A poesia de Ivan
Junqueira
Floriano Martins
Indagado
pela jornalista Denira Rozário sobre o estopim da poesia,
responde Ivan Junqueira que “a origem de um poema está sempre
vinculada, de alguma maneira, a uma matéria da memória”. Em
função disto recordo uma observação de Milan Kundera em torno do
equívoco que é buscar atitude - qualquer que seja sua ordem - em
uma obra de criação, quando ali se deve procurar justamente o
envolvimento com uma aprendizagem, com um sentido primeiro da
compreensão, do mergulho no universo do desconhecido, única
viagem que nos faculta o conhecimento da beleza. O conhecimento
evocado pela poesia é exatamente o da matéria espiritual. Neste
sentido irmanam-se poesia e filosofia: a riqueza da chama que
ilumina e desvela os meandros de uma geometria do espírito, de
um lado; as escavações no horizonte do imponderável, de outro.
Uma mesma raiz definida pelo fogo ostensivo da beleza, mescla de
visão e recolhimento, de expansão e esvaziamento. Compreende a
poesia a irredutibilidade nas relações entre beleza e vazio. E o
compreende justamente por buscar o centro, o magma de toda
grandeza e vulnerabilidade da experiência humana. Melhor: por
existir justamente a partir dessa busca. Digo existir e não
realizar-se, uma vez que, definindo-se como linguagem, só pode
realizar-se a partir de sua compreensão como tal, ou seja, a
partir de sua definição como objeto, construção, matéria. Aí
reside, em grande parte, a confusão reinante no universo de
entendimento da ação do poeta, que tanto nos aclara Kundera em
diversas ocasiões de seu Os testamentos traídos. Age
portanto a linguagem e não a intenção do poeta, sua atitude.
Uma
paginada geral em qualquer seleta de poesia brasileira
contemporânea nos leva a situações que se movem de maneiras as
mais desconexas dentro do que acima mencionamos. Estivéssemos
fazendo um balanço dos anos 60 identificaríamos com mais
brevidade o raio de ação das correntes envolvidas: de um lado a
supremacia do poder estabelecido pelo Concretismo, segundo
expedientes programáticos corriqueiros; de outro o recolhimento
em si de uma resistência surrealista que não ousou o suficiente,
sequer no plano de uma denúncia mais austera, para desbancar as
articulações do trio Noigandres. Logo em seguida identificamos
com muita facilidade a demência underground da chamada
geração mimeógrafo. Nenhuma herança literária - exceto
parcialmente pela poesia de Ana Cristina César -, por mais que
tenham empunhado suas penas favoravelmente a alguns nomes desta
geração críticos como Heloísa Buarque de Hollanda, Carlos
Alberto Messeder Pereira e José Guilherme Merquior.
Desde
então vivemos uma época obcecada pela produção do genuíno em
escala vertiginosa, a palavra convertida em slogan
sensacionalista. Ascende a mediocridade, em tal circunstância, à
categoria de “esplendor artificial”, como bem o definiu George
Steiner. Há evidências indiscutíveis de um severo e sigiloso
programa de silenciamento da expressão criativa do artista em
nosso tempo. Trata-se de uma visão acentuadamente
centralizadora, coercitiva, de usufruto do poder a partir do
cerceamento da ação do outro. Trata-se, claro está, de uma
recusa violenta - por mais que a disfarcem os meios de
comunicação, principais beneficiários de tal situação - da
diferença entre os homens, da raiz de nossa própria existência
no mundo. Bem sabemos que a aparente multiplicidade de escolhas
que nos colocam as sociedades contemporâneas - sobretudo em
países como o nosso - articula-se em uma teia estratégica de
evasivas, ardil calculado que engendra um esvaziamento da
escolha individual. Não há poesia determinada por esse ou aquele
parâmetro exterior a seu próprio magma incandescente. Através da
criação o homem determina sua própria existência, ao definir a
extraterritorialidade de uma aventura que, embora tenha raízes
essencialmente pessoais, inscreve-se na necessidade vital de ser
compartilhada por todos.
Disse
acima não haver herança deixada pela denominada geração
mimeógrafo. Claro está que me refiro àqueles poetas que
assumiram, de uma ou de outra maneira, o compromisso estético -
se assim podemos falar - que caracterizou tal geração. Aqui me
valho de uma lúcida avaliação de Sérgio Campos, ao situar que,
“nestes tempos de subcultura, os apóstolos dos chamados novos
tempos têm primado por dar ao poema a maior sujidade,
relaxamento formal e desmazelo de escrita possível”, concluindo
que “pretendem com isso decretar a morte histórica (ou estética)
da poesia em sua acepção clássica, a começar pela agressão à
palavra, levada ao paroxismo”. De uma maneira geral, como já
afirmei em várias ocasiões, a grande contribuição da poesia
brasileira vem exatamente daqueles poetas que não atrelaram seu
nome a nenhuma circunstância de turno. Entre eles, destaca-se
uma das vozes mais autênticas de nossa poesia, o carioca Ivan
Junqueira (1934).
Toda
grande poesia traz implícita uma irredutível defesa da memória e
seus atributos, razão que tem levado alguns poetas a afirmarem a
primazia absoluta do caráter autobiográfico da poesia. A este
respeito, disse o poeta argentino Enrique Molina que “a
biografia do poeta está em seus textos”. Na verdade a palavra
poética orienta-se basicamente a partir dos espaços preenchidos
pela memória. Define-se como que à espreita da revelação desses
espaços, contribuindo fundamentalmente para a iluminação de suas
vastidões obscuras. Neste percurso não há verdade inviolável, e
nele o que descobre o poeta é exatamente a vulnerabilidade de
toda presença, vulnerabilidade física de tudo quanto se mostra
escondido em si mesmo, no aguardo de firmar sua verdade
interior. Cabe ao poeta então descobrir a “respiração vital” (María
Zambrano) de todos os ímpetos de sua memória, de maneira a
fundir palavra e existência, ser e vida. Tudo isto que afirmo
nos parece uma grande lição adquirida da leitura da poesia de
Ivan Junqueira. Muito além de seu “obstinado rigor vocabular”
(Per Johns) ou de seu domínio “magnificente da arte de fazer
poemas” (Moacyr Félix), fascina o leitor uma outra virtude deste
imenso poeta: a severa relação que mantém com sua memória,
escutando-lhe sem a ela ceder, ambicionando seus vestígios mais
secretos ao mesmo tempo em que cuidando para que a mesma não se
torne exuberante em seus excessos. Diálogo primordial portanto
em momento algum dissipado pelo devaneio ou por algum acesso de
conspurcação retórica.
Ao
prologar o mais recente livro de Ivan Junqueira, A sagração
dos ossos (1994), acerta Antônio Carlos Secchin ao iniciar
afirmando que o mesmo se ocupa do universo das “perdas e
dissipações”, alertando ainda que este livro “representa a
culminância de temas e formas obsessivamente trabalhados ao
longo de mais de trinta anos de exercício criador”. Esta
ambientação parece ser o centro da poética de Ivan Junqueira,
inalienável medula, ao preservar em si uma serenidade perfeita.
Há uma infinidade de tratamento a ser dada a esse recurso - o da
poesia como um inventário das perdas -, marcada pelo ritmo
interior de cada diálogo com o vazio e suas possibilidades de
existência. Diz bem o poeta, embora transpondo tal imagem como
característica de um grifo, que o que lhe inebria é “sua
vertigem de estar só consigo, / sua aposta no absurdo e no
infinito, / seu dom de amor, sua esperança mítica / de regressar
um dia ao paraíso”. Portanto, seu relicário de perdas o conduz
tão-somente a uma obsessão pessoal: regressar a um estado de
ânimo suspenso, território em que não pode agir o terror supremo
da perda. O grande desafio da poesia de Ivan Junqueira não
radica exatamente no exorcismo da cadeia de efeitos provocados
pelas perdas, e sim no combate direto com as forças que tornam o
homem póstumo de si mesmo. Toda a sua poesia repete, não como
flâmula proverbial mas antes como verdade substancial, o verso
final deste seu A sagração dos ossos: “a vida é maior que
a morte”.
Naturalmente minha observação acima não põe em discussão a
avaliação que faz da poesia de Ivan Junqueira o crítico Antônio
Carlos Secchin, bem ao contrário, busca fortalecê-la ainda mais,
sendo bastante atentarmos para o que este tão bem define, ao
argumentar a favor da total inexistência de hermetismo no poeta:
“há, isto sim, uma densidade especulativa refratária a reduções
maniqueístas, na trilha de uma ‘lírica do pensamento’ de escasso
cultivo entre nós”. O olhar do poeta sinaliza a existência da
vida, ao mesmo tempo que desperta toda consciência adormecida.
Compreende a multiplicidade que encarnam a verdade e a beleza, a
configuração de sua representação no mundo, o sentido último de
entrega a que está predestinado. Em síntese, a poesia é uma
grande taça da dor, que é também o esplendor do coração.
Ambientação filosófica, e não somente o território evasivo de um
rigor formal, não há sortilégio ou fundamento fenomenológico que
garanta sua existência alheia à concreção do diálogo entre o
homem e sua sombra, entre ser e vida, entre o presente e a
vertigem irredutível de sua memória.
Poucos
poetas no Brasil encarnam com tamanha veemência poética o que
Antônio Carlos Secchin situa como uma “lírica do pensamento”.
Lugar onde a linguagem fica em suspenso, detida em sábio aguardo
da manifestação da memória. Ali a poesia age em prol de seu
sentido primordial de religare, território onde todas as
perdas convertem-se em ganhos, onde a palavra corresponde à
verdade do ser. Não importa tratemos de Alfonso El Sábio,
William Blake ou Ivan Junqueira. Não há retórica que invada o
sentido de re-imersão permanente da poesia em seu ciclo infinito
de formação. Através da memória não busca a poesia senão sua
experiência extrema, recordando com Sérgio Campos que “a palavra
é o ser da poesia” - não uma experiência formal, mas sim da
forma, a maneira da plenitude agir sobre o informe. Essência do
ser, essência da poesia. Neste sentido, nenhum outro poeta no
Brasil foi tão longe quanto Ivan Junqueira. |