquele mesmo sentido de humor que levou Mário Cesariny a perceber “uma revolução que a revolução não quer”. Referia-se então ao amor (“o prazer da descoberta, o sentido de uma vida exaltada e exaltante”), [5] porém o motivo pode passar de um ponto a outro, ser deslocado ou aventurar-se em outros abismos. Em qualquer caso se sabe que ao fechar as cortinas saímos da sala com as mãos vazias. Este é o grande espetáculo da existência. A poesia de Isabel Meyrelles o traz constantemente à memória.

Referi-me inicialmente a Prévert pela proximidade entre ambos no que diz respeito a pequenas tiradas de humor atento ao imaginário popular. Não há em sua poesia a dessacralização enfática do real, que encontramos em Hans Arp, por exemplo. Há, sim, uma desconfiança criadora que, em todo momento, manifesta sua crença em um mundo possível. A mesma sintonia que encontramos em Cruzeiro Seixas. [6] Na escultura, verifica-se o mesmo sentido de humor. Uma dessacralização constante de todos os restritivos aspectos canônicos a que nos acomodamos.Matéria, onde permaneces, onde repercutes? Desabrigar-nos é uma nobre função da arte, que jamais deve indicar caminhos, mas, antes, pôr em dúvida todo e qualquer caminho. Este é o grande vetor da revolução surrealista. Se não foi levado a termo, em alguns casos, por signatários do movimento, não cabe anular as forças – em benquista diversidade – empenhadas em tal empresa. Tem sido imensa a contribuição de Isabel Meyrelles neste sentido.

Teremos, afinal, a oportunidade de ler as esculturas e ver os poemas. Há sutilezas nas duas linguagens, que parecem mais perceptíveis quando as conhecemos em igual medida. A comparação denuncia uma subversão de equivalências, sim, porém, aqueles aspectos já mencionados, o requinte do humor e a intensidade lírica, expressam uma intimidade tal que certamente deliciará quem venha a confrontar as duas linguagens, sem jamais esquecer o agudo lembrete de um de seus poemas: “Atenção ao degrau, / um bom passageiro / é um passageiro morto”.

 

 

NOTAS

1. O Surrealismo em Portugal, de Maria de Fátima Marinho. Imprensa Nacional/Casa da Moeda. Lisboa, 1987. Este livro, apesar de ser documento abrangente em torno do surrealismo português, encontra-se demasiado pautado por aspectos canônicos, não desvelando circunstâncias mais essenciais, peculiares, que melhor caracterizam a aventura do Surrealismo em Portugal. O comentário claramente equívoco sobre Isabel Meyrelles aqui aludido, por exemplo, é a única menção crítica a esta poeta no decorrer das 740 páginas desse livro.

2. A compilação da obra poética de Cruzeiro Seixas, prevista para 5 volumes, vem sendo publicada pela Quasi Edições, desde 2002.

3. Texto para catálogo da exposição "O universo dos sonhos". Galeria São Mamede. Lisboa, maio de 2004.

4. Le coupable. L’Alléluiah, de Georges Bataille. Editions Gallimard. Paris, 1973.

5. Trata-se de resposta a Rien o quoi? (Paris, 1970), questionário preparado por Vincent Bounoure sobre atualidade do Surrealismo como atividade grupal. Cesariny faz este comentário lúcido e provocativo a partir do tema cadáver-esquisito, que se aplica ao nosso assunto: "Verdadeiramente, o primeiro ‘cadáver-esquisito’, o primeiro texto escrito a dois, os primeiros protestos coletivos – há quanto tempo já? – são o germe de uma revolução que a revolução não quer: o amor, o prazer da descoberta, o sentido de uma vida exaltada e exaltante – nada de semelhante pode se encontrar nos programas revolucionários oficiais. Não sabemos sequer se um dia tais programas quererão dar conta dos ‘cadáveres-esquisitos’ da nossa existência."

6. Sugestão de leitura: Homenagem à realidade, de Cruzeiro Seixas [org. Floriano Martins]. Escrituras Editora. São Paulo, 2005.

[Prefácio do livro Palavras noturnas e outros poemas, de Isabel Meyrelles. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2006.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

     1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
    2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
     3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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