O caminho
de Ivan Junqueira
Lêdo
Ivo
A
primeira impressão que se colhe na abordagem da obra poética de
Ivan Junqueira, desde a sua estreia até agora, é a da presença
de uma inconfundível voz pessoal, o sentimento que tem o leitor
de estar visitando um domínio regido pela arte de fazer versos e
poemas, e de saber fazê-los com admirável destreza.
Haverá de
surpreender a muitos leitores que o Modernismo brasileiro, após
tanta estridência e tentativas estimuladas pela busca do chamado
verso livre, e ostensiva negação ou mesmo ridicularização do
nosso passado poético – especialmente do Parnasianismo, que foi
um período basilar de nossa cultura –, não tenha deixado nenhuma
marca visível nesse poeta de alta e nobre qualificação. Mesmo a
Geração de 45 e suas suburbanas subsidiárias tipográficas se
mostram ausentes de seu labor poético. Somos obrigados a
reconhecer que sua obra teria existido sem a estética deflagrada
pela borbulhenta Semana de Arte Moderna.
A
antimodernidade de Ivan Junqueira é a sua modernidade: é o outro
lado de uma contemporaneidade atemporal que fecha os olhos à
vertigem da escalada tecnológica e se empenha em buscar uma
linha de permanência no turbilhão do dia. O ontem faz parte do
hoje. É ao mesmo tempo memória e olvido, ausência e incitação à
presença, legado e vivência.
Nesse
ostensivo distanciamento, sobressai a característica dominante
de sua poesia: o sentimento da intemporalidade, a sua imersão
num tempo absoluto, que não fixa nem o dia nem a hora, e se
encaminha para uma finitude total, sem qualquer radioso dia
seguinte. A essa noção de um tempo não fixado, não ancorado na
vida cotidiana, acrescenta-se o seu desapreço topográfico e
geográfico. Os imperativos de uma noção consuetudinária da
nacionalidade e da regionalidade inexistem na sua poesia. Em vão
se buscará nela um indício da paisagem brasileira, captada em
seus pitorescos mais sedutores ou em suas cores mais
crepitantes, ou o burburinho e estridência de nossas grandes
cidades. Suas paisagens são espirituais. Não as banha nenhuma
luz tropical.
Ele
pertence à linhagem dos poetas que situam na língua a sua
verdadeira pátria: uma venerável pátria filológica que lhe
permite a expressão poética e se completa com o seu amor a
Portugal.
Não é sem
razão que o carioca Ivan Junqueira celebrou o amor e a morte de
Inês de Castro, num compromisso sentimental que, conduzindo-o às
suas raízes linguísticas e psicológicas, o leva a percorrer a
trilha nostálgica de João do Rio, Afrânio Peixoto, Cecília
Meireles, Ribeiro Couto e outros escritores brasileiros marcados
pela nostalgia da cognominada “Pátria-Mãe”. Nessa boa e até
ilustre companhia, realiza Ivan Junqueira um caminho inverso ao
percorrido pelos românticos Gonçalves Dias e Castro Alves,
Casimiro de Abreu e Fagundes Varela e pelos modernistas Mário de
Andrade, Raul Bopp e Cassiano Ricardo, pelos parnasianos Olavo
Bilac e Alberto de Oliveira, que cantaram as nossas matas e os
nossos mares, em cuja poesia formiguejam mitos e temas gulosa e
escancaradamente nacionais. E até a alusitanizada e iberizada
Cecília Meireles glosou, num poema dramático, a Inconfidência
Mineira.
Esse amor
de Ivan Junqueira não se limita ao acervo lírico lusitano.
Estende-se a outras paragens: às ruas e ladeiras ilustres de
Lisboa, às igrejas e conventos, às praças e palácios, que fazem
dele um flâneur da melhor cepa baudelairiana; convívios
literários convertidos em amizades duradouras; e até às
comezainas e bebezainas memoráveis, guardadas amorosamente nas
adegas de tascas vetustas, memoráveis, como certos vinhos verdes
ou maduros, o grandioso cabrito assado do Solar dos Presuntos, a
panelada de frutos do mar do Solar do Duque ou o bacalhau
maravilhoso e o portentoso polvo ao forno da Casa do Além-Tejo.
Não só de banquetes espirituais e livrescos vivem os poetas;
como todos os homens, têm sempre fome e sede. A melancolia do
taciturno Ivan Junqueira, embora considerável, não o faz
desviar-se da boa casa de pasto nem de um cardápio insigne. Sua
aparência ascética é um ledo engano; ele sabe farejar numa
cidade desconhecida os lugares onde há boa carne e bom peixe
regados a vinhos capitosos.
O culto à
língua, ao seu poder de nomeação e ainda de tradução de magia e
encantamento, não se circunscreve, em Ivan Junqueira, somente ao
uso do idioma poético. Vibra também em sua densa e rica e
altaneira prosa ensaística, na qual a reflexão crítica é sempre
iluminada pela sua própria experiência criadora. Uma prosa cujos
grandes modelos ocidentais são a prosa de Leopardi, Baudelaire e
Valéry.
Ele, Ivan
Junqueira, engasta-se na família seleta dos grandes poetas que
são também grandes prosadores; dos poetas para os quais o uso
inventivo da língua é uma operação total, que cobre prosa e
verso e desvenda o território desafiador em que prosa e verso se
enlaçam num grande casamento de amor – ao contrário de grandes
poetas que só são grandes no verso, ou na mesmice de um verso
repetitivo e até contagioso, de uma forma tornada fôrma pelo seu
uso abusivo, e definham e se encolhem e se apequenam em prosas
mancas e irrisórias.
Assim, a
arte poética de Ivan Junqueira nos remete a outros territórios:
o do Simbolismo e o do lavor parnasiano, nas molduras não apenas
brasileiras, mas ocidentais, pois uma fina e paciente formação
intelectual lhe assegurou as galas e graças de uma irrefutável
ocidentalidade. Num poema como o “Poética”, só comparável ao
“Profissão de fé”, de Olavo Bilac, o poeta fala belamente de sua
arte de fazer poemas: uma arte vigilante, baseada em cálculos e
estratégias, conduzida por um ritmo que excele ao mesmo tempo
pela musicalidade e obstinada abrangência de significado:
A arte
é pura matemática
como de
Bach uma tocata
ou de
Cézanne a pincelada
exasperada mas exata.
Mas o
próprio poeta adianta que:
E mais
que isso: uma abstrata
cosmologia de fantasmas
que de
ti, lentos se desgarram
em
busca de uma forma clara.
Escuridão
e exasperação, geometria e cosmologia, clareza e obscuridade, o
visível e o fantomático se fundem nessa poesia noturna, soturna
e taciturna em que a voz anunciada, e que se quer lúcida e
senhora de si mesma, provém das profundezas do espírito, dessa
escura noite da alma, sem a qual o poeta não tem acesso ao dia,
configurado em expressão poética.
Como todos
os grandes poetas, Ivan Junqueira se distingue pela virtuosidade
métrica e rimática, e capacidade de cinzelar o poema, tornando-o
um artefato verbal. A mestria versificatória o leva a apoiar-se
apenas numa unidade fonética. São numerosos, nesse poeta mais
das rimas toantes do que das rimas consonantes, os poemas em que
um a, um i ou um u, no fim de cada verso,
asseguram a este e ao poema a sua magia e musicalidade,
produzindo ludicamente o enfeitiçamento verbal, que é um dos
resultados da expressão poética e uma das razões da poesia.
Embora se
proclame herdeiro de uma tradição poética iniciada com Luís de
Camões e Sá de Miranda, e continuada em Manuel Bandeira, Cecília
Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Dante Milano, Ivan
Junqueira sabe que não existe no passado apenas uma única
tradição. Elas são várias e ele, desde a sua aparição em 1964,
soube beber gulosamente nessas inesgotáveis fontes criadoras.
Ele sabe que a poesia brasileira votada à durabilidade e à
permanência, como toda poesia ocidental, começa em Homero e
Virgílio, Dante e Shakespeare, Camões e Quevedo, prolonga-se em
Goethe e Leopardi, Baudelaire e Mallarmé, Rimbaud e Walt
Whitman, e vive nos poetas do nosso tempo. Ele sabe, finalmente,
que a grande tradição poética não é uma servidão ou
engessamento, nem uma condenação ao epigonismo, mas a base das
transgressões e das rupturas, o make it new pregado por
Ezra Pound.
A condição
de tradutor de Baudelaire, T. S. Eliot e Dylan Thomas lhe abriu
um universo que não se esgota no mudo diálogo interlinguístico,
mas o conduziu a distinções imprescindíveis e especialmente a
confluências, transfluências e contágios que, enriquecendo-o
pessoalmente, tornando mais densa a sua bagagem espiritual,
enriquecem, através de sua obra, a própria poesia brasileira.
T. S.
Eliot ensinou a Ivan Junqueira que poesia é a soma do talento
individual com a tradição; e ainda lhe transmitiu o sentimento
do tempo, desse tempo tríbio, que remonta ao Santo Agostinho do
Confissões, que deve estar na mesa de cabeceira de todos
os bons poetas.
Leio, em
sua notável tradução, os versos de T. S. Eliot:
O tempo
presente e o tempo passado
Estão
ambos talvez presentes no tempo futuro
E o
tempo futuro contido no tempo passado.
A poesia
de Ivan Junqueira, juncada de eruditas referências culturais e
filosóficas, históricas e mitológicas, obedece a uma cronologia
em que o tempo respira intemporalidade, e o fluir de hoje é o
fluir de ontem e será o de amanhã.
É ele um
dos poetas em língua portuguesa mais obcecados pela ideia da
morte. E decerto pertence à mesma família espiritual de Augusto
dos Anjos. A preocupação com a morte, a fugacidade da vida, as
crepitações macabras, a vanidade de tudo, a desilusão e o
desamparo permeiam-lhe a poesia. Constituem a base de seu
pessimismo inextirpável, ocorrente mesmo quando festeja o amor e
o corpo feminino. Não esqueçamos que ele, em 1964, aos 30 anos
de idade, no verdor e vigor de uma juventude viçosa, estreou com
um livro emblematicamente intitulado Os mortos, a que se
seguiu A rainha arcaica, em que celebra a defunta Inês de
Castro. Estuante de vida, ele já pensava na morte. E, estudante
de medicina, não completou o curso que o aparelharia para melhor
combatê-la.
No poema
“O outro lado”, admirável e fúnebre melodia que é uma melopeia,
o poeta interroga o além-túmulo. E a si mesmo ou a um outro
pergunta:
Diz-me:
o que haverá do outro lado?
A
eternidade? Deus? O Hades?
Uma luz
cega e intolerável?
A
salvação? Ou não há nada?
A esse
poeta reflexivo e intemporal que é Ivan Junqueira, a esse poeta
temporal porque sujeito à morte que é Ivan Junqueira, a esse
poeta de uma poesia solene e descotidianizada, sem friso da
origem geográfica, fechada à alegria e alçada a vertiginosas
paragens metafísicas, a esse matemático da noite obscura da
alma, pondero: a sua pergunta é sem resposta.
Os poetas
são filólogos disfarçados, que passam a vida inteira
concentrados na operação linguística que é a poesia. E são
também teólogos que não ousam dizer o seu nome e passam a vida
inteira interrogando a existência ou inexistência de Deus.
Embora
sejamos seres interrogantes, autores de uma pergunta
irrespondível, devemos contentar-nos com o que há neste lado: o
lado da vida, no qual se situa a poesia de Ivan Junqueira, com
selo de sua durabilidade e a garantia antecipada de sua inserção
numa tradição poética que ele engrandece com a sua obra e
exemplo. |